— Senhores, eu conheci a altura de pisar o palco com o público de costas.

Senhores, eu aprendi a conviver com a baixa bilheteria, com o fracasso do palco vazio, o palco nu.

Não me queixo.

O palco de costas pra mim. Vejam as cadeiras!, este silêncio de ouro pra minha grande encenação. Um peido miserável que eu desse agora neste teatro, seria como seu eu jogasse igual minhas forças para obter o sucesso e a consagração.

Vejam. Vejam a minha pose! Vejam como eu mantenho ainda a postura correta, o olhar decidido em frente, mesmo com esta plateia nem aí.

Fodam-se!

Bem pior, permaneçam costas, o que vou querer com plateia?

Sigam, sigam, fora daqui!!! Quero o palco nu. Quero este vazio que se ajusta tão bem…

Plateia de costas, filha de Deus! Permaneça assim porque para onde eu vou, se escalo esta tábua, este palco, se estatelo nesta cera traiçoeira, é o que conquistei.

Podem me derrubar ou deixem-me cair, não me queixo.

Derrubem-me com a sua ausência. Ela faz bem e eu sempre volto aqui.

Hoje, eu vim com minha melhor camisa, com a minha camisa bonita, é seda, ãh- ãh!, e eu vim pra dizer o melhor possível esta cena final.

Apaguem. Apaguem as luzes, me deixam só e no escuro, lhes peço!!! Por quê? Por quê?

Não se pergunta por que a um homem na sua plena expiação, na exposição total de seu fracasso. Como se sabe, a grande, a melhor plateia é um teatro vazio. Isso é fazer arte. E só depois se mostra. Como agora, aqui.

O meu fracasso é o meu maior trunfo, inspiração, o meu fracasso é como se um morto me inspirasse.

O meu fracasso em todas as terras por onde andei. Nunca fui nada, fui sempre um iniciante, um diletante, um empirista de porra nenhuma. O que escrevi nunca trouxe pelados, um observar filosófico, sempre fiquei neste maldito pinheiral.

Saíam agora de mim Heiurques, Morgênios e Bonattos. Ou mesmo saía agora de mim minha mãe sem sobrenome melhor.

Sou um fracassado contra os tristes kardecs e bradei minha cruz de pau. O meu fracasso foi nas rezas, tantas vezes tentei rezar. A minha derrocada, como se diz, foi em dobro. Eu derrubei o piano, não o consegui carregar.

A culpa?

Os motivos do meu fracasso vieram de várias frentes e eu fiquei bem curvo, de joelhos, em minha claríssima falta de ostentação.

Peregrinei, fiz missão, arrisquei quando não era a hora e quando foi a hora eu me assustei.

Assustava mesmo o meu fracasso tão abissal. Meu poema em linha reta que vivenciei.

Levei porradas em termos de pensar. De me corrigir, de buscar um estilo para escrever.

Eis a minha expiação. Eu que pensei ser premonitório fui um reles estoque de editoras natimortas também.

Eu me impressionava mesmo ao ver tanta cadeira virada, pulgas, piolhos, mulheres de apelido Tucas Velhas, nenhuma triste imagem mais abrangente. Eu nunca seria um Pieter Brueghel porque fiquei na parte de baixo, isolado do país. Pouco viajei, pouco sai do passado, eu me enterrei na infância e no encosto da própria infância eu me ferrei.

O meu fracasso, o meu altar sem missa, agora eu trago pra vocês.

“Corajosa” e “criativa” era a obra me dirão, quem sabe, um dia. Dois. No máximo três críticos me reconhecerão como uma peça de museu.

Mas derrubei o piano também em outras direções. O meu fracasso foi nunca ter casa, carro, prainha, ter fotografado o Cristo na Cruz.

Fui ao Rio e quase morri de calor. Fracassei. E nem era só com cidade que eu me dava mal. Uma vez, Seu João Maria me emprestou a sineta e pediu que eu badalasse para a entrada do colégio.

Errei. Eu bati a sineta como um sino e ele nunca mais me convidou. Era um carinho de meu padrinho e eu o decepcionei.

Por quem os sinos dobram?

Dobram pelo meu fracasso, que é quando um homem brocha, como se diz. Eu sou um imprestável burrego. Eu nunca dei um filho a uma mulher.

Palco nu. Plateia de costas.

