Os diálogos abaixo foram extraídos da entrevista que Foucault concedeu ao crítico literário Claude Bonnefoy, da revista ‘Arts’, em 1968, sobre a relação do filósofo com a escrita. A entrevista completa acaba de ser publicada no Brasil pela editora Autêntica, no volume O belo perigo, com tradução de Fernando Scheibe. 

Claude Bonnefoy: Eu não queria nestas conversas, Michel Foucault, levá-lo a redizer de outra maneira aquilo que você já expressou perfeitamente em seus livros nem obrigá-lo a comentar mais uma vez esses livros. Gostaria que essas conversas se situassem, se não em sua totalidade, ao menos em grande parte, à margem de seus livros, que elas nos permitissem descobrir o avesso deles, algo somo sua trama secreta. O que me interessa em primeiro lugar é sua relação com a escrita. Mas aí já entramos num paradoxo. Devemos falar, e é sobre a escrita que o interrogo. Assim, acho necessário colocar uma questão prévia: como você aborda essas entrevistas que teve a amabilidade de me conceder, como você concebe, antes mesmo de começar a jogar o jogo, o próprio gênero da entrevista? Michel : Começarei dizendo que estou com um frio na barriga. No fundo, não sei muito bem por que sinto tanta apreensão diante dessas entrevistas, por que temo não dar conta delas. Pensando bem, me pergunto se não é pela seguinte razão: talvez porque sou um acadêmico, disponho de certo número de formas, de certo modo estatutárias, de linguagem. Há as coisas que escrevo, destinadas a compor artigos, livros, de qualquer maneira textos bastante discursivos e explicativos. Há outra linguagem estatutária que é a do ensino: o fato de falar a um auditório, de tentar ensinar alguma coisa. Finalmente, outra linguagem estatutária é a da exposição, da conferência que se faz em público ou a seus pares para tentar explicar seu trabalho, suas pesquisas.

Quanto ao gênero da entrevista, pois bem, confesso que não o conheço. Penso que as pessoas que se movem com mais facilidade que eu no mundo da linguagem, para quem o universo da linguagem é um universo livre, sem barreiras, sem instituições prévias, sem fronteiras, sem limites, ficam realmente à vontade numa entrevista e não se colocam demais o problema de saber o que é uma entrevista ou o que têm a dizer. Imagino que elas são atravessadas pela linguagem e que a presença de um microfone, a presença de um entrevistador, a presença de um livro futuro formado pelas próprias palavras que estão sendo pronunciadas não devem impressioná-las muito, e que nesse espaço da linguagem que lhes é aberto elas se sentem realmente livres. Já eu, nem um pouco! E me pergunto que tipo de coisas vou poder dizer.

Isso teremos de descobrir juntos. Você me disse que não se trataria nessas conversas de redizer aquilo que eu já disse em outros lugares. De fato, acho que seria rigorosamente incapaz disso. Contudo, o que você me pede tampouco são confidências, não é minha vida nem aquilo que sinto. Seria preciso, portanto, que conseguíssemos encontrar uma espécie de nível de linguagem, de fala, de troca, de comunicação que não seja nem exatamente da ordem da obra, nem da explicação, nem tampouco da confidência. Então vamos tentar. Você estava falando da minha relação com a escrita.

Quando se lê a História da loucura ou As palavras e as coisas, o que impressiona é ver um pensamento analítico extremamente preciso e penetrante sustentado por uma escrita cujas vibrações não são unicamente as de um filósofo, mas revelam um escritor. Nos comentários que foram escritos sobre sua obra, encontram-se suas ideias, seus conceitos, suas análises, mas falta esse arrepio que dá a seus textos uma dimensão maior, uma abertura para um domínio que não é apenas o da escrita discursiva, mas também da escrita literária. Ao lê-lo, temos a impressão de que seu pensamento é inseparável de uma formulação a um só tempo rigorosa e modulada, que o pensamento seria menos exato se a frase não tivesse encontrado também sua cadência, se ela não fosse também transportada e desenvolvida por essa cadência. Gostaria, portanto, de saber o que representa para você o fato de escrever. Quero antes de tudo esclarecer isto: não sou, pessoalmente, muito fascinado pelo lado sagrado da escrita. Sei que atualmente ele é experimentado pela maior parte das pessoas que se dedicam seja à literatura, seja à filosofia. O que o Ocidente, decerto, aprendeu desde Mallarmé é que a escrita tem uma dimensão sagrada, que ela é uma espécie de atividade em si, não transitiva. A escrita é erigida a partir de si mesma, não tanto para dizer, para mostrar ou para ensinar alguma coisa, mas para estar ali. Essa escrita é atualmente, de certa forma, o próprio monumento do ser da linguagem. No que diz respeito a minha experiência vivida, confesso que não é de modo algum assim que, para mim, a escrita se apresentou. Sempre tive para com a escrita uma desconfiança quase moral.

