Por Vinicius de Moraes *

Quem se lembra de uma fita chamada El Dorado, que só mais tarde soube tratar-se de um clássico da arte, exibida faz muito tempo no Central, hoje também Eldorado (onde se entrava com uns ingressos de carona e onde cantava a tanguista La Argentina), quem se lembra? No final havia um suicídio impressionante, a mulher enterrando um vasto punhal no seio, bem devagarinho, e o sangue que lhe espirrava no pescoço, no rosto, uma coisa horrível de ver, quem se lembra?

Lembro-me que passei uma noite de cão, com “coche- mares” negregados, onde flutuava aquela mulher branca, os olhos nadando nas olheiras, o seio meio nu, as duas mãos apertadas no cabo do punhal, vou-te!

Eu tinha uns doze ou treze anos. Quem se lembra, então, de Atrás da porta, fita tão velha que nem sei onde a vi, com um sujeito que era esfolado vivo atrás de uma porta pelo velhíssimo Bosworth (se é que se escreve assim…). Falou-se tanto na crueza dessa cena! Mentiu-se tanto! Um tio meu contou-me (e eu me deixei ficar a ouvi-lo, porque coisa boa é uma boa mentira…) que eu não vira tudo, não, não pensasse… Que o capitão, depois de esfolar o sedutor,    arrancava-lhe a pele às tiras, como quem descasca uma banana, mas que a censura tinha cortado… Falou-me mesmo em alguém a quem se teria assassinado, em Hollywood, para conseguir um maior realismo; ninguém se lembra?

E de She, com Betty Blythe, quem se lembra? A deusa, que também foi rainha de Sabá, aparecia de barriga de fora,  e tinha o umbigo mais bonito que jamais se viu. Ao deixar de ser she, punha-se a rodar como um pião. E quem se lembrará de uma fita do Valentino com a formosa Dorothy Dalton (que o povo chamava “Dorotí Daltôn”), inidentificável para mim, e que se passava no polo, a bordo de um velho cargueiro prisioneiro dos gelos? Tenho na memória uma cena em que o par ficava fechado no interior do navio devido a uma avalanche, e havia então um negócio de falta de ar, ó boy, que deu dispneia em todo o cinema.

Por falar em falta de ar, quem se lembra da primeira fita de submarino, que, acho, chamava-se Submarino mesmo, com Bancroft, se não me engano, e que quase mata meu avô, então muito cardíaco, coitado, ao lhe narrar eu a cena da tripulação morrendo asfixiada no fundo do mar? E, já que Bancroft está em jogo, quem se lembra de Docas de Nova York, com Betty Compson e ele, ele quebrando a cara de todo mundo? Que grande fita! Direção de Sternberg… Mas isso não vem ao caso. Vem ao caso Evelyn Brent, ainda com Bancroft, em Paixão e sangue, lembram-se? Que mulher! Lembram-se da sua  boca pintada em coração? Lembram-se da luta final com o velho Fred Kohler, um dos sujeitos mais fortes que já nasceram e cujo triste destino em cinema, fora alguns filmecos que dirigiu, era ser saco de pancada de mocinhos?

Mas briga de fato havia em Ouro e maldição, o imortal silencioso, naquela cena final dos dois homens no deserto, lembram-se? Saía-se do cinema com uma vontade assassina de esganar alguém, rapidamente, num canto de rua. Briga boa também era aquela de Pat O’Brien, já no falado, num filme da Universal de Edward Cahn, cujo nome me passa, maravilhosa como movimentação de câmera, lembram-se?

Quanta coisa! Fossem todas lembradas, e essa crônica inventaria uma dízima de palavras, de memórias, de pequenas coisas eternas. O beijo de Jannings em Lya de Putti, por exemplo, em Variété. Três rugas paralelas, perfeitamente pa- ralelas, no pescoço de estátua de Brigitte Helm, ao se voltar para olhar seu amante, em Atlantide. Os pés de Raquel Torres, no Deus branco. O busto nu de Hedy Kiesler, hoje Lamarr, em Êxtase. A inesquecível cena de Asphalt, quando Dita Parlo, com um pulo de gata, monta na cintura do jovem polícia, e a máquina desce para só se ver seu pé nu, verdadeira presa, fincado na perneira brilhante…

Não terminarei essa crônica com o clássico “mais vale esquecer”. Não, é preciso lembrar, lembrar sempre. Pois, se o Cinema continuar como está, só mesmo o legado de nossas lembranças alimentará qualquer futura história do Cinema. Porque se eu pegar algum dia minha filha dizendo: “Lembra-se do …E o vento levou?, eu… eu sou bom pai, mas, numa hora dessas, eu não sei, não…

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A crônica acima do mestre Vinicius integra o livro O cinema de meus olhos, e foi gentilmente cedida pela Companhia das Letras

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