* Por Nilma Lacerda *

As viagens feitas em trabalho para o PROLER* permitem conhecer e avaliar práticas de leitura e escrita da contemporaneidade. O tempo, presente inesperado, oferta oportunidades inesperadas de contato com objetos de um passado bem próximo, sejam aqueles inventariados pela filha após a morte da mãe, sejam outros, partilhados em vida entre mãe e filha.  Leituras e escritas femininas delineiam-se em território controlado, tímidos e efetivos desafios a mentalidades e fronteiras.

Rio de Janeiro, preparando texto para encontro do PROLER em Caxias do Sul, 7 de Outubro de 2010.

Escrever é um ato de sociabilidade e implica destinatários, ainda que sobre isso não haja muito controle. Mesmo os textos bem guardados não escapam da leitora fortuita que um dia vai abrir os armários, recolher cadernos, abri-los e dentro deles, lá pelas tantas, deparar-se com o recado:

Sta. Maria

Permita um conselho amigo:

– Uma mulher prevenida vale por duas.

Portanto cuidado!!!

Li confissões arrebatadoras neste, que talvez lhe comprometam mais tarde. **

 

Mme. Mistério

Advertência mais que conselho, a mensagem encontra-se nas páginas em branco, amareladas, de um caderno de recordações, o nome da proprietária gravado a ouro na lombada.

_____________

Maria

dos Anjos

  1. Aguieiras

­­­­­­­­­______

 

Recordações

_____________

 

A folha de rosto, com desenhos pontilhados de flores, tem estampada a foto em preto e branco, tamanho 6 por 12 cm, de uma jovem belíssima que não assina o prefácio, mas se identifica na página seguinte com o poema “Meu álbum”:

Eu peço que escrevas um pensamento

Para meu livro de recordações

Este álbum que encerra o sentimento

De muitos e muitos corações

(….)

A todos que colaborarem neste álbum de recordações, o meu sincero agradecimento.

Maria dos Anjos Nunes Aguieiras

Rio de Janeiro, 2 de abril de 1945

Uma das confissões arrebatadoras mencionadas por madame Mistério tem por título “Durabilidade de Paixão”, em letra de talhe caligráfico. O texto vem acompanhado da foto de um rapaz belo, olhar triste e perturbador, a falar do sentimento não correspondido:

…provando que os dissabores, de que tenho sido vítima, por causa das quatro letras que se chama “amor”, eis o motivo de quanto sofro […] pela causa de ainda não obter uma resposta positiva e consoladora, para este que se subscreve muito apaixonado

 

José Pereira da Costa

Rio, 1° de julho de 1945.

Eu nada soube desse José, nem de outros colaboradores do caderno que se expressaram em palavras mais ou menos semelhantes. Não tenho memória de que minha mãe me tivesse mostrado o caderno, embora tenha lembrança dele junto a outros, arrumados em alguma prateleira de armário. Trouxe-os comigo, após a morte dela. Não me foram legados diretamente, como antes haviam sido as samambaias-de-metro, os antúrios, o lírio da paz, a toalha da Madeira, uma aliança de brilhantes que me foi roubada.

Estive em Caxias do Sul pela primeira vez em 1999, enviada também pelo Proler, para ministrar o curso “Que livros devo ler?”. O Diário começava sua navegação, e a bibliotecária Maria Nair Cruz me presenteou com a cópia xerox de um caderno de contabilidade convertido em memorial de leitura. A mesma letra desenhada que encontrei no caderno de Maria dos Anjos permite conferir, página a página, os registros de leitura de uma mulher, ao longo de 16 anos. Entre os “Romances que já li” estão muitas obras de entretenimento marcada pelos signos do feminino, mas há também bastante literatura de fôlego. Machado de Assis, Érico Veríssimo (15 volumes), Júlio Diniz, Balzac, Emily Brönte, Bernardo Guimarães, Victor Hugo, Alexandre Herculano, Joaquim Manuel de Macedo. Mesmo Nelson Rodrigues, com o pseudônimo de Susana Flag, lá está, no caderno de

Denise Sodré Monteiro da Cruz.

19-7-1960.

Denise Almeida Sodré da Mota

13-7-1944.

Em sua condição de mulheres com acesso à escrita na primeira metade do século XX, Maria dos Anjos e Denise exercitam-na como suplemento, competência acessória acrescentada à vida, Servirá para registro de recordações sentimentais, enumeração de leituras, prática social. Ou – nas palavras do patriarca Aníbal Augusto Aguieiras: “Para assinar a certidão de casamento e fazer a lista do armazém”.

Na segunda metade deste mesmo século, as filhas de ambas têm na escrita um exercício fundamental, instrumento de trabalho, luta política, expressão estética. Se Maria Nair e eu nos movemos à vontade pela cultura escrita, íntimas da palavra que registra, inquieta, subleva, permanece ou, apagada, se reescreve; se compreendemos e multiplicamos o valor desses objetos que preservam subjetividades, somos reconhecidamente elos em longa cadeia a expandir o uso desse bem simbólico. Ao marcar os nomes próprios nas autorias de cunho doméstico que lograram alcançar, essas mulheres assinalavam a condição de leitoras literárias (o caderno de Maria dos Anjos é uma compilação de poemas parnasianos e românticos) em implícito compromisso de formar leitoras as suas descendentes, legar a elas leitura e escrita como fundamento da pólis. Semente no projeto da árvore.

* Programa Nacional de Incentivo à Leitura / Fundação Biblioteca Nacional.

** Observa-se que neste Diário não há edição de texto reproduzido.

*

Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

***

A revista literária São Paulo Review é um exemplo de jornalismo independente e de qualidade, que precisa de sua ajuda para sobreviver. Seguem nossos dados bancários, caso resolva contribuir com qualquer quantia:

Banco Bradesco

Agência: 423

Conta corrente: 96.981-8

CNPJ:  07.740.031/0001-28

Se contribuir, mande-nos um e-mail avisando. Seu nome, ou o nome de sua empresa, figurará como “Nosso Patrono”, na página ‘Quem somos’ do site. Para anúncio, escreva-nos também por e-mail: saopauloreview@gmail.com

Tags: