* Por Nilma Lacerda *

Deixando Praga, alcançando Slavkov, 23 de agosto de 2002.

Tenho três colegas de carnet de voyage, essa prática comum entre viajantes, destinada a ser mero souvenir pessoal ou à orientação de interessados. Quando acontece de o viajante ser artista, o carnet pode ganhar edição ou exibição pública. Não mencionei ainda os belos cahiers de Victor Hugo, vistos em uma exposição na Bibliothèque Nationale, com desenhos na mesma tinta sépia em que eram registrados os comentários. No meu colo, aberto, o diário da viagem feita pelo poeta Henri Michaux pelos Andes, pelas montanhas do Equador e florestas do Brasil até alcançar o delta do Amazonas. Ecuador[1] foge às obras do gênero, pela exposição de uma subjetividade crítica radical, manifesta nos poemas e nas análises em que o autor conjuga o olhar poético ao do cientista social para partilhar com o leitor as percepções de um mundo desconhecido para ele, cujas regras aprende conforme avança:

– Haben sie fosforos?

– No tengo, Caballero, but I have um briquet.

Tal é a língua de bordo.[2]

Michaux partiu de Amsterdam como empregado de um navio, com destino ao Equador, via Panamá. Em seu diário de viagem, as anotações são detalhadas, vários registros no mesmo dia, mudanças de tempo, incidentes e reflexões do percurso de um ano pela América do Sul. Chegamos a Slavkov, ponto de parada da excursão. Bem precisamente, Slavkov u Brna, antiga Austerlitz, nome com que a cidade ficou famosa, em 1805, em razão da célebre batalha na qual Napoleão venceu os exércitos do império austro-húngaro. Placas informativas esclarecem o percurso, que apresenta ruínas de fábricas, grande quantidade de pedras pelo chão (uma para cada soldado morto? – a alucinação me assalta), o antigo convento fundado em 1252. Entramos no castelo de Slavkov, o guia local se estende em informações, mostra armas históricas. “Je m’en fous de mémoires de guerre, je ne fais pas du tourisme de guerreˮ,[3] como diz Marc Bloch. Meu marido e eu resolvemos virar as costas a tanta informação bélica, tomar uma cerveja com as últimas coroas tchecas que nos restam. Contamos as moedas, só pagam um copo, compramos, começamos a partilhar. De repente, o senhor que estava ao balcão vem, coloca um segundo copo na mesa, com gestos de bom proveito. Agradecemos, perplexos.Viajar, esta emoção: alguém que provavelmente não veremos mais, cujo idioma não compreendemos, nos faz este presente, sem interposição de uma só palavra.

Trabalhei sem parar toda a manhã desta viagem, lendo e escrevendo. O ônibus pula, a estrada já não é tão propícia ao escrever. Os olhos acompanham as intermináveis florestas de pinheiros, comparam paisagens. As folhas pontiagudas das árvores lá fora e as folhas do livro que leio apontam para experiências diversas. Michaux fala de uma paisagem semovente, em que a terra cede, se desmancha; no Equador, os nativos falam que a tempestade obriga ao medo; a chuva corta a montanha, funde a terra. Os vulcões entram em erupção, a terra exibe um contorno diverso, deixando sem compreensão o europeu, acostumado a paisagens mais estáveis.

14h15, chegada à fronteira com a República Eslovaca.

Uma fronteira, seus dois lados: é preciso entregar a segunda parte do visto destacável, emitido em Paris pela embaixada da República Tcheca. Não costuma ser uma operação rápida. Às 15h15, entramos na República Eslovaca.

Bratislava, 23 de agosto de 2002.

Com roupagem mais recente e mais rica que Praga, a capital Bratislava é muito mais poluída visualmente e o trânsito bem mais intenso. No hotel, papel de carta amarelado com logotipo, propaganda de shows eróticos na boîte. Junto ao papel, um lápis. Elegante, a madeira clara deixa brotar o grafite escuro e macio. Incorporei-o à minha bagagem. A caneta esferográfica do hotel de Berlim, no entanto, ficou por lá.

Fronteira com a Hungria, 24 de agosto de 2002, 9h15.

De todos os passageiros do ônibus, apenas Paulo e eu temos os passaportes recolhidos para inspeção. Devo escrever ao Ministério das Relações Exteriores pedindo agilidade nos devidos convênios, para que os cidadãos brasileiros sejam poupados desse moroso processo junto às fronteiras das duas repúblicas. Os tesouros culturais e artísticos destes países precisam estar mais accessíveis. Dentre eles, o Museu do Livro, instalado na igreja no alto do monte Zelená, em Zdár Nad Sázavou, cerca de 160 km de Praga.

Hungria, 24 de agosto de 2002, 10h55.

Em minha caderneta, a informação “os restos do grande império austro-húngaro”. Suponho que tenha partido de nossa acompanhante Agnès, que elogia Anna, a guia em Praga, pela precisão e pragmatismo das informações. Instalados no Hotel Medosz, verifico a presença de outros restos, dessa vez do autoritarismo dos antigos governos comunistas. O termo de instrução sobre a ocorrência de incêndios informa que

A possibilidade de fuga é assegurada, mas somente nos casos em que se efetue a evacuação do hotel sem provocar o pânico e mesmo impedindo-o, de maneira disciplinada.

A Direção.[4]

As presas do mamute aprisionado no gelo determinam maneiras de vida e morte.

[1] Título em francês.

[2] Tal qual no original, as duas primeiras frases. A terceira: “Telle est la langue du bordˮ.

[3] Em português: “Estou me lixando para memórias de guerra, não faço turismo de guerra”.

[4] Cópia do original francês: “La possibilité de votre fuite est assurée mais seulement dans les cas où vous effectuez l’évacuation de l’hôtel sans provoquer la panique et en empêchant la panique, de manière disciplinée. La Direction.”

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

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