* Por Nilma Lacerda *

 O Diário de navegação da palavra escrita na América Latinatem seu início em 1999, tomando o referencial aos diários de navegação do período colonial da história desta América. A breve narração de sua gênese esclarece que a matéria dos escritos presentes tem por destinatárias todas as pessoas que se aventurarem por sua leitura e por objeto a própria palavra escrita.   

 Rio de Janeiro, um pouco de passado para este diário.

A noite era fria, o filme a que tinha acabado de assistir era frio, minhas mãos estavam frias. Voltava do cinema para pegar o carro no estacionamento, o olho tropeçou no mendigo encolhido na porta da loja. Um impulso de tirar o casaco, cobrir os pés dele. Não sou mulher de impulsos. Lamento, muitas vezes, as ponderações e atitudes comedidas que compenso com explosões de risco e coragem, indignações e quixotismos, vestidos no ardor das espadas, na neblina do medo. Naquela noite, o mendigo e eu seguimos de mãos e pés frios. Mas em meio à friagem sopraram uns ventos quentes do Caribe, uma voz de poeta a lembrar: – Foi navegando no impulso que você aportou em Cuba.

Verdade, Emilia. Fui a Cuba pela primeira vez em 1995, no lampejo de um impulso. Não pensei duas vezes, mas verdade é que foi meu marido (um homem mais próximo de hesitar que de impelir) que sustentou o desejo, quando perguntei a ele, o folheto do II Encuentro Iberoamericano de Literatura para Niños y Jóvenes nas mãos: – Vamos a Cuba? -Vamos -respondeu de imediato.

E fomos. O que nos levava a Cuba? O mito do socialismo alcançado na América Latina? O rosto estrelado (banalizado e consumível) de Che Guevara? O carisma de uma revolução popular? O sortilégio do embargo? Que importa! Nos ventos do impulso pousamos em Havana, conhecemos Emilia Gallego Alfonso.

– ¿Tu eres Nilma? – perguntou ao me ver, e respondi: – ¿Tu eres Emilia?

O abraço forte selou o que estava por vir. O rosto bonito e firme, cabelos grisalhos, curtos, Emilia é poeta, ensaísta, pensadora, responsável pela organização do encontro que me levara até lá. Trocamos falas e livros, endereços, projetos. Dois anos depois, acontecia o III Encuentro, Elizabeth Serra me recomendava que representasse o Brasil, como enviada do IBBY[1] brasileiro – a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Era um período difícil da minha vida, e a ida a Cuba deveu-se ao acaso, ao interesse de algumas pessoas e à minha mania de correr para pegar o ônibus, mesmo quando ele já está em movimento para sair do ponto.

É fácil ler o conjunto, depois que o quebra-cabeça se completa. Antes, com o espaço vazio e o risco de todas as possibilidades, só o leitor de panoramas consegue antecipar a importância e o lugar de cada peça; o jogador se contenta com os dados do acaso. Já não jogava com o acaso, nem estava sozinha. Éramos pelo menos três, em frente a nós o mapa da América Latina, no tabuleiro da leitura. A cátedra Mirta Aguirre é fundada, Elizabeth Serra, Emilia Gallego e eu vamos firmando parcerias. O Congresso Lectura’ 99 -Para Leer El XXI -a se realizar em Havana, de 22 a 26 de novembro de 1999, começa a acontecer.

Emilia vem por duas vezes ao Brasil, para pensarmos o Lectura. Numa das ocasiões, determina que farei a palestra “Leitura e Analfabetismo”, no Lectura’ 99. Estranho o tema, não é minha especialidade, por que você não me dá um tema de literatura? – ia reclamar, e me calo. É um trabalho, não é para discutir. Leitura e Analfabetismo. Não sei o que vou apresentar, e tenho um ano para trabalhar.

Em julho de 1999, estávamos juntas na mesa redonda “Ética nos livros para crianças e jovens”, em um seminário no 12º Congresso de Leitura do Brasil (COLE), na Unicamp. Cheguei a Campinas, vindo diretamente do Caminho Das Águas, projeto de navegação pelo São Francisco voltado a uma conscientização das populações ribeirinhas sobre o valor do rio, a necessidade da preservação das águas e a luta contra a privatização dos recursos. Vim impregnada de barca, rio, crepúsculo, mata, caboclo, mitos, Brasil e Rilke, e assim escrevi meu texto. As Cartas do São Francisco– conversas com Rilke à beira do rio comovem a plateia. Emilia troca tema e título da palestra em Havana: “Diário de navegação da palavra escrita na América Latina”, ela me diz, certa de que não vou discutir.

Emilia é autoritária, eu não sou obediente. Tenho bom faro, uma bússola que não falha: chego aonde quero, mesmo quando me engano de trem. Aceito o título que me dá, que não é para uma palestra, é tema para uma vida.

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[1]International Board on Books for Young People, órgão consultor da UNESCO em livros para crianças e jovens.

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

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