* Por Sérgio Tavares *

Escritores têm suas obsessões. A da chilena Lina Meruane são as enfermidades. Em Fruta Podrida (2007, sem tradução no Brasil), uma jovem luta para salvar sua irmã que padece de uma doença crônica e opta pela morte. Sangue no olho, de 2012, acompanha o drama de uma escritora ameaçada por uma insólita cegueira. Fechando então uma espécie de trilogia, o mais recente Sistema nervoso trata de uma professora que se conecta a seus familiares interpretando as enfermidades como elos identitários.

Dos três, esse é o livro mais complexo e ambicioso. Armado em pequenos fragmentos descompassados, movidos por intermitentes transições temporais e espaciais, a estrutura parece simular um sistema nervoso, com sua rede de comunicações. Ou mesmo um circuito de sinapses, cruzando o enredo feito uma transmissão de impulsos.

O corpo, de fato, é o espaço para os procedimentos narrativos. Seja para abastecer o texto com episódios da memória, para servir de chave para metáforas e simbolismos, para transmitir os males pelos quais se filiam os atores da trama, ou mesmo para se jogar com o significado da palavra, de modo a se fazer uma analogia com os corpos celestes que estuda a protagonista. O território sideral, com sua incalculável vastidão, é também usado como contraponto para realçar a vulnerabilidade do organismo humano, sendo as células doentes comparadas aos asteroides ou às estrelas precárias que se transformam em buracos negros inevitavelmente sorvendo a todos por unanimidade.

Não por menos, os personagens não são nomeados, de maneira a lhes acentuar um aspecto genérico e perecível. Ela corre contra o tempo para terminar uma tese de doutorado em astronomia, quando uma paralisia no braço cessa o trabalho. O repentino acontecimento desencadeia, a uma só vez, uma série de quadros clínicos em seus familiares e recordações de quando o Pai, a Mãe (na verdade, a madrasta, pois sua mãe biológica morreu no parto) e os irmãos, o Primogênito e os Gêmeos, passaram por problemas de saúde.

Ela divide o apartamento com Ele, um antropólogo forense que estuda ossos, com quem vive um relacionamento amoroso instável e, até certo ponto, tóxico. No “país do presente” (como chama), estão nos Estados Unidos. O “país do passado” é o Chile, e lá ainda estão os familiares d’Ela – e a fonte de suas conturbações internas.

Realizar essa arqueologia dos traumas da protagonista, sobretudo no que diz respeito à relação com o pai, é um dos momentos fortes do livro. Também é uma boa sacada o paralelo entre ratos pestilentos e os agentes da ditadura no “país do passado”, articulando ainda uma correlação temporal entre os presos políticos desaparecidos em covas clandestinas e os imigrantes latinos que morrem tentando atravessar a fronteira estadunidense e são sepultados na condição de indigentes.

Mas as palmas não repercutem além disso. Embora tenha um formato audacioso, o conteúdo é formulaico, rebatendo circunstâncias de um discurso guiado por um tipo de filosofia patológica. Naturalmente que as manifestações e o raciocínio variado sobre as doenças impulsionam o enredo, mas o trânsito em looping dessa “odisseia diagnóstica” pouco cede terreno para distender a trama, tornando a leitura congestionada e um tanto maçante. Por isso, quando o relato incorre em digressão é um respiro bem-vindo.

Contra essa falta de mobilidade, a autora pratica uma escrita estilosa que, a princípio tem um ar de sofisticação, mas acaba se perdendo em maneirismos. O humor estranho é outro componente irregular, funcionando ao abordar o fator hipocondríaco da família e as medidas inusitadas da Mãe para que os Gêmeos se autoimunizassem, porém comete bobices a exemplo d’Ela menina ganhar um cachorro de pelúcia do Pai e batizar de Gastroenterite.

Carece de uma desenvoltura semelhante a do argentino Rodrigo Fresán, igualmente obcecado pela literatura científica, que, em O fundo do céu, também mira o espaço sideral justamente para sabotar o gênero e compor um romance cujos elementos singulares orbitam uma temática repleta de possibilidades. Meruane até tenta ao tratar da política de exclusão estadunidense e do sistema público de saúde, contudo a repetição do mesmo método para contextualizar cada personagem restringe o alcance submerso do texto.

É o típico caso do livro que poderia ter menos páginas, explorando a experiência dramática de sua interessante protagonista, ao invés de deambular por uma enciclopédia médica. Em tempo de pandemia, está claro que uma única doença é capaz de ressignificar o histórico do corpo, de ressignificar o histórico do mundo.

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Sistema nervoso, de Lina Meruane (editora Todavia, 240 páginas).

Avaliação: Regular

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Sérgio Tavares é escritor e crítico literário.

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