* Por Eliana Alves Cruz *

Era da África, de nação Moçambique […] viera ainda rapariguinha para aqui, onde tivera para seu primeiro senhor os Carvalho de São Gonçalo; conhecera D. João VI, e, sobre ele, desconexamente, contava uma ou outra coisa avaramente guardada naquela estragada memória.” [i] (Lima Barreto)

Alguma coisa estranha anda acontecendo comigo. Acho que, assim como a minha personagem moçambicana Muana Lomué, em O crime do cais do Valongo, os mortos andam visitando-me à noite para sumirem na madrugada, desde que resolvi bater na grande porta de suas moradas eternas. Longe de precisar de uma sessão de exorcismo ou de “descarrego”, quero mais é que me falem, me digam, me contem. Não os temo, pois creio que a fonte da vida eterna é um chafariz no meio da praça do reino da memória.

Comecei neste espaço atrevendo a escrever carta endereçada ao vivíssimo Machado de Assis, que passeia, escreve, conversa e nos observa solidamente fincado na terra de nossas lembranças. Neste momento não redijo carta alguma, mas viajo e sento à beira de uma cama, naquele manicômio carioca, onde o vejo deitado, mirando fixamente o teto, consumido pela chama intensa da loucura que nos consome.

Na tela branca do teto, Lima Barreto vê a bisavó Maria da Conceição, a negra “Moçambique” que como a minha Muana chegou nestas terras ainda criança e que pariu sua avó, Geraldina Leocádia da Conceição. Ele delira e tem uma visão do futuro, onde vê as duas numa só Conceição, aquela mesma da minha carta ao Machado de Assis. Fico preocupada e tento chamar enfermeiros, pois ele se agita e desesperadamente ao mesmo tempo ri e chora. Alegra-se por ver que aquela mulher tão parecida com suas ancestrais, assim como ele se debruça sobre as letras, escreve suas vivências, faz da palavra seu parque de diversões, mas entra em crise por vê-la na ciranda das recusas em que ele mesmo se viu por diversas vezes, duas para ser exata, nos círculos elitizados da Academia.

Tento dizer-lhe que não se angustie tanto, pois ambos já estão imortalizados nos corações e mentes de uma multidão, de um país inteiro, mas ele me olha aflito e repete seguidamente, como em uma ladainha, a frase-desabafo de seu Diário Íntimo: “É triste não ser branco”. Entendo em que contexto ele fala, entendo sua agonia e frustração de homem “emparedado”, como dizia outro negro, o poeta Cruz e Souza: “(…) E as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até as Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho…”

Ele pediu-me um trago. Apenas um para aplacar a dor que lhe carcomia a alma. Fizera o máximo que estava ao seu alcance para demolir com os tijolos que o limitavam, no mundo onde era alegre não ser negro. Não havia álcool que pudesse enlouquecer mais que enxergar essas mesmas paredes duras subindo no futuro. Ele agitou-se ainda mais, mas observei que a tela-teto do manicômio reveladora do porvir, da mesma forma que o amargurou, também ofereceu algum consolo para aquele coração desconfiado, magoado, sombrio e rebelde, pois leu nas imagens do tempo da posteridade:

“O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos

A memória bravia lança o leme:

Recordar é preciso.

O movimento vaivém nas águas-lembranças

Dos meus farejados olhos transborda-me a vida

Salgando-me o rosto e gosto

Sou eternamente náufraga,

Mas os fundos oceanos não me amedrontam

E nem me imobilizam.

Uma paixão profunda é a bóia que me emerge.

Sei que o mistério subsiste além das águas.”

(Conceição Evaristo. Poemas da recordação e outros movimentos. 2011. p.17)

Lima chegou mesmo a sorrir levemente, pois em seu desvario lúcido entendeu que recusas não importavam, pois subsistiu o mistério dele e subsistirá o dela, muito além das águas.

[i] (Trecho de crônica de Lima Barreto publicada em 1918 e resgatada por seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, em 1952)

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Eliana Alves Cruz, carioca, escritora e jornalista (colabora com o site The Intercept Brasil), pós-graduada em comunicação empresarial. Eleita conselheira municipal de cultura do Rio de Janeiro na linha de literatura. Vencedora do concurso de romances da Fundação Cultural Palmares/MINC 2015, com a história baseada na trajetória de sua família, desde a metade do século 19, na África, até nossos dias. Autora na coletânea Cadernos Negros 39 (poesias) e 40 (contos), do Quilombhoje literatura. Também está no livro Perdidas, histórias para crianças que não tem vez, da Imã Editorial. Acaba de lançar seu segundo romance: O crime do cais do Valongo (Editora Malê).

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