* Por Sérgio Tavares *

Há dois significados sensíveis para o título do novo livro de contos do carioca Marcelo Moutinho. Rua de dentro faz referência ao desenho dos bairros periféricos da cidade do Rio de Janeiro, configurados por vias secundárias nas quais circulam os protagonistas dessas treze narrativas. Mas também exprime um sentido cifrado, incutido na compostura dos textos que guardam um relato vicinal no dorso do relato visível, uma rua de dentro que se mostra para o leitor no curso da leitura ou apenas se sugere numa cartografia fantasma.

Tome como exemplo “Um dia qualquer”. Um flâneur transita pelo centro da cidade do Rio, vencendo ruas e registrando cenas urbanas num ritmo despretensioso, até que as últimas frases revelam o destino do personagem e a história secreta ganha a superfície, causando um efeito de surpresa e instigando o leitor a reprocessar o que havia lido. Mesmo assim esse entendimento não se cristaliza por completo, e a informação elíptica e insinuante se retrai para se retomar o fluxo da história principal.

Tal estratégia de estilo vai reaparecer, em maior e em menor intensidade, em enredos propositadamente sem fechos, mas, sobretudo, como uma forma de investigar a condição humana. Trabalhar com esse movimento de alternar camadas de percepção é acessar um fundo subjetivo onde residem os estados de consciência e os conflitos emocionais. Em “Ocorrência”, um casal de mulheres tem o apartamento roubado, do qual somem dois animais de estimação. É singela a maneira com que o enredo reflete a perda, ainda que em primeiro plano racionalizada, na extensão sentimental do relacionamento, lembrando o conto “Tantalia”, do argentino Macedonio Fernández, em que um casal faz um pacto de cuidar de uma planta como símbolo vivo de seu amor.

O mesmo procedimento se regula no excelente “Purpurina”, que se arma por meio de fragmentos que avançam e recuam no tempo, de modo reconstituir a vida de uma mulher trans, do fascínio pelas roupas da mãe até sua graduação na faculdade de Direito. O expediente clássico de se contar uma história, ditado pela marcha dos acontecimentos, é subvertido pelas tensões internas que dão conta da relação conturbada com os pais e da saída pela prostituição para sobreviver, a partir da qual se desponta uma segunda linha narrativa governada pela ação psicológica, onde a construção de mundo se sintoniza à construção da identidade de gênero.

O texto ainda idealiza um conceito de formação pelo qual a renúncia paterna abre espaço para a entrada de conselhos práticos de uma travesti com mais tempo de pista, pondo a lume personagens socialmente marginalizados. A abordagem, no entanto, não busca um reconhecimento por meio da caracterização da linguagem ou tampouco da temática. Moutinho lança mão do calibrado olhar, de uma sutileza quase poética, para tratar desse corte social, centrado nos dramas e nos gestos interpessoais, a exemplo de “Memória da chuva”, no qual um menino de classe média é convidado para o aniversário de um colega que mora na favela. O trama cita aspectos comuns a esses universos dicotômicos, mas o foco está na reação do menino à entrada num microcosmo particular que demole a visão preconcebida de seus pais.

De fato, a escrita posta com a naturalidade da prosa limpa e enxuta submete-se à experimentação de linguagem em apenas dois contos: “Retrós e linhas”, um discurso mental que vai se alinhavando feito um novelo, e “Comida a quilo”, uma intercalação de vozes em moto-contínuo que visa representar a bagunça sonora no interior de um restaurante self-service. Outra vez articulando o caráter duplo da forma, é interessante notar como o autor plasma a estrutura através da fala que ressoa e da que se interioriza.

Dessa dissonância calculada também saem “Militante”, protagonizado por uma mulher que faz campanha política pensando no ganha pão acima de qualquer ideologia, e “Oxê”, cujo narrador tem um caso secreto com um jogador de futebol. Em ambas as narrativas, o autor acrescente à sua habilidade de construir personagens verossímeis, situados num espaço de marginalização, toda uma verve de inconformidade sociopolítica que há naquele que enxerga os temas necessários de seu tempo.

Contista por excelência, Moutinho é um escritor com alma de cronista, e essa característica se reflete em textos cuja matéria-prima são as interpretações do vivido, do que foi decodificado na distância do olhar e depois convertido numa ficção que, com um caráter afetivo e relativa autonomia, delimita uma geografia particular onde pessoas passam pelo autor e inspiram suas histórias.

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Rua de dentro, de Marcelo Moutinho (editora Record, 128 páginas)

Avaliação: Bom

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Sérgio Tavares é escritor e crítico literário

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Imagem ilustrativa: Subúrbio carioca, de Di Cavalcanti

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