I .

Pioneirismo científico experimental, você pensou. E sentiu algo. Que foi muito distante do que se deve sentir ao cheirar a pele de uma menina bem de perto. Que foi muito distante do que se deve sentir ao tocá-la naquela dobrinha macia entre a axila e o seio. Mas é o que há para você sentir; então você relaxou e seu corpo se moldou ao courino marrom da poltrona do reduto, o seu reduto, este espaço escuro e subterrâneo onde você é deixado em paz — somente alguns metros abaixo do que é o caminhar de pés arrastados do seu pai, àquela hora já provavelmente movido à Jim Beam; longe o suficiente para não ter que ouvir a TV ininterrupta, do quarto cheirando a mofo e à angústia, bordões humorísticos informando à sua mãe quando já é hora de rir, então ela devia estar rindo. Por baixo do aconchego do edredon, por baixo do calor do chambre, por baixo do torpor do cloridrato de sertralina, ela devia estar rindo —, e então você abriu o pote de vidro, acordou-o de sua sonolência sobre o pedaço de colchão e pôde permitir que um dos cimex lectularius cumprisse o que é parte de seu ciclo de desenvolvimento, sentindo-o em sua pele, um clique sem som penetrando na sua mão. Sentiu também o gosto do buço, salgado. E depois foi somente um pequeno eritema em sua mão esquerda, naquela região gordinha entre o indicador e o polegar, onde ninguém irá perceber, isto se alguém perceber você em casa de Vicente. E depois, por que motivo você iria se preocupar?

II.

Seria só porque depois dessa noite eles irão falar de você e do que você fez, como se fala de alguém que já morreu (e alguém lembrará de ter notado a estranha marca na sua mão)?

Mas isso você ainda não sabe.

Também não sabe como então será difícil entender aquela espécie de ritual, mas talvez se assemelhe mais a uma cerimônia memorialista em que cada atitude é relembrada com o carinho que se tem ao recordar os feitos de amigos que já se foram. Só que será sem carinho.

Mas isto será depois. Depois desta noite.

Por enquanto, mesmo umas três horas após você já ter chegado, todo mundo está apenas fingindo ser o que não é.

E, veja, dobrar os braços para ostentar os músculos inchados sob a manga da camisa, como Martim está fazendo agora, ainda provoca as mesmas risadas excitadas nas meninas, como desde sempre.

A casa está repleta de personagens — inverossímeis como figurantes de séries adolescentes oitentistas. E você é só a câmera sóbria que todos sabem que não devem encarar.

Eles gravitam ao seu redor como se você não existisse, as mãos com design sob medida para aparar a bagana que queima o tetrahidrocanabinol  ao mesmo tempo em que suspendem pesados copos de bebida amarela tilintando gelo, e é claro que os pais de Vicente não se importarão, o que são algumas garrafas a menos? Todos, com exceção de você, dominam as técnicas-de-conversação-aleatória — estão sempre prontos a enfileirar piadas-internas com agressividade incontrolável, mesmo aqueles que só se sustentam em pé porque desafiam a gravidade, em solenes acenos de cabeça para ninguém, talvez para o retrato da parede em frente —, mas parece que ninguém está interessado em exercitar estas técnicas com você. Então você permanece sendo câmera.

III.

Sua lente, no entanto — e é claro que esta é mais uma das informações novas que chegam a você na velocidade em que se descortinam —, enquadra uma daquelas personagens secundárias que, cedo ou tarde (como em qualquer série adolescente oitentista) acaba ganhando destaque na trama. E você sabe, sim, que é por que os efeitos do tetrahidrocanabinol  já estão impregnando seus receptores canabinóides de euforia (e por isso ela levanta os braços em sua direção, com a receptividade de quem reencontra uma velha amiga), sensação de bem-estar (e por isso falar e tocar em você parecem coisas capazes de fazê-la sentir-se realmente plena de prazer) e de distúrbios da memória (e por isso ela o abraça, de tempos em tempos, como se realmente o conhecesse), que é por isso que ela age como age. E você tem sensibilidade para praticamente ver sua atual incapacidade crítica, desibinição extrema e sociabilidade aguda — adicionados pelo líquido amarelo que protagoniza presença tilintante no pesado copo que, também ela, suspende em uma das mãos —, atuando como se fossem entidades físicas, grudando-se a ela como tentáculos, da mesma forma como ela agora se gruda à você, logo você, fazendo-o sentir o eriçamento dos pêlos clareados à parafina de seus braços, fazendo-o sentir seus longos cabelos claros chocando-se com sua própria pele e seu volume sob a calça elevar-se, tão perto ela está, tão perto como nenhuma outra menina jamais esteve.

