* Por Ary Quintella *

Lemos sobre Martín Cullen, na orelha de seu primeiro livro, The estancia, que, “jornalista, psicoterapeuta e escritor”, ele nasceu em Buenos Aires e divide seu tempo entre aquela cidade e Londres.

The estancia é o livro de memórias de Cullen sobre um período especifico de sua vida, a infância em torno aos dez anos de idade, na década de 1950. Lançado em 2018 no Reino Unido, em inglês, foi originalmente escrito em espanhol — mas não publicado nessa língua — e traduzido pelo autor e sua mulher, que é de nacionalidade britânica. Essas informações não aparecem no livro, mas em uma entrevista dada por Cullen a um programa de rádio, em um inglês excelente e voz aristocrática.

O estilo do livro é por vezes rebuscado e o uso da língua inglesa nem sempre soa natural.  No entanto, poucas leituras, nos últimos tempos, causaram-me tanto impacto. The estancia serve quase como registro de um período histórico, tal como visto por uma determinada classe social, a oligarquia estanciera argentina mais antiga. Pois acontece que as famílias a que pertence Martín Cullen não são pouca coisa. Pelo pai e pela mãe, que aliás são primos distantes, ele descende de dinastias instaladas na Argentina desde o início da colonização espanhola. Isso gera mesmo um debate entre Cullen e sua mãe, Clara, pois o garoto quer saber qual das duas famílias é “melhor”, a dela ou a do pai? A pergunta é pertinente aos seus olhos, porque ele e seus irmãos moram, com os pais, em Buenos Aires, na casa palaciana dos avós maternos, na Calle Juncal, junto com várias tias. A família materna, assim, é mais presente para ele do que a paterna. Clara responde: “What a stupid question. We´re the same… Your Papa is perfectly allright. As good as us. Better, even. And this genealogical point-scoring is frightfully common”.

Em The estancia, todos os personagens são ou parentes de Martín Cullen ou empregados de sua família. Um dos talentos do autor é o de definir uma personalidade fornecendo apenas poucos elementos. As tias, os primos, os empregados são descritos de forma impressionista e no entanto penetrante. Tornam-se vivos para nós apenas com a menção a um tique, ou a transcrição de uma frase dita.

O que o autor mostra, de forma sutil, é o ocaso econômico e político de sua classe social, em processo de ser superada por novas fortunas, novos imigrantes e nova realidade política e econômica. Registro da visão da oligarquia sobre um momento da História da Argentina, recordação da infância do autor, o livro possui ao mesmo tempo elementos de ficção. Alguns prenomes foram modificados e mesmo, em pelo menos um caso, um sobrenome, o do marquês francês casado com uma prima de Cullen. Um dos trechos mais cativantes é uma divagação interior, e portanto romanceada, da avó materna sobre sua própria juventude e como se apaixonou pelo futuro marido.

Apelidada de Otramamá, a avó é possivelmente a figura mais simpática, mais humana, mais interessante do livro, a que é descrita de maneira mais completa. De uma família ilustre da província de Salta, que dera presidentes e ministros à República, Otramamá trouxera em dote ao marido, no casamento, “colonial cities isolated by miles of desert”. No entanto, ao contrário de seus parentes, ela não acredita que “the blood of the Conquistadores gave our class the right to govern”. O avô, Otropapá, parece ter como única ocupação a de presidir o clube aristocrático a que pertence, o Círculo de Armas.

Há várias alusões a À la recherche du temps perdu. Mencionarei apenas algumas. Somos informados de que a prima casada com o marquês francês conhecia Proust. Verifiquei, e isso é verdade, embora o sobrenome verdadeiro seja diferente do fornecido por Cullen. Perto do final, Charles Swann é mencionado como tendo sido um conhecido de Otropapá — então jovem e residente em Paris — em confusão proposital entre o personagem proustiano e os modelos da vida real que o inspiraram. Outra semelhança é a importância da mãe e da avó materna na vida do jovem Cullen, como eram importantes, na juventude do narrador de Proust, as suas próprias mãe e avó.

Clara e Otramamá são as figuras predominantes na narrativa, seguidas por várias tias, como uma, Tina, que foi amiga de Jorge Luís Borges, “who loved her silently”. Outra tia, Teodé, viúva de um irmão de Otramamá, pela excentricidade merece toda a atenção que a ela dedica o autor. Ela é quem o leva pela primeira vez à Europa, para comemorar na França o seu décimo aniversário. A viagem de navio ocupa parte considerável do final do livro. Tia Teodé é ainda mais nobre do que os demais parentes. É oriunda da mais alta aristocracia espanhola e de vários próceres argentinos. A conversa com ela gira, por exemplo, sobre a possibilidade de que o Pai da Pátria, José de San Martín, tenha sido na realidade irmão bastardo do General Alvear, de quem ela descende. Teodé imagina o dia em que o pai de Alvear “fell for a lovely Guaraní Indian bathing at sunset, naked I suppose”. Comenta Martín Cullen: “I was spellbound. Tía Teodé was pulling the Father of the Country down to an unseemly role in her family saga”.