Pode explicar isso? Mostrar como abordou a escrita? Lembro mais uma vez que o que me interessa aqui é o Michel Foucault escritor. A resposta que vou lhe dar talvez o surpreenda um pouco. Sei fazer sobre mim mesmo – e me agrada fazê-lo com você sobre mim mesmo – um exercício bem diferente daquele que fiz sobre os outros. Sempre tentei, quando falava de um autor, não levar em conta seus fatores biográficos, nem o contexto social e cultural, nem o campo de conhecimento em que ele pôde nascer e se formar. Sempre tentei como que abstrair aquilo que normalmente se chamaria sua psicologia para fazê-lo funcionar como um puro sujeito falante.

Pois bem, pode crer, vou aproveitar a ocasião que você me oferece ao colocar essas questões para fazer sobre mim exatamente o contrário. Vou fazer uma retratação. Voltar contra mim mesmo o sentido do discurso que desenvolvi a propósito dos outros. Vou tentar lhe dizer o que foi para mim, ao longo da minha vida, a escrita. Uma das minhas mais constantes recordações – certamente não a mais antiga, mas a mais obstinada – é a das dificuldades que tive para escrever bem. Escrever bem no sentido que isso tem nas escolas primárias, ou seja, encher páginas com uma letra bem legível. Acho – na verdade tenho certeza – que eu era na minha sala e na minha escola o mais ilegível. Isso durou muito tempo, até os últimos anos do ensino fundamental. No quinto ano, faziam-me encher páginas especiais de caligrafia, de tanta dificuldade que eu tinha para segurar minha caneta da maneira correta e traçar como devia os signos da escrita.

Está aí, portanto, uma relação com a escrita um pouco complicada, um pouco sobrecarregada. Mas há outra recordação, bem mais recente. É o fato de que, no fundo, nunca levei muito a sério a escrita, o ato de escrever. Só fui sentir vontade de escrever por volta dos 30 anos. Claro, eu tinha feito estudos chamados literários. Mas você pode imaginar que esses estudos literários – o hábito de fazer análises literárias, de redigir dissertações, de passar por exames – não contribuíram muito para criar em mim o gosto pela escrita. Muito pelo contrário.

Para chegar a descobrir o prazer possível da escrita, foi preciso que eu estivesse no exterior. Estava então na Suécia, obrigado a falar ou sueco, que conheço muito mal, ou inglês, que pratico com bastante dificuldade. Meu pouco conhecimento dessas línguas me impediu durante semanas, meses e mesmo anos de dizer realmente o que queria. Via as palavras que queria dizer se travestirem, simplificarem-se, tornarem-se como que marionetes irrisórias à minha frente no momento em que as pronunciava.

Nessa impossibilidade em que me encontrei de utilizar minha própria língua, percebi, em primeiro lugar, que ela tinha uma espessura, uma consistência, que não era simplesmente como o ar que se respira, uma transparência absolutamente insensível; depois, que ela tinha suas leis próprias, seus corredores, seus atalhos, suas linhas, suas escarpas, suas costas, suas asperezas, em suma, que ela tinha uma fisionomia e formava uma paisagem onde a gente podia passear e descobrir, no desvio das palavras, ao redor das frases, bruscamente, pontos de vista que não apareciam anteriormente. Naquela Suécia onde eu devia falar uma língua que me era estrangeira, compreendi que podia habitar minha língua, com sua fisionomia subitamente particular, como sendo o lugar mais secreto, porém mais seguro, de minha residência nesse lugar sem lugar que é o país estrangeiro onde nos encontramos. No final, a única pátria real, o único chão sobre o qual se pode andar, a única casa onde podemos nos deter e nos abrigar é a língua, aquela que aprendemos desde a infância. Tratou-se para mim, então, de reanimar essa língua, de construir para mim uma espécie de casinha da linguagem da qual eu seria o dono e conheceria cada cantinho. Acho que foi isso que me deu vontade de escrever. Entre prazer de escrever e possibilidade de falar, existe certa relação de incompatibilidade. Ali onde não é mais possível falar, descobre-se o encanto secreto, difícil, um pouco perigoso de escrever.