E é estranho que, agora, todos pareçam ter descoberto sua câmera (e alguém pareça ter notado a estranha marca na sua mão). Os rostos voltados em sua direção carregam expressões que revelam diferentes graus de habilidades de atuação, o torpor como um elemento comum. Mas há algo que você sente em todos, como uma grande interrogação que alguém desenhou em tinta fluorescente e só se revela agora, sob ação da luz negra com que eles estão mais ou menos sacudindo seus corpos. O que ele está fazendo com ela ali? É isto o que você sabe que todos ainda possuem capacidade de questionar, todos estão questionando, de uma forma violenta que não é preciso outro componente para revelar. E é por que você sente esta violência no ar, por que o ar está impregnado desta violência, e é por que você sabe que há coisas melhores para sentir, que você a conduz pela mão, abrindo a porta da casa de Vicente que dá para a rua e, em apenas alguns segundos, nenhum dos dois está mais ali.

Você jamais esteve ali.

IV.

Porque é como se você nunca tivesse saído do seu reduto, sua silhueta eternamente marcando em suor o courino craquelado da poltrona que é seu trono. É como se você nunca tivesse estado em casa de Vicente. Qual o motivo para você estar lá, afinal? Ser o estranho experimento deles? Por isso você está novamente em sua casa. Os ruídos acima já cessaram por completo. E este é o som que se escuta de alguém tentando não fazer barulho — é você, adaptando-se ao fato de não estar só, conduzindo a sua, ainda que levemente, relutante convidada. Ela fala coisas que você não entende, distanciando-se um tanto da euforia que a dominava até tão pouco tempo atrás. Você também fala coisas que os outros não entendem, quando resolve falar, quando tenta traduzir sua satisfação em ser parte do experimento com os percevejos. Mas seu pioneirismo científico sobre a alteração do ciclo reprodutivo dos cimex lectularius nunca é do interesse de ninguém. Então você permanece sendo só e sentindo o que só você sente — esta sequência aprimorada de apertar de dedos do pé, arrepios percorrendo sua coluna cervical — sentindo o poder e o prazer de se deixar morder por um dos seis insetos que você retira com cuidado do pote de vidro.

Mas não é possível que alguém mais não possa sentir com você.

Ela está disposta, você sabe. Letárgica, pulsação relutante, mas você sabe que ela está ali com você para sentir algo mais do que as habituais tragadas a fazem sentir. Porque aquilo é o que todos sentem, e ela, como você, está disposta a sentir algo a mais.

Você sabe.

E ela não impõe resistência. Quando você cheira sua pele bem de perto e então afivela suas mãos na poltrona de couro com seu cinto, quando você prende suas canelas com silver tape, você sabe que ela continua relaxada; ela só balbucia seu nome com tanta frequência, por vezes parecendo que quer gritar, na ansiedade de querer entender, afinal, qual é a sensação.

Mas você não fala.

Você só abre o pote de vidro, colocando o percevejo sobre a maciez de que é feita a mão dela, permitindo que ele cumpra seu ciclo. E então você deixa que ela — assim como você — possa sentir.

*

Alessandro Garcia é autor de A sordidez das pequenas coisas (Não Editora, 2010), finalista do Prêmio Jabuti, segundo colocado no Prêmio Fundação Biblioteca Nacional. Finaliza o romance A zona da invisibilidade. Mais em blog. alessandrogarcia.com

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