Dalibhunga!

Cartas da prisão de Nelson Mandela, livro emocionante que acaba de ser lançado no Brasil, reúne pela primeira vez a correspondências dos vinte e sete anos em que o líder sul-africano Nelson Mandela esteve encarcerado. As mais de 200 cartas são comoventes, arrebatadoras e, por que não, literárias. Elas traçam um retrato da humanista do ativista político que também foi marido e pai devoto, aluno dedicado (ele se formou em Direito atrás das grades) e fiel amigo. Pai de cinco crianças quando condenado à prisão perpétua, as cartas para a família se tornaram a única forma de comunicação com os filhos, que não o podiam visitar até que atingissem os dezesseis anos. Sahm Venter, editora do livro, é jornalista, cobriu a luta antiapartheid por mais de 20 anos e atualmente é pesquisadora sênior na Fundação Nelson Mandela.

Selecionamos duas cartas do fim dos anos 60. Na primeira, escreve para as filhas, Zenani e Zindzi, falando da prisão de sua mãe. Na outra, comenta com sua mulher, Winnie Mandela, o momento em que recebeu comunicado da morte do filho, Thembekile, de 24 anos, num acidente de automóvel na Cidade do Cabo. Leia a seguir:

***

Para Zenani e Zindzi Mandela, sua filha do meio e sua caçula

Minhas queridas,

23.6.69

Mais uma vez nossa amada mamãe foi presa e agora ela e o papai estão na cadeia. Meu coração sangra quando penso nela em alguma cela policial longe de casa, talvez sozinha e sem ninguém com quem conversar, e sem nada para ler. Vinte e quatro horas por dia sentindo falta de suas pequenas. Pode ser que se passem meses e até anos antes que vocês a vejam de novo. Por muito tempo talvez vocês vivam como órfãs, sem seu lar e seus pais, sem o amor natural, o afeto e a proteção que a mamãe costumava lhes dar. Agora vocês não vão ter festas de aniversário nem de Natal, nem presentes, nem vestidos novos, nem sapatos nem brinquedos. Ficaram no passado os dias em que, depois de tomar um banho quentinho ao anoitecer, vocês se sentavam à mesa com a mamãe e saboreavam sua comida simples e gostosa. Não mais as camas confortáveis, com os cobertores quentinhos e os lençóis bem limpos que ela costumava providenciar. Ela não estará aí para fazer com que amigos levem vocês ao bioscópio, a concertos e peças, ou para lhes contar histórias bonitas, ajudá-las a ler livros difíceis e responder às muitas perguntas que vocês gostariam de fazer. Não terá condições de lhes dar a ajuda e a orientação de que precisam à medida que vão crescendo e novos problemas vão surgindo. Talvez nunca mais a mamãe e o papai voltem a se juntar a vocês na Casa no 8115 da Orlando West, o lugar do mundo todo que nos é mais querido.

Não é a primeira vez que a mamãe vai para a cadeia. Em outubro de 1958, apenas quatro meses antes do nosso casamento, ela foi presa com 2 mil outras mulheres quando protestavam em Joanesburgo contra os passes de locomoção e passou duas semanas na prisão. No ano passado ela cumpriu quatro dias, mas agora ela voltou para a cadeia e não sei dizer quanto tempo ficará detida desta vez. Tudo o que desejo que vocês sempre tenham em mente é que temos uma mamãe valente e determinada que ama sua gente com todo o seu coração. Ela abriu mão de prazeres e confortos por uma vida cheia de sacrifício e penúria por causa do profundo amor que ela tem por seu povo e seu país. Quando vocês forem adultas e pensarem detidamente nas experiências desagradáveis que a mamãe atravessou e na obstinação com que ela se aferrou a suas convicções, vocês começarão a compreender a importância da contribuição dela à batalha pela verdade e pela justiça e quanto ela sacrificou de seus interesses pessoais e de sua felicidade.

A mamãe vem de uma família rica e respeitada. É uma assistente social qualificada e, na época do nosso casamento, em junho de 1958, tinha um emprego bom e confortável no Baragwanath Hospital. Ela estava trabalhando ali quando foi detida pela primeira vez, e no fim de 1958 perdeu o emprego. Mais tarde ela trabalhou para a Sociedade do Bem-Estar da Criança na cidade, um cargo de que gostava muito. Foi enquanto trabalhava lá que o governo determinou que ela não saísse de Joanesburgo, que ficasse em casa entre as seis horas da tarde e as seis horas da manhã, que não participasse de reuniões, nem entrasse em nenhum hospital, escola, universidade, tribunal, conjunto habitacional ou hospedaria, nem qualquer distrito africano, com exceção de Orlando, onde ela morava. Essa ordem tornou difícil para ela prosseguir com seu trabalho na Sociedade do Bem-Estar da Criança e ela perdeu esse emprego também.

