* Por Francisco Rohan de Lima *

Ele não tecla. Ele não digita. Ele não escreve. Ele dispara.

Respira a cidade de Belém, come a cidade, engole a cidade aos pedações. Mas não digere. Expulsa tudo do estômago. O gosto amargo da bílis impregna o texto. E contamina o leitor. Pode ser desagradável, advirto.

Trata-se de um processo químico que começou nos anos 80 com uma poesia que se anunciava irreverente. Sim, a poesia de Edyr Augusto Proença já continha a ironia que se desdobraria em sarcasmo na prosa inicial dos anos 90 e em dolorosa fúria a partir deste século.

Edyr é egresso de uma família tradicional de Belém, descendente de poetas, músicos e dramaturgos que adotaram temas e formas tradicionais de expressão inseridos num ambiente de convenções sociais conformadas na estrutura de classe burguesa. O avô, dramaturgo, valeu-se das comédias de vaudeville, com sucesso entre os anos 30 e 50. O pai, músico e compositor, das modinhas, serestas e sambas-canções, dos anos 60 aos 90. A mãe e a tia, poetas, do parnasianismo, muito bem acolhido nesse período entre as rodas literárias da cidade. A escrita de Edyr rompeu com esse casulo temático e estilístico. Detonou todas as pontes confortáveis dessa acomodação. Publica os romances Os éguas, Moscow, Ninho de caba, Um sol para cada um, Selva concreta e Pssíca. Ao fazê-lo, instaura o mal-estar, porque fotografa a realidade de uma sociedade sem lei e à margem da lei. O real torna-se surreal. A realidade das drogas, do tráfico sexual, da violência sem limites, dos ratos d’água nas cercanias de Belém, é mais forte que a ficção. Edyr ajusta o foco da ficção à realidade da cidade.

A ruptura também se opera no nível estético pela adoção de um estilo em que a velocidade da leitura, produzida por frases e períodos curtos, imprime na mente do leitor um processo de “edição” que acelera a ação nas cenas e na compreensão dos diálogos certeiros, enxutos, telegráficos.

Ao mesmo tempo, sua atividade como dramaturgo se aprofunda e adensa. Escreve e produz peças para o Grupo Cuíra. Mergulha no teatro, em associação com a sua companheira constante, a atriz, produtora e diretora Zê Charone, trabalhando em teatro com o submundo da prostituição, cujos personagens reais passam a exercitar os textos e encena-los, são parte da população do bairro em que Edyr reside, outrora elegante e hoje em decadência, como, aliás, a cidade que o escritor devora a cada dia.

A ação vertiginosa deste BelHell percorre os desvão da sociedade, aquele espaço real que se esconde fora da convivência formal, onde os negócios e as transações têm carne e osso… e muito sangue. Aí não tem polícia, salvo para proteger o crime e a iniquidade. Não tem Justiça, exceto para dar uma roupagem formal à injustiça. Não tem igreja, não tem pátria, não tem família, não tem tradição nem propriedade, exceto para camuflar, esconder, abafar, disfarçar o grande complô no faz de conta que os cidadãos da cidade exterior fingem, todos os dias, ignorar. Enquanto isso, a cidade interior pulsa, violenta, no submundo.

As cafetinas, os gigolôs, os traficantes, os viciados, os bárbaros, os toscos, as putas, voluntárias e involuntárias, as bichas, as de menor, os proxenetas, os matadores, os famintos, os sem-teto, os párias trafegam, transam e transacionam em negócios tão escusos quanto reais e rotineiros. Edyr mete a mão nesse caldeirão e aponta as conexões entre essas cidades tão diferentes: uma na superfície e outra no subterrâneo.

Na superfície, os cabeças protegidos e impunes de sempre, as “autoridades” que se vendem para acobertar, as famílias alienadas, que seguem seu cotidiano olhando para o outro lado. Sim, porque a cidade submersa está todos os dias nos jornais. Basta um pouco de imaginação para ler as entrelinhas das notícias e perceber o que engendra as chacinas, as degolas e as balas que crivam os cadáveres empilhados. Vez por outra um “doutor” da superfície é apanhado nos subterrâneos, mas o jornal, a polícia e os amigos acobertam. E a vida segue. Imutável.

Mas, por que diabos, o cara, com tantas belezas amazônicas para enaltecer, tanta excentricidade florestal e ecológica para ressaltar, tanto turismo cultural, tanto carimbó para cantar, resolve chafurdar nesse pântano social? A resposta foi dada por Vargas Llosa, quando observou que os escritores não escrevem o que querem, mas sim o que os seus demônios querem que escrevam.

Penso que Edyr tornou-se escritor quando, depois de alguns ensaios – entre eles Os éguas, premiado na França –, escreveu Moscow em 2001, um romance aterrador ambientado em Mosqueiro, uma bucólica ilha fluvial próxima a Belém, retiro para as férias de julho das famílias da capital paraense. Mosqueiro, que já então vivia infestada de jovens violentos, brutalizados pela falta de opções diante do tédio e da fome e dedicados a furtos, assaltos e estupros, teve seu submundo exposto por Edyr. Traduzido no exterior, o estilo telegráfico da narrativa, em velocidade alucinante, câmera na mão, conquistou os leitores e a crítica.

Muitos anos atrás escrevi em algum lugar que Edyr é um cidadão pacato, voltado para o culto de um certo tipo de jazz e de Joni Mitchell. Sai pouco de casa, não bebe álcool, luta contra o vício do cigarro, às vezes vence às vezes perde, cumpre os deveres de cidadão, paga seus impostos etc. Trata-se de um cotidiano que de forma alguma remete para a temática irreverente de sua poesia dos anos 80.

Pois ele continua assim. A fala mansa e pausada. Os ouvidos, atentos, absorvendo a conversa. A cabeça pensando que o ser humano pode cometer violências insuspeitas se submetido a situações-limite; que pode frequentar prostitutas quando inventa de fazer horas extras para a esposa; que mente para o fisco sobre o balanço da empresa; que rouba o sócio. Mas o Edyr está ali, tranquilo, considerando se a tradicional chuva das 15 horas vai atrasar na tarde de Belém ou se as mangueiras estão florindo mais cedo este ano.

O Edyr sabe – a sua obra grita isso em nossos ouvidos – que a cidade não vai melhorar. Nada vai melhorar. Então, para existir, ele se nutre de pequenos prazeres, almoça com os amigos, acompanha o sucesso e o fracasso do Flamengo. Deve ouvir John Coltrane na fase calma… o lado gentil de Trane.

Até que a noite chega, a náusea aumenta e ele engatilha o teclado para telegrafar as palavras incandescentes.

BelHell

*

Francisco Rohan de Lima, 64 anos, é advogado no Rio de Janeiro e articulista bissexto, com textos publicados em diversos jornais do país. Acompanha a produção de ensaios, poemas, peças e livros de Edyr Augusto Proença desde a juventude do autor. Nos anos 80 produziu textos de Edyr Augusto para o teatro.

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