* Por Wilker Sousa *

Foi preciso caminhar um pouco até encontrar assento livre. Antes da quarentena, decretada havia pouco mais de uma semana, seria impossível, é verdade, pois, ao chegar por volta das oito da manhã à estação Santa Cruz, os vagões estavam quase cheios, quando não, apinhados. Dandara, porém, já acostumada à recente calmaria tensa das três quadras entre sua casa e o metrô, estranhou o repentino aumento na circulação de pessoas. Algum decreto havia alterado o estado das coisas? Havia quase um mês, resolvera não acompanhar noticiários. Era preciso respirar.

O trem se pôs em movimento, e Dandara segurou o tubo metálico para se sentar ao lado de um usuário à janela. Tirou da bolsa um frasquinho de álcool gel, limpou as mãos e logo se imergiu no celular.

Fluente em inglês desde os tempos de faculdade, quando aprendera a pautar seu ofício por estudos científicos, começava a assistir sem legendas à sua série favorita quando sentiu a perna e em seguida o braço do usuário desencostarem-se dela bruscamente. Era um idoso de penteado conservador, aparentava uns sessenta e cinco anos, estava de tênis, shorts e camiseta de ginástica.

Voltou a atenção para a série, mas um rumor crescente não tardou a irritar a ponto de fazê-la arrancar o fone e enfiar o celular na bolsa. Ao erguer a cabeça, percebeu-se alvo de olhares hostis. Da confusão de grunhidos e monossílabos ásperos vinda do grupo formado por três homens e duas mulheres poucos metros à frente, não era possível atinar o que falavam, mas sobre o que, ou melhor, sobre quem, sim, era flagrante. E insólito. Se apenas masculinos, os olhares hostis talvez só lhe causariam asco e raiva, pois não seriam os primeiros prenúncios de assédio. Mas havia algo inédito naquela hostilidade. Não era o olhar de cima e través, o batido ímpeto de superioridade com que tantas vezes reagiram à cor da sua pele, como repisando a ordem antinatural das coisas. Até porque isso parecia ter rareado nos últimos anos. Desta vez encaravam-na, e com uma hostilidade que mais parecia estratégia de defesa, feito o latido de cães acuados.

Ao aviso sonoro de que a estação Ana Rosa, a segunda do trajeto, se aproximava, o idoso se levantou, e Dandara virou o corpo em direção ao corredor para dar passagem. Quiçá confiante em seus dotes de atleta, ele passou de costas a mais de um palmo das pernas dela sem segurar qualquer tubo metálico. Mas o equilíbrio já precário não resistiu à leve freada do trem. Caiu. Eu me viro! Não ponham a mão em mim! Levantou-se apoiando a contragosto as mãos no chão sujo, bateu-as repetidamente uma contra a outra, cerrou os punhos, saiu.

Após vários recém-embarcados passarem direto, um rapaz com fone de ouvido ostentoso largou-se ao lado de Dandara insulado em sua música pulsante. Portas fechadas. Quando ela ensaiava voltar o corpo à posição inicial no assento, estacou pasma: de lado, podia observar ao longo do vagão a disseminação exponencial do repúdio. Dois homens do grupo virulento haviam desembarcado, mas quem permaneceu se empenhava em contagiar usuários distraídos, que, tão logo alarmados, faziam o mesmo ao redor. Poucos foram os imunes. Entre os agravados, houve quem sacou o celular e mirou nela para fazer fotos e vídeos, que logo viralizariam; houve até quem fez o sinal da cruz. Para mais da metade do vagão, Dandara se tornara uma ameaça. Faltava pouco para chegar ao Paraíso.

Vai espalhar doença bem longe daqui! Embora à distância, alguém tomou coragem de verbalizar alto o ódio, cuja motivação Dandara pôde então inferir. Não tinha a ver com a cor da pele, mas da roupa. Ela estava toda de branco. Gente, alguém põe essa auxiliar de enfermagem pra fora pelo amor de Deus!, vociferou em seguida uma senhora com tal desespero que a máscara cirúrgica lhe caiu do rosto. No fim, além do branco da roupa, o negro da pele repugnava, embora só a espantosa – porque inédita – aversão ao branco viesse carregada de pavor, agravante que trouxe a reboque, ainda que velada, a aversão ordinária ao negro. Dandara é enfermeira-chefe de um renomado hospital de São Paulo. O desespero derruba máscaras.