Por muito tempo, você disse, escrever não lhe pareceu uma atividade séria. Por quê? Sim. Até essa experiência, a escrita não era para mim uma coisa muito séria. Era mesmo alguma coisa perfeitamente leviana. Escrever era fazer vento. Aí me pergunto se não era o sistema de valores de minha infância que se expressava nessa depreciação da escrita. Pertenço a um ambiente médico, um desses ambientes médicos de província que, em relação à vida meio adormecida de uma cidadezinha, é, decerto, um ambiente intermediário, ou, como se diz, progressista. Mesmo assim, o ambiente médico em geral, particularmente na província, não deixa de ser profundamente conservador. É um ambiente que pertence ainda ao século XIX. Haveria um belíssimo estudo sociológico a ser feito sobre o ambiente médico na França provincial. Através dele se perceberia que foi no século XIX que a medicina, mais precisamente o personagem do médico, aburguesou-se. No século XIX, a burguesia encontrou na ciência médica, na preocupação com o corpo e com a saúde, uma espécie de racionalismo cotidiano. Nesse sentido, pode-se dizer que o racionalismo médico substituiu a ética religiosa. Foi um médico do século XIX que pronunciou esta frase muito profunda: “No século XIX, a saúde substituiu a salvação”.

Acredito que esse personagem do médico assim formado e um pouco sacralizado no século XIX, que tomou o lugar do padre, que reuniu ao seu redor, para racionalizá-las, todas as velhas crenças e credulidades da província, dos camponeses, da pequena burguesia francesa dos séculos XVIII e XIX, acredito que esse personagem permaneceu bastante estagnado, bastante imóvel, bastante igual a si mesmo desde essa data. Vivi nesse ambiente onde a racionalidade se reveste de um prestígio quase mágico, nesse ambiente cujos valores são opostos aos da escrita.

De fato, o médico, e particularmente o cirurgião – ora, sou filho de cirurgião –, não é aquele que fala, é aquele que escuta. Ele escuta a fala dos outros, não para levá-la a sério, não para compreender o que ela quer dizer, mas para rastrear através dela os sinais de uma doença séria, ou seja, de uma doença do corpo, de uma doença orgânica. O médico escuta, mas é para atravessar a fala do outro e atingir a verdade muda de seu corpo. O médico não fala, ele age, ou seja, apalpa, intervém. O cirurgião descobre a lesão no corpo adormecido, abre o corpo e volta a costurá-lo, opera; tudo isso no mutismo, na redução absoluta da fala. As únicas palavras que pronuncia são as palavras breves do diagnóstico e da terapêutica. O médico só fala para dizer, em uma palavra, a verdade e prescrever a receita. Nomeia e prescreve, pronto. Nesse sentido, a fala do médico é extraordinariamente rara. Decerto, foi essa desvalorização profunda, funcional, da palavra na velha prática da medicina clínica que pesou sobre mim por muito tempo e que fez com que até 10, 12 anos atrás a palavra, para mim, fosse ainda e sempre vento.

Quando começou a escrever, houve, portanto, uma inversão em relação a essa concepção primeira e desvalorizadora da escrita. A inversão vinha, evidentemente, de mais longe. Mas cairíamos aí numa autobiografia ao mesmo tempo anedótica e banal demais para que seja interessante nos determos nela. Digamos que foi por meio de um longo trabalho que, finalmente, atribuí a essa palavra tão profundamente desvalorizada certo valor e lhe conferi certo modo de existência. Atualmente, o problema que me preocupa, que, na verdade, não parou de me preocupar de 10 anos para cá, é este: numa cultura como a nossa, numa sociedade, o que é a existência das falas, da escrita, do discurso? Pareceu-me que nunca tinha sido atribuída suficiente importância ao fato de que, no fim das contas, os discursos existem. Os discursos não são apenas uma espécie de película transparente através da qual se veem as coisas, não são simplesmente o espelho daquilo que é e daquilo que se pensa. O discurso tem sua consistência própria, sua espessura, sua densidade, seu funcionamento. As leis do discurso existem como as leis econômicas. Um discurso existe como um monumento, como uma técnica, como um sistema de relações sociais, etc.

É essa densidade própria ao discurso que tento interrogar. Isso, é claro, marca uma conversão total em relação àquilo que era para mim a desvalorização absoluta da palavra quando era criança. Parece-me – penso que está aí a ilusão de todos aqueles que acreditam descobrir alguma coisa – que meus contemporâneos são vítimas das mesmas miragens que minha infância. Eles também acreditam facilmente demais, como acreditei outrora, como se acreditava em minha família, que o discurso, a linguagem, no fundo não é grande coisa. Sei muito bem que os linguistas descobriram que a linguagem era muito importante porque obedecia a leis, mas insistiram sobretudo na estrutura da língua, isto é, na estrutura do discurso possível. Mas me interrogo é sobre o modo de aparição e de funcionamento do discurso real, sobre as coisas que foram efetivamente ditas. Trata-se de uma análise das coisas ditas na medida em que são coisas. O oposto daquilo que eu pensava quando era criança.

