* Por Nilma Lacerda *

Entregar o corpo ao atrevimento exuberante. A luxúria de formas justifica a cidade, que faz da cultura um troféu civilizatório e o exibe pelas ruas, casas, pelos museus e palaus. Ao fim de Las ramblas o oceano espera que o visitante retorne para admirar uma vez mais as construções sem similar no mundo. O parque Güell, a Igreja da Sagrada Família, a Casa Battlò, La Pedrera, a Catedral de santa Eulália. O longo passeio da retórica gótica ao moderno independente lateja liberdade e delírio nas terras da Catalunha.

Barcelona, 23 e 24 de julho de 2002.

 A pele de Barcelona é mosaico, a identidade, um quebra-cabeça. Nos telhados da catedral de santa Eulália, caminhamos sobre armações metálicas, tocamos os arcobotantes, consolamos o anjinho de pedra assustado com as torres da civilização eletroeletrônica. Vemos as lajes para suportar novas estruturas, que vão sucumbir a seu tempo e ser descobertas por civilizações longínquas, tal como a construção românica e a paleocristã foram encontradas sob esta igreja. A fachada neogótica agasalha o prédio gótico, detalhe sobre detalhe, a cripta luxuosa se ilumina por 50 centavos de euro, são Marcos e são Severo afogam-se em ouro nas capelas barrocas. Essa orgia. Quantas Américas couberam aqui dentro?

Os pilares elevando as abóbodas ao firmamento, se o fiel piscar o olho aparece a divindade num ponto da grande nave. “Você imagina? A Idade Média, toda aquela fome, a miséria, e a pessoa entra num lugar desses. Quem não ia querer?” – pergunta Regina. O consolo de um lugar possível, um tempo possível sustenta essa construção tanto quanto a secular estrutura de pedra. A catedral, construída com o sacrifício de milhares de vidas, era a visão inicial do paraíso. Mas se muitos são chamados, poucos os escolhidos. A verdade bíblica permanece no mundo globalizado: os mendigos povoam o caminho, amontoam-se à porta da igreja.

Se, para Gaudí, “Todo surge del gran libro de la naturaleza”, para a Catalunha as páginas folheiam insurgências. Na Catalunha fala-se catalão. A imposição do castelhano como língua oficial e as perseguições registradas pela história não arrefeceram o ânimo do povo e o catalão, o galego, o valenciano, o aranês, o basco ou euskera são no presente idiomas cooficiales da nação. À exceção do basco, os demais derivam do latim e o parentesco linguístico com o português é evidente. No bairro judeu de La Cassola, o quadro de azulejos receita hospitalidades.

Bom pão, bom vinho, boa mesa e bom fogo, é sinal de boa casa.[1]

Há outras receitas, de resistência ou solidariedade:

Liberdade para presas e presos políticos

Catalães

10 catalãs e catalães serão levados à audiência

                                     nacional

RESCAT

Suporte a presas e presos políticos

www.llibertat.com/presos[2]

 

Dá-nos uma possibilidade

Aldeias Infantis SOS da Catalunha

Aqui também te necessitam.

 Está em teu poder, tu podes ajudá-las.

902 33 22 22

Preocupa-te com elas.[3]

Ruas estreitas e vento do mar, caderno quadriculado e mão apressada. A cópia pode trazer sua margem de erro, a Internet e os documentos recolhidos ajudam na revisão. Ver a cidade por meio de seus monumentos e suas paisagens, pela história pregressa e presente, considerar o oficial ao lado do que está fora dele, tomar a escrita como sinal do permanente e do efêmero, tanto se escreve, tanto se apaga, permite constituir uma alma para o corpo de ruas, praças, edifícios que atravessamos ávidos por conhecer o que faz uma cidade ser aquela e não outra.

Como um sorvete cujas camadas de sabor surgem diversas a cada movimento da língua, esta cidade mantém desperta a criança dentro de cada um. As visitas ao Museu Picasso, às casas emblemáticas construídas por Gaudí, ao Parque Guëll, ao Palau de la Música Catalana geram tal profusão de notas que é necessário depurá-las na passagem a este Diário. O Templo Expiatório da Sagrada Família, ou Igreja da Sagrada Família, inveja seus antecedentes medievais e já leva 120 anos a ser construído, calculados outros 24 anos mais para estar pronto. Surgiu como construção neogótica, e logo o projeto foi entregue a Gaudí que fez dele a grande obra de sua vida, e pode-se ver bem o conceito de work in progress. Ao definir vários aspectos da obra conforme se apresentavam, Gaudí pôde mirar o próprio logos em ação. Há partes que são ainda um campo de obras, e não impedem que a igreja seja vislumbrada na totalidade de investimento metafísico e construção visionária.

A efervescência do final do século XIX e início do século XX propiciou um raro encontro nesta cidade. Gaudí, Picasso, Miró deixaram sua assinatura na paisagem urbana de Barcelona, ao lado dos anônimos que a pensaram e traduziram em gestos cotidianos ou objetos peculiares capazes também de defini-la. Figura determinante no projeto do Parque Güell, a salamandra é um símbolo da vida. Juli Bernat, um ourives que hoje exerce a função de fiscal e guia voluntário do parque, conversa sobre isso. “A salamandra era o símbolo dos alquimistas. Dizem que queriam fundir chumbo e fazer ouro? Nada. Queriam fazer a vida”.

Vida que o turista quer levar como testemunho de sua presença naquele lugar. Souvenirs, fotografias, narrativas. Exibir as provas da viagem torna-se muitas vezes mais importante que a viagem em si. Nada supre a viagem, a meu ver. Costumo trazer poucas fotos, lembranças para gente querida e as palavras. As palavras e a pretensão de flagrar o viver in situ. Em relação aos viajantes de outrora, que tenho a meu favor?

[1] No original: Bon pa, bon vi, bona taula i bona brasa, es senyal de bona casa.

[2] No original: Libertad Preses i Presos Polítics / Catalans / 10 Catalanes i Catalans seran jeitjats a l’audiencia nacional./ RESCAT / col·lectiu de suport a presos I preses polítiques / www.llibertat.com/presos

3 No original: “Dona’ns una possibilitat / Aldeas Infantils SOS de Catalunya / Aquí també te necessiten./ Estan a pop teu, tu els pots ajudar. / 902 33 22 22 / Fes-te’n soci.

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

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