Desde então a mamãe tem vivido uma vida árdua e precisou tentar manter uma casa sem um salário garantido. No entanto, ela de algum modo conseguiu comprar comida e roupas para vocês, pagar suas mensalidades escolares e o aluguel da casa, e ainda me mandar dinheiro regularmente.

Saí de casa em abril de 1961, quando Zeni tinha dois anos e Zindzi, três meses. No início de janeiro de 1962 viajei pela África e visitei Londres por dez dias, retornando à África quase no fim de julho do mesmo ano. Fiquei tremendamente abalado quando encontrei a mamãe. Eu a deixara com boa saúde, robusta e com uma boa cor. Mas ela de repente perdera peso e era apenas uma sombra da pessoa que era antes. Percebi na hora a aflição que minha ausência tinha causado a ela. Eu não via a hora de ter um tempinho para lhe contar sobre minha viagem, os países que visitei e as pessoas que conheci. Mas minha prisão em 5 de agosto pôs um fim a esse sonho.

Quando a mamãe foi presa em 1958, eu ia visitá-la todos os dias, levando comida e frutas. Eu me sentia orgulhoso dela, especialmente porque a decisão de se unir às outras mulheres para protestar contra os passes de locomoção foi tomada livremente por ela, sem nenhuma sugestão minha. Mas a atitude dela diante da minha própria detenção me fez conhecer a mamãe melhor e de modo mais completo. Logo que fui preso, nossos amigos aqui e no exterior ofereceram a ela bolsas de estudos e sugeriram que ela deixasse o país para estudar no exterior. Acolhi de bom grado essas sugestões, pois sentia que os estudos poderiam afastar a mente dela dos problemas. Discuti o assunto com ela quando veio me visitar na Prisão de Pretória em outubro de 1962. Ela me disse que, embora muito provavelmente viesse a ser detida e encarcerada, como todo político em luta pela liberdade devia esperar, ela mesmo assim caria no país e sofreria junto com seu povo. Estão vendo agora como é corajosa a mamãe que nós temos?

Não se preocupem, minhas queridas, temos um montão de amigos; eles vão cuidar de vocês, e um dia a mamãe e o papai vão voltar e vocês não serão mais órfãs sem lar. Então nós também viveremos em paz e alegria como todas as famílias normais. Enquanto isso vocês precisam estudar muito e passar nos exames, e se comportar como boas meninas. A mamãe e eu lhes escreveremos muitas cartas. Espero que tenham recebido o cartão de Natal que lhes mandei em dezembro e a carta que escrevi às duas em 4 de fevereiro deste ano.

Com muito muito amor e um milhão de beijos.

Afetuosamente, Papai

Para Winnie Mandela, sua esposa

Carta especial para Zami

Minha querida,

16.7.69

Esta tarde oficial comandante recebeu o seguinte telegrama do advogado Mendel Levin: “Favor avisar Nelson Mandela que seu Thembekile faleceu dia 13 do corrente em razão de acidente de automóvel na Cidade do Cabo”.

É difícil acreditar que nunca mais verei Thembi. Em 23 de fevereiro passado ele fez 24 anos. Eu o tinha visto no fim de julho de 1962, poucos dias depois de voltar da minha viagem ao exterior. Ele era então um rapaz vigoroso de dezessete anos que eu jamais poderia associar com a morte. Estava vestindo uma das minhas calças, que era um pouquinho larga & comprida demais para ele. O detalhe era significativo & me fez ficar pensando. Como você sabe, ele tinha uma porção de roupas, dava importância ao que vestia & não tinha razão alguma para usar minhas roupas. Fiquei profundamente comovido, pois os fatores emocionais subjacentes à sua ação eram muito óbvios. Nos dias seguintes minha mente & meus sentimentos ficaram agitados ao perceber o peso & a pressão psicológicos que a minha ausência de casa tinha imposto às crianças. Recordei um incidente em dezembro de 1956, quando eu era um prisioneiro à espera de julgamento no Forte de Joanesburgo. Naquela época Kgatho estava com seis anos e morava em Orlando East. Embora soubesse muito bem que eu estava na cadeia, ele foi até Orlando West & disse a Ma que sentia minha falta. Naquela noite ele dormiu na minha cama.

Mas me deixe voltar a meu encontro com Thembi. Ele tinha vindo se despedir de mim antes de partir para um colégio interno. Ao chegar, me saudou calorosamente, segurando minha mão com firmeza & por um bom tempo. Depois nos sentamos & conversamos. De algum modo a conversa se deslocou para os seus estudos, & ele me deu o que me pareceu, à luz de sua idade na época, uma apreciação interessante do Júlio César de Shakespeare, que muito me agradou.

