*Por Nilma Lacerda *

Cartagena das Índias, na Colômbia, é – atrás dos muros que a defendem – uma cidade onde outras escritas se revelam. As casas com balcões, as grades de madeira torneada à janela, este modelo de construção conhecido como colonial espanhol, em que os cômodos se voltam para um pátio interno, ajardinado, dotado de fontes e tanques, lembram La Habana, uma que outra cidade brasileira. Muitos hotéis estão instalados em antigos conventos, como este em que me hospedo, em cuja recepção encontro um estupendo altar brasileiro, provavelmente do século XVIII, esculpido em madeira, e alguns quadros preciosos, vindos de lugares que os funcionários não sabem precisar.

 

Cartagena das Índias, 22 de setembro de 2000.

 Solo De Cartagena

Debaixo da asa, um anjo vai conduzindo a marcha à ré do avião.

Usa macacão vermelho e tem fones amarelos nos ouvidos.

Deixamos o solo de Cartagena de Indias,

onde as pedras e os canhões

contornam quadros coloniais, acendem de pronto

o sabor das inconfidências e os planos clandestinos.

 

As letras clandestinas. Como trepadeira florida subindo por balcões rendilhados

vem uma carta, me alcança no andar de cima.

O papel é delicado, o talhe firme, os segredos – desprezados. Diz:

 

Quebro promessas.

Meu corpo usa carroças;

Meus horizontes, a mil.

 

São muitos assinando. Um continente inteiro. América.

América Latina.

 

Uma caixinha de papelão verde-escuro contém dois volumes pequenos, de capa grená, o fio grosso da mesma cor da caixa amarrando o caderno de 32 páginas da edição ilustrada e cuidadosa de dois discursos de García Márquez com que foram presenteados os participantes do 27° Congresso do International Board on Books for Young People.[1]A versão original e a tradução para o inglês de “La soledad de América Latina”, pronunciado ao receber o Prêmio Nobel, em 1982, e ”El cataclismo de Damocles”, do mesmo ano, em Ixtapa, México, denunciam o massacre da colonização europeia, a ameaça nuclear na civilização contemporânea, e celebram a utopia e a paz, o direito à memória e à felicidade inerente a toda a espécie humana.

 

Bogotá, 24 de setembro de 2000.

Em Bogotá, nos sinais luminosos, uma quantidade enorme de pessoas pede ajuda, muitas delas com um cartaz nas mãos: DESPLAZADO / DESPLAZADA. Em alguns deles, um texto registra a história do vilarejo, da fuga em busca do direito de não ser massacrado. Passei dois dias em Bogotá num roteiro turístico. Para o diário, esta memória doída.

Com frequência, a palavra escrita acompanha a imagem. O cinema, tão visual, não prescinde do roteiro. O trabalho mesmo de filmar pode se completar com relatos escritos do processo, reflexões, narrativas. Seres de narrativas, vivemos cercados de livros, filmes, narradores, suportes de palavra. Desafiar a palavra do tirano tem sido tarefa constante na América Latina.

 

Rio de Janeiro, 21 de novembro de 2000.

Conheci Miguel Littín, há alguns anos, por ocasião de um festival de cinema latino-americano, no Centro Cultural Banco do Brasil, aqui no Rio de Janeiro. A história de Littín, sua ousadia em pregar um rabo de burro no tirano Pinochet, eu a tenho contado inúmeras vezes, há muitos anos. Sabia do livro de Garcia Márquez, feito a partir da entrevista com o cineasta chileno, quase o comprei uma vez, e não o tinha lido até agora. Esqueço o nome dele em meio a uma conversa, a amiga Eliane Paz tem o livro, pergunta se o quero emprestado. Quero.

Os tiranos. Eleitos por via democrática ou não, sobem todos no pedestal da mentira e do terror. Alberto Fujimori se homizia no Japão e de lá confessa ter mentido ao povo que o suportava como tirano -mais um -que a América Latina conheceu. Homiziou-se na pátria dos pais e é de lá que fala sobre a nacionalidade japonesa que possui -e ocultou -, e que deve deixá-lo a salvo de responder pelos crimes cometidos no Peru. A palavra dos tiranos. Que valor tem? Que valor é negado a ela por esses que deveriam defendê-la frente ao povo e que, por pusilanimidade e desconsideração do trato mais básico entre os seres humanos, a desrespeitam? Enxovalha duas pátrias, mente a dois povos esse caudilho.

Eleito inicialmente por vias constitucionais, Fujimori mentia desde então. Que pérola, a palavra porco em sua boca.

 

[1]O IBBY é um órgão da UNESCO, o Conselho Internacional de Livros para Crianças e Jovens.

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil

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