Houvesse eu tido filhos e estariam eles agora aqui. Na primeira fila. Aplaudindo, levando depois flores lá no meu camarim.

Não os tive.

O meu fracasso foi tão eficiente que cruzava em arroios, enfrentava pororocas, e saía do outro lado sequinho da Silva. Mais inoperante do que nunca.

Ninguém me respondia. Ninguém me “visualizava” quando o bote eu joguei. O eixo Rio-São Paulo é foda.

Eu estou misturando vida e obra, mas o que há de se fazer?!

Eu escrevi sobre a diáspora de minha gente sem ser judeu. Eu escrevi sobre o êxodo depois de uma derrubada de milhões pinheiros e ninguém quis saber.

Eu não roubei os santos óleos da missa e aí já comecei mal. Faltava em mim esta disposição. De roubar a igreja, de sacanear Jesus Cristo, de ficar em blábláblá, Deus!

O meu fracasso é grande, não cabe numa malinha.

Levo então o meu fracasso, passo a passo, neste meu réquiem. Hoje estou de aniversário.

Para um cara fracassado cumprir aniversário e cada vez mais sucumbir.

Os prazos chegando, o calendário te amordaçando, é sentir já uma falta de visão. Descrevo  o  meu  fracasso  de  chegada.  O  meu  fracasso  como  diria o Abdon Bullahud “vem escorrendo sangue”. O Abdon Bullahud comia churrasco escorrendo sangue e era um libanês.

Fracassou também. Foi um escrivão de Fórum e nunca se casou. Morava com os padres, onde é que já se viu?!

O que prevaleceu e que redundou nesta furada é que eu nunca cheguei nem aos pés do Hemingway. Eu não afiaria o seu lápis. E foi nele que eu me espelhei. Do Ulisses do Joyce tirei o humor.

Pronto. Eis a fórmula da queda. Misturar Hemingway com Joyce e ainda ter me admirado com João Guimarães.

O meu fracasso se diz. Nem precisa me ler. O meu fracasso se diz só pelas minhas intenções.

Eu não me canso de dizer que nunca amei do fundo da alma, porque amado do fundo da alma eu também nunca fui.

Nasci e me negaram o batismo.

Fui ser criada por uma mãe emprestada, que me dava carinho, mas sabia que eu não era seu.

É diferente começar a caminhada assim; a infelicidade começa assim. Um cálice em homenagem à negra que me criou!

Mais tarde, em breve houve sua morte, fui viver com uma avó. Uma avó que fazia a merenda pro tocador de sineta no ritmo de sino.

Eu não servi nem pra carregar uma cruz de pau para os mortos.

Na minha cidadezinha tinha um João que ia na frente dos cortejos carregando uma cruz de pau. Era um negro centenário e ia numa passadinha assim. O caixão logo atrás.

Trago comigo esta imagem e a frase que mais me marcou: “carregar o piano”. A vida é carregar cruz de pau para mortos e piano para os vivos.

Eu sonhei. Eu sonhei. Tive ilusões.

Gostava de política. Detestava era a forma de se fazer. Eu pensava bem a política, me situava à esquerda, mas na prática era grana, ranchinho com comida que não dava para um mês.

Nunca quis ir a Cuba. Eu quis ir a Nova Iorque, mas depois passou.

Morei em Lisboa. Fracassei. Morei em Toulouse. Fui confundido com um argelino e sofri a pior espécie de rejeição: o racismo por minha feição. Eu era confundido com um sírio e sentia o olhar enviesado a cada hora de me deslocar. No ônibus, no trem, no elevador.

Fracassei em Francês e rio em Português. Hoje eu não canso de dizer: eu bobeei.

Não canso.

O meu fracasso, como estou dizendo, é um texto de um porcalhão. O que eu faço em meu aniversário então não é isso? Essa porcalhada de fazer uma expiação.

O meu fígado exposto. O meu fígado exposto aos abutres e outras espécies de urubus que houver.

Quem comerá as vísceras de um fracassado?

O meu ritmo é bom. Eu sei. Eu sinto o calorão do estilo quando começo a escrever e a coisa avança e eu sinto que estou a pleno pulmões. A forma de descrever o fracasso num fluxo, deixando vir à tona o que é verdade e mentira sem pausa para o leitor distinguir.

Escrevo em porcalhão. E sinto. E faço. Os meus melhores textos são estes que saem num jorro e isso depois causa uma impressão de angústia no leitor.

O piano caindo. O piano sendo muito pesado para eu poder carregar. “Pra cima com o piano, moçada!”

Nunca conseguiria dizer.

Pra baixo com o ritmo. Eu que já escrevi de trás pra frente, de baixo pra cima, fiz metade de um livro ineficaz.

Palíndromo. Trocadilhos. Experimentação com a palavra. Tirem tudo isso daqui! Quem está apagando as velinhas do bolo do meu aniversário?

Sou eu quem deve soprar. Sou eu quem deve apagar esta porra de velas e felicitações que me mandem.

Zussssssssssss!

Apaguei todas as felicitações.

Zussssssssssss!

Apaguei com toda a saúde que me desejaram e fiquei nesta infeliz disposição para escrever sem ter uma história pra contar.

Falar de mim e de meu fracasso. De fato, não é uma boa história. É apenas um texto espichado, mal seu gênero sei qual é.

Isso é Confissão? Ensaio ou um Conto? Não importa. É escrita.

E meu fracasso só foi menor do que a escrita. O afeto que à escrita sempre dediquei. Prendia-lhe um cinto de afeto em volta e seguia em frente. O piano de arrasto.

Eu era capaz, se tivesse sucesso, de carregar até mesmo um sino. Mas a imagem triste que se tinha era eu e meu piano de arrasto.

Arrastei o piano. O meu fracasso, caríssimos, era de uns quantos quilos.

E a minha derrocada prometia mais. Não era ainda final. Ela havia comprado espaço em mim como a sua maior negociata. O meu fracasso pedia missa-só-missa, não precisava de hóstia. Eu perdera o jogo e não precisava de acessórios.

Nada de hóstia. Nada de ecstasy ou cocaína. Era no osso do peito e só.

Eu me desdobrava. O meu fracasso vinha em movimento, não era estático e tinha lá a sua integridade: no mesmo ano ele se manifestava no amor, nas decisões incompletas, menos na persevarança de escrever.

Pensava em contar com a escrita sempre que pensava no sucesso. O meu fracasso, no entanto, era o que eu pensava do futuro.

Pensava no meu fracasso adiante. Eu era um pessimista, um niilista em relação ao mercado, nascera com o que se chama sina da reclusão.

Nasci em Bom Jesus. Humilde e temente.

Nunca conheci ninguém na vida que fosse superior sem ser arrogante, embora tementes a cada ação.

Eram  tementes,  no  entanto,  não  fracassavam.  Como  conseguiam  carregar  sua porção?

A questão do piano era coisa minha. Decidida pelos outros, mas coisa minha.

O meu fracasso era pra eu comer alfafa. O “não há como”, “impraticável”, “desculpe, não podermos atendê-lo”, eram as frases protocolares da minha vida banal.

E cada uma destas frases mais útil ao meu arsenal. Merecia comissão quem me derrubava. Merecia um assado da Friboi quem me renegava.

Meu fracasso tinha a saúde de uma vaca de presépio.

Vejam, eu não tive as tragédias do Nelson Rodrigues em vida e fiquei na mão. Só na mão pedindo carona em editoras que sequer liam meus originais.

E falei de coisas fortes: eu falei que não me batizaram por ser filho de mãe solteira e eu me sentia depois como um porco. Um porco pagão.

Onde vai dar esta espécie de missa minha? Esta carência de atenção?

Com o próprio lenço o padre da minha cidade limpava o fundinho do cálice. Eu conheci um padre que fazia isso depois do vinho tomar.

Limpo o fundo do cálice da minha alma, agora, aqui. Minha hora do Amém.

O meu fracasso, eu predizia, estava bem no fundo da minha alma e eu precisava continuar: era o meu estilo, a forma com que inventei de me expressar.

Nunca abri mão disso. Era o meu constante pano pra limpeza geral. Nunca desisti.

Tenho ciúme do meu fracasso, porque ele me impulsionou.

*

Paulo Ribeiro é escritor, autor, entre outros de Vitrola dos Ausentes (Ateliê Editorial), Iberê (Artes e Ofícios), coautor de Tríptico para Iberê (Cosac Naify), O Tal Eros Só – Osso Relato (um livro palíndromo pela Belas letras)

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