Apesar de tudo, qualquer que seja minha conversão, devo ter guardado de minha infância, e até em minha escrita, certo número de filiações que deve dar para encontrar. Por exemplo, o que chama muito a minha atenção é que meus leitores costumam imaginar que há em minha escrita certa agressividade. Pessoalmente, eu não a percebo assim de modo algum. Creio nunca ter atacado realmente, nominalmente, alguém. Para mim, escrever é uma atividade extremamente suave, discreta. Tenho como que uma impressão de veludo quando escrevo. Para mim, a ideia de uma escrita aveludada é como que um tema familiar, no limite do afetivo e do perceptivo, que não para de assombrar meu projeto de escrever, de guiar minha escrita quando estou escrevendo, que me permite, a cada instante, escolher as expressões que quero utilizar. O aveludado, para minha escrita, é uma espécie de impressão normativa. Fico, portanto, muito surpreso ao ver que as pessoas reconhecem antes em mim a escrita seca e mordaz. Pensando bem, acho que elas é que têm razão. Imagino que haja em minha caneta uma velha herança do bisturi. Talvez, no fim das contas: será que não traço na brancura do papel aqueles mesmos signos agressivos que meu pai traçava no corpo dos outros quando operava? Transformei o bisturi em caneta. Passei da eficácia da cura à ineficácia do livre enunciado; substituí a cicatriz sobre o corpo pelo grafite sobre o papel; substituí o inapagável da cicatriz pelo signo perfeitamente apagável e rasurável da escrita. Talvez deva mesmo ir mais longe: a folha de papel talvez seja, para mim, o corpo dos outros.

O que é certo, o que percebi imediatamente quando, por volta dos 30 anos, comecei a sentir o prazer de escrever, foi que esse prazer sempre esteve um pouco ligado à morte dos outros, à morte em geral. Essa relação entre a escrita e a morte, mal ouso falar dela, pois sei o quanto alguém como Blanchot disse sobre esse tema coisas muito mais essenciais, gerais, profundas, decisivas que aquilo que posso dizer agora. Falo aqui no nível dessas impressões que são como o avesso da tapeçaria que tento seguir atualmente, e me parece que o outro lado da tapeçaria é tão lógico e, afinal, tão bem – ou mal – desenhado quanto o anverso que mostro aos outros.

Com você, gostaria de me deter um pouco sobre esse avesso da tapeçaria. E direi que a escrita, para mim, está ligada à morte, talvez essencialmente à morte dos outros, mas isso não significa que escrever seja como assassinar os outros e consumar contra eles, contra sua existência, um gesto definitivamente mortífero que os expulsaria da presença, que abriria diante de mim um espaço soberano e livre. De modo algum. Para mim, escrever é mesmo lidar com a morte dos outros, mas é essencialmente lidar com os outros na medida em que já estão mortos. Falo de certa forma sobre o cadáver dos outros. Devo confessar, postulo um pouco sua morte. Falando deles, estou na situação do anatomista que faz uma autópsia. Com minha escrita, percorro o corpo dos outros, faço incisões nele, levanto os tegumentos e as peles, tento descobrir os órgãos e, trazendo-os à luz, fazer enfim aparecer esse foco de lesão, esse foco de doença, esse algo que caracterizou sua vida, seu pensamento e que, em sua negatividade, finalmente organizou tudo aquilo que eles foram. Esse coração venenoso das coisas e dos homens, eis, no fundo, o que sempre tentei trazer à luz. Assim, compreendo por que as pessoas sentem minha escrita como uma agressão. Elas sentem que há nela alguma coisa que as condena à morte. Na verdade, sou muito mais ingênuo que isso. Não as condeno à morte. Suponho simplesmente que já estão mortas. É por isso que fico muito surpreso quando as ouço gritar. Fico tão espantado quanto o anatomista que sentisse bruscamente despertar sob seu bisturi o homem sobre o qual quis fazer uma demonstração. Bruscamente, os olhos se abrem, a boca começa a urrar, o corpo a se retorcer, e o anatomista se espanta: “Puxa, então ele não estava morto!”. Acho que é isso que me acontece com aqueles que me criticam ou que gritam contra mim depois de terem me lido. Sempre tenho dificuldade em lhes responder, senão por meio de uma desculpa, desculpa que tomam talvez por um rasgo de ironia, mas que é verdadeiramente a expressão de meu espanto: “Puxa, então eles não estavam mortos!”

Tags: