* Por Ronaldo Cagiano *

Dos quinze contos que compõem o volume Miss Tattoo – uma quase novela (Ed. Jovens Escribas), de Luiz Roberto Guedes, poeta, ficcionista e letrista de músicas (as quais assina como Paulo Flexa), emergem várias leituras, que encampam miradas sociais, políticas e éticas sobre uma época. Porém todas culminam numa visão significativa, que diz respeito ao espelho ou testemunho dos fatos, diatribes e idiossincrasias de toda uma geração, justamente aquela que se formou durante os anos de efervescência dos movimentos de resistência e liberação (políticos, musicais e sexuais) e o período nefasto da ditadura militar, em que o chumbo e os coturnos levaram-nos à derrocada de uma descida anticivilizatório e o homem, sobretudo no caldeirão dos grandes centros urbanos, teve seu protagonismo em suas ações e re(l)ações, com suas histórias especulares de um atípico brazilian way of  life.

Os personagens de Luiz Roberto Guedes transitam por terrenos em que o desejo de enfrentamento e dissolução (ou escalonamento) de valores e costumes são transmutados em atmosferas e ambientes em que há sempre um tênue limite entre a utopia e a desilusão. São existências amiudadas pelas circunstâncias de ordem política ou moral, desmantelando esquemas nitidamente burgueses para chacoalhar com a ordem moral (pre)dominante e impor um ritmo em que a vida ordinária e sem cor é o que sobra nesse “mondo cane”, quando é necessário enfrentar, com unhas e dentes, o caos e a insolvência em que nos lançaram, para não ser tragado pela ferocidade do “status quo”. Esses personagens vivem na corda bamba, num beco-sem-saídas; experimentando suas sinucas de bico ou na lâmina voraz das circunstâncias.

O autor é um exímio estilista no que concerne ao aspecto formal, manuseando com destreza, e sem dourar a pílula os aspectos e peculiaridades dessa pátria escura e atormentada que já está tão difusa na memória de muitos, mas é parte da história pessoal dos que a viveram, como o autor.  Com linguagem afi(n)ada, em que humor e crueldade às vezes se amparam simbioticamente,  percorre esses universos para retratar situações tão adversas e apartadoras desse homem em movimento, que se digladia com seu destino e seus tormentos.

Guedes alcança uma projeção poética ao escrever sobre a realidade desértica de seus seres, protagonistas que muito nos lembram aqueles habitantes solitários e insularizados na vida encontrados nos contos de João Antonio; ou aqueles desbaratados de Nelson Rodrigues; ainda os inquietos metafísicos de Samuel Rawet e na extrema contenção formal, explicita a ausência de melodia ou harmonia em cada trajetória humana. Mas é na palavra que os retrata que carrega, com sua secura e realidade, uma carga semântica e uma força metafórica, mais pelo rigor com que o autor reconstrói esses mundos do que por um uso reiterado de adjetivações. Estamos diante de um escritor cuja construção literária, na poesia ou na prosa (juvenil e adulta) não se perde em malabarismos, firulas ou contorcionismos, pois sua habilidade é escreviver sobre o que é realmente essencial e profundo, sem necessidade de estripulias verbais ou vernizes de linguagem, no mesmo diapasão de Tchecov ou Graciliano Ramos, autores modelares para qualquer candidato a (bom) escritor, em cujas obras nada falta ou sobra e que usam meticulosamente a palavra na sua função de dizer e comunicar, jamais para enfeitar.

Na prosa de L. R. Guedes o substantivo se impõe com toda sua plasticidade, cada frase, cada parágrafo, cada página é um retrato sem retoques do que o autor recolhe no dia a dia e irrompe de sua experiência de anos transitando pelos becos, vielas, ruas, avenidas, periferias – uma espécie de aguda aferição estética – em clave de alta literatura sobre o mundo e o submundo que nos cerca. Toda essa realidade se impõe como flagrantes crônicas cinematográficas (às vezes temos a sensação de que entramos não numa história, mas nos imbricamos num road movie, com essas passagens e paisagens refletidas no retrovisor da memória) com sua própria bagagem existencial, notando-se, claramente, que o autor recuperou (ou resgatou do inconsciente pessoal ou coletivo) os referenciais e totens, as mitologias e arquétipos de uma geração que sofreu suas transições e metamorfoses, nada passando despercebido ao seu olhar cirúrgico, da música ao cinema, da cultura de massas e dos  ícones pop aos desbundes e leitmotiv da rapaziada (sexo, álcool, droga & rock and rol).

Na construção desses contos, o autor cria tipos paradigmáticos, como esse Josué Peregrino, funcionando como uma espécie de personagem-rio, caudatário de muitas histórias e sensações, de conflitos familiares a embates com a lei, de tensões com o tempo de obscurantismo político à busca do prazer e do erotismo. Migrando, ora de uma história para outra; ou, de um livro para outro, daí seu nome-metáfora, recurso que o aproxima de um alterego poderoso a reverberar a voz de um autor que sabe contar sobre seu tempo sem engodo ou mistificação, porque sintonizado com todas as urgências, dilemas, tormentas e inquietações que tantos viveram. Sem dúvida um autor que “ transforma num retrato em que nossa humanidade se reconhece”, como afirma Sérgio Fantini na apresentação da obra. Por isso, Luiz Roberto Guedes está a merecer um lugar de destaque no cenário da literatura contemporânea brasileira, numa época em que mediocridades são incensadas sem pudor e autores de elevado nível estético hibernam nas gavetas ou são criminosamente negligenciados pela crítica rendida e a mídia vendida nesse mercado editorial massacrante e avassalador, com suas hegemonias e monopólios vergonhosos.

 

Trecho:

Deixou-se levara para fora da praia, e enveredaram juntos por um arvoredo cerrado, trotando na escuridão, em meio à cantoria de grilos, sapos e pererecas. Então ele ouviu música em crescendo, um tango estilizado de Piazzolla, e avistou com alívio a grande casa iluminada, com portas e janelas abertas. O lamento do bandoneón vinha do galpão nos fundos do terreno. O bicho largou o braço e latiu.” (Ritos favoritos de Eros)

O professor conheceu a garota no quilômetro 330 da via Anhanguera, quando voltava de um fim de semana chatíssimo no interior. A chuva de vento chacoalhava tanto seu carrinho popular, que ele resolveu parar num posto de gasolina.

Tomando seu café espresso, observou-a pela vidraça. Imóvel, de camiseta e saia jeans, ela suportava o frio, os braços cruzados no peito, olhar fixo no céu fechado, a boca entreaberta. A estátua do estupor. Dezoito anos, no máximo.

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Miss Tattoo – uma quase novela, de  Luiz Roberto Guedes (Ed. Jovens Escribas, 148 págs.)

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Ronaldo Cagiano é escritor mineiro de Cataguases, autor, dentre outros, de  Eles não moram mais aqui (Prêmio Jabuti 2016 na categoria contos). É correspondente da São Paulo Review em Portugal

 

 

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