Tínhamos trocado uma correspondência regular desde que ele partira para a escola em Matatiele & depois, quando mudou para Wodehouse. Em dezembro de 1960 viajei uma certa distância de carro para me encontrar com ele. Durante aquele período eu o via como uma criança & o abordava predominantemente por esse ângulo. Mas nossa conversa em julho de 1962 me fez lembrar que eu não estava mais falando com uma criança, mas com alguém que estava começando a ter uma atitude firme na vida. Tinha de repente se convertido de um filho em um amigo. Fiquei de fato um tanto triste quando ele acabou partindo. Não pude sequer acompanhá-lo até um ponto de ônibus nem tampouco vê-lo partir da estação, pois um proscrito, tal como eu era na época, deve estar disposto a abrir mão de importantes deveres paternos. De modo que meu filho, não!, meu amigo saiu sozinho para abrir caminho por conta própria num mundo onde eu só poderia encontrá-lo secretamente & muito de vez em quando. Eu sabia que você havia comprado roupas para ele & lhe dado algum dinheiro, mas mesmo assim esvaziei meus bolsos e transferi a ele todos os cobres de que um fugitivo miserável podia dispor. Durante o Caso Rivonia ele se sentou atrás de mim um dia. Eu me virava a todo momento para trás, acenando com a cabeça & lhe dando um largo sorriso. Na época quase todo mundo acreditava que receberíamos certamente a pena máxima & isso estava claro no rosto dele. Embora ele acenasse de volta todas as vezes, em nenhuma delas ele retribuiu o sorriso. Nunca imaginei que jamais voltaria a vê-lo. Isso foi há cinco anos.

De lá para cá, você me fez muitos relatos interessantes sobre ele em suas cartas & durante suas visitas. Fiquei particularmente contente ao notar o apego dele à família & o interesse pessoal que assumiu em questões que afetavam seus parentes. Esse apego & esse interesse estão demonstrados na afetuosa carta que ele escreveu a você em junho de 1967, no fato de ter ido te encontrar no aeroporto quando você me visitou no mesmo mês, no fato de cuidar da Ma & levá-la ao cais para embarcar para Robben Island, no fato de visitar você quando veio recentemente a Joanesburgo com a família dele & de ter levado Zeni & Zindzi para passear. Não sei se ele conseguiu visitar o túmulo da Ma.

Ele mandou mensagens por meio de Kgatho & me deu a honra paterna de pedir que eu escolhesse o nome de seu bebê. Maki me contou também que ele comprou roupas para Kgatho e para ela própria & todas as outras coisas de que eles precisavam. Sei quanto a morte dele foi um golpe devastador para você, querida, & escrevo para te transmitir minha mais profunda solidariedade. Mandei a Ntoko nossas condolências. Embora sua vida tenha sido ceifada tão cedo, ele descansará em paz porque cumpriu seu dever para com os pais, irmão & irmãs & parentes. Todos nós sentiremos falta dele. É uma pena que nem você nem eu possamos lhe prestar as últimas homenagens devidas pelos pais a um filho amado que partiu. Perder uma mãe & um primogênito, & ter sua companheira de vida encarcerada por tempo indeterminado, e tudo isso num período de dez meses, é um fardo pesado demais para um homem carregar, mesmo nas melhores condições. Mas eu não estou de modo algum me queixando, minha querida. Tudo o que desejo é que saiba que você é meu orgulho & o de toda a nossa grande família.

Nunca senti tanta falta de você quanto no momento presente. É bom lembrar isso neste dia de amargos infortúnios & amargos reveses. O escritor P. J. Schoeman contou a história de um comandante supremo africano que levou seus magníficos guerreiros negros para uma caçada. Durante a caçada o filho do comandante foi morto por uma leoa & o próprio comandante foi gravemente castigado pela fera. A ferida foi então cauterizada com uma lança em brasa & o dignitário ferido contorceu-se de dor enquanto a chaga era tratada. Mais tarde Schoeman perguntou-lhe como estava se sentindo & ele respondeu que a ferida invisível era mais dolorosa que a visível. Agora eu sei o que o comandante queria dizer. Penso em você todos os momentos do dia. Montanhas de amor & um milhão de beijos, Mhlope.

Com devoção, Dalibhunga

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Cartas da prisão de Nelson Mandela, org. De Sahm Venter, tradução de José Geraldo Couto (Editora Todavia, 656 págs.)

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O líder histórico da África do Sul, considerado o fundador da democracia no país, é conhecido por vários outros nomes além de Mandela. Alguns deles vêm da sua infância, outros refletem o respeito pelo herói antiapartheid. Entre os nomes está Dalibhunga. Aos 16 anos, Mandela foi iniciado na vida adulta numa cerimónia tradicional Xhosa em que recebeu o nome de Dalibhunga, que significa “criador ou fundador da conciliação, do diálogo”. Usado no cumprimento deve ser precedido por “Aaah!”, “Aaah! Dalibhunga”.

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