Menos do que o linchamento iminente – possível causa do suor que lhe gelava as têmporas –, afligia fundo, corroía-lhe em silêncio a manifestação sutil de racismo, a primeira verbalizada havia anos. Na infância e adolescência era algo recorrente. Ah, mas que Branca de Neve mais bronzeada, gracejou a mãe de uma amiguinha na primeira festa a fantasia de que se lembra. Talvez por isso inesquecível. E o vestuário branco usado desde o curso de enfermagem? Para muitos não seria tão contraditório quanto a fantasia de Branca de Neve? Contradição de certa forma amainada se, entre os profissionais de saúde, Dandara ocupasse lugar subalterno, único reservado a ela e aos de sua cor em todo e qualquer meio social, como deduzira a senhora havia pouco. Mas e se não estivesse vestida de branco esses anos todos? Se para ir ao trabalho usasse os vestidos de cores vivas e os turbantes, vestuário habitual de sua mãe? Os olhares de cima e través teriam rareado? Teriam mesmo rareado, ou, por estar de branco, inconscientemente os ignorava? O branco, afinal, a protegia ou abrandava-lhe a vigilância? Quanto àquela situação, não havia dúvida. O branco não escudava, e sim demarcava alvo.

A julgar pelos comentários, contavam com seu desembarque em uma ou duas estações: Paraíso, habitual troca de fluxos de passageiros graças à confluência de linhas, ou na seguinte a ela, Vergueiro, localizada no entorno de vários hospitais. Mas como Dandara não desembarcou em nenhuma delas, o grupo – adensado após o embarque de novos usuários rapidamente contagiados – inflamou-se ainda mais. Vaza! Vaza, coisa ruim! Isso mesmo, fora daqui!!

Do meu lugar eu não saio!, retrucou Dandara, a voz abafada pela máscara. Então vai sair na marra!! Da próxima estação, não passa. Nesse momento foram ouvidos vários aplausos além de socos em bancos e janelas. Dias atrás, da sacada do apartamento, Dandara ouvira emocionada aplausos da vizinhança em homenagem a profissionais da saúde, essenciais no combate à peste. Naquele instante, colegas seus estavam – precisavam estar – em outros vagões da mesma composição, pois, além da Vergueiro, há outras estações da linha próximas a hospitais, por isso conhecida como linha da saúde.

Portas abertas na estação São Joaquim, um homem inclinou-se em direção a Dandara disposto a enxotá-la. Ela cogitou proteção no assento ao lado – vago desde que o rapaz descera há duas estações –, mas manteve-se no lugar. Quando estava a pouco mais de um metro, o sujeito recuou bufando. Pouco depois, Dandara sentiu o braço atingido por uma banana.

Como tentasse se ausentar do corpo, Dandara ficou inerte durante os poucos minutos até a Liberdade, onde queria e devia estar. É possível que tenha ignorado o vazio em torno de si enquanto caminhava até a porta, era como assistir a um predador em meio a um bando de presas. Subiu as escadas da estação em ritmo lento. Como vir amanhã? O metrô continuaria cheio assim? Não tinha carro, só sabia dirigir pessoas. Trazer o uniforme em uma mochila? Certo é que estaria no hospital, onde, rigorosamente paramentada, lideraria a equipe de enfermagem no cuidado a infectados. Saiu na Praça da Liberdade, ou melhor, Japão-Liberdade, pois havia nem dois anos do decreto que a rebatizara em homenagem à comunidade japonesa, no bairro desde o início do século XX. Não o primeiro rebatismo, porém. Dandara estava ali, no antigo Largo da Forca, onde, no século XIX, negros rebeldes eram mortos para reiterar a escravidão, vital para a sociedade como a célula para um vírus.

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Wilker Sousa é escritor, jornalista e mestre em Teoria Literária. Em 2016, foi premiado no Concurso de contos Paulo Leminski. É autor de As digitais das sombras (Patuá).

 

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