Do pai de Cullen, temos uma visão menos nítida. Sabemos apenas que era médico, sedutor — é parecido com Clark Gable — e marido infiel. De resto, há a noção de que os homens, nessa classe social, são menos fortes do que as mulheres. Na família próxima de Cullen, são sete os suicídios de tios e primos, causados pela perda de distintas fortunas, que haviam sido herdadas e pela manutenção das quais ninguém trabalhara. Diz o autor: “Nobody had a profession. One founded newspapers, planned enterprises, inspected estancias, accepted a ministry from time to time, and certainly the presidency of the great clubs, and in all of this one lost money, but to work steadily and industriously, no”.

O livro contém cenas inesquecíveis. Há a festa de aniversário de uma amiga de Cullen, Adela, com quem ele mantém uma relação que não deixa de lembrar a do narrador de Proust com Gilberte Swann, na infância: admiração da parte dele, indiferença da parte dela. Essa festa de criança possui elementos de terror. Ao falar de sua irmã caçula sendo vestida para a festa, Martín Cullen nos faz pensar em uma boneca. Ele usa aliás uma expressão mais forte: “There she stood like a trussed bird on a carving board”. O palhaço contratado para divertir as crianças é decididamente agressivo, e mesmo obsceno. O palacete da avó de Adela é decorado imitando Versalhes, e na hora do lanche é um mordomo de libré preta quem abre as portas da sala de jantar. Todas as crianças são aparentadas, em graus variados, embora nem todas se pareçam fisicamente. As babás presentes são de diferentes origens étnicas e fofocam sobre os patrões. Uma francesa, que anteriormente fora governanta na São Petersburgo imperial, diz à babá de Cullen e seus irmãos, nascida na Letônia: “They´re nothing but Spanish peasants, these gentlemen, these cattle barons”.

Outra cena memorável, que ocupa a parte central do livro, é a do almoço ao ar livre para comemorar o nono aniversário do autor. Esse almoço acontece no campo, na província de Buenos Aires, na estanciade Otropapá. A cena traz lembranças vagas da literatura russa: contos de Tchekhov, ou romances de Turguêniev, ou fotos que vemos de Tolstoi almoçando a céu aberto com sua família, em Iasnaia Poliana. De resto, Otropapá perdeu parte de suas terras por causa de dívidas de jogo, o que não deixa de ser uma evocação dostoievskiana. O almoço de aniversário evoca várias reminiscências familiares, pois as tias, os primos, os avós estão sentados em volta da mesa, falando dos ausentes. Pushkin é lembrado, pois um membro da família fora casado com uma neta do poeta, a Condessa Alexandrina de Merenberg. Descobrimos, por meio das conversas à mesa, no almoço ao ar livre, que, surpreendentemente, as cinzas da neta de Pushkin foram jogadas, de um pequeno avião, sobre uma das estâncias da família. Diz Cullen que esse “operatic epilogue” trouxe à História da região um “crescendo in which the voices of the princes of Nassau-Luxembourg, the great Pushkin, Doña Encarnación, wife of the dictator Rosas, all faded pianissimo”.

A palavra estancia, que dá seu título ao livro, merece reflexão.

Há antes de mais nada a estância do avô materno, onde boa parte do livro se passa e o aniversário é comemorado. Todas as fazendas vizinhas, porém, pertencem a primos, muitos deles presentes ao almoço. Essas terras formavam antes parte de uma gigantesca propriedade,  descrita pelo autor, a Estancia Miraflores, constituída por um ilustre antepassado da mãe de Cullen, Francisco Ramos Mejía. Nascido em 1773 e morto em 1828, Ramos Mejía pertence à História da Argentina, pela sua defesa dos direitos dos povos indígenas na província de Buenos Aires. Na década de 1950, a fazenda Miraflores pertencia à avó de Adela.

Estancia parece ser, também, um estado de espírito. Os personagens de Cullen, quando não são babás, governantas ou trabalhadores rurais, caminham pela vida, na década de 1950, com a consciência de que pertencem às duzentas famílias, todas aparentadas, que tradicionalmente mandam no país. É fundamental, para manter esse estado de espírito, preservar ao menos parte das terras familiares. Alguns parentes “in losing their land had lost everything”, pois “what counted was possession”. Pairam sobre todo o livro as sombras de duas figuras determinantes da História argentina, Juan Manuel de Rosas e Juan Domingo Perón, citados frequentemente. Ambos, um no século XIX, o outro no século XX, nos anos em que se passa a ação do livro, são vistos como inimigos pela família de Martín Cullen. Um tio-avô, porém, explica que Rosas, ao menos “was one of us, yes he was a criminal, but he was a gentleman. Perón is a thug”.

Li The estancia durante o feriado de Carnaval, em uma chácara à beira-mar, rodeado pelo oceano e pela Mata Atlântica. O isolamento permitiu-me uma imersão total no livro. Ainda agora, os personagens de Martín Cullen parecem-me vivos, próximos, e bem reais. Ao ressuscitar seus parentes, passados sessenta, setenta anos da década de 1950, o autor recria um mundo. O universo de sua infância me acompanhará por muito tempo.

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Ary Quintella é Diplomata. Diretor do Departamento de Rússia e Ásia Central do Ministério das Relações Exteriores. Publica suas crônicas no blog: www.aryquintella.com

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Foto ilustrativa: Buenos Aires no século XIX

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