* Por Marcos Peres *

2007, acho. Havia uma festa beneficente em Maringá, uma genérica Festa dos estados e das nações. Eu trabalhava na `barraca carioca`, que servia Piapara na brasa. O preparo não era complexo: o peixe é aberto, recheado com vinagrete e enviado para a churrasqueira. Na linha de produção, eu alimentava a brasa, não deixando que o fogo cessasse nem que as labaredas ficassem altas. Uma responsabilidade considerável, qualquer descuido poderia arruinar os almoços e. consequentemente, fazer com que o trabalho de outros voluntários fosse para o lixo. A parte ruim é que, pelo contato direto com as churrasqueiras, eu recebia a fumaça e o calor por horas – e saia da barraca com um cheiro terrível de peixe. Em uma destas jornadas de trabalho na churrasqueira, o Bruno Vicentini me disse que o Tezza daria uma palestra no Bristol Hotel. Cristovão Tezza era, então, um dos nomes do catálogo do vestibular da Universidade Estadual de Maringá. Ele, o famigerado Alencar, milhões de contos do Guimarães Rosa, outros tantos do Machado, todos obstáculos para que eu pudesse ingressar em uma instituição de ensino superior. Tentei argumentar que precisava de um banho, o Bruno me respondeu que a conversa estava começando, era o banho ou a palestra.

Desnecessário dizer que, após decidir ir, fui um objeto estranho no evento; que meu aspecto surrado e com cheiro de peixe defumado foi um contraponto a um petit comitê elitizado. Essas coisas são todas dispensáveis neste relato – e só insisto por dois motivos que, em um primeiro momento, não têm nenhuma conexão: “o cheiro de peixe” e “Cristovão Tezza”.

Lembro-me do autor um pouco inseguro com seu próximo romance (um certo O Filho eterno, não sei já ouviram falar?) e brincando (um pouco sério, vá lá) para que as perguntas fossem breves, ele tinha um compromisso inadiável: um jogo do Atlético Paranaense. Ali entendi que um autor, longe das assertivas objetivas dos certames vestibulares, também pode ter dúvidas; mais, pode até mesmo torcer para o Atlético Paranaense. Entendi significa: foi uma quase epifania, um jovem catatônico e cheirando a peixe, um círculo de isolamento formado porque ninguém suportava o fétido cheiro.

Corta a cena, 2012. Por um inexato golpe da ventura, um tal Evangelho segundo Hitler vence o prêmio Sesc de literatura. A premiação foi na FLIP. O premiado era um cara já com seus banhos em dia e que sobreviveu ao ódio que o ensino médio costuma gerar em leitores. Nas ruas de Paraty, vi um sujeito que conhecia de muitas contracapas. O Miguel Sanches Neto. O homem que saiu de Peabiru e que, na minha cabeceira, me repetia constantemente: Então você quer ser escritor? Venci a vergonha, vomitei que era seu leitor ávido, que estava fazendo minha estreia como autor. Sua resposta foi com máxima educação, parabenizando-me pelo prêmio.

Corta a cena, 2016. Depois de alguns eventos literários que pude compartilhar com o Miguel, agora estávamos no Feira do Livro de Guadalajara. Já passado o medo de puxar assunto com o homem que vivia em minhas prateleiras, resolvi dizer que pesquisara sobre um bar especializado em Mezcal. Ele topou, e descobrimos que o local era um inferninho com jovens se espremendo e música tecno no volume máximo. Pedi desculpas, e ele me respondeu com a mesma educação das ruas de Paraty: se em Roma vamos ao papa, no México que venga el Mezcal. Espremido no balcão, eu sorri: o homem que brindava comigo era o autor de Chove sobre minha infância, um dos heróis do fim da minha juventude, dos primeiros anos de maturidade.

Como no episódio do Bristol, eu enxergava ali a literatura sendo humanizada. Ninguém sentiu o inconfundível cheiro de peixe naquele bar em Guadalajara. Ele estava só na minha cabeça, ribombava apenas em meu peito.

Rapidamente se me tornaram indiferentes às vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou, antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? 

Este é o famoso trecho das madeleines de Proust, a operação sinestésica que faz com que o protagonista de No caminho de Swann se lembre de seu passado. Este pobre leitor não se recorda de madalenas, não passou a infância em Combray, mas nem por isso não se esquece, por vezes, de sua mediocridade. Nem por isso não olvida de sua contingência, sua brevidade.

O meu personalíssimo gatilho (o cheiro de peixe) é acionado em páginas da Helena Kolody; emerge das terras vermelhas de Pelegrini, asperge-se nas admoestações de como viver é prejudicial de Jamil Snege, o enormíssimo Turco. Também é aflorado nos haicais do Leminski (foto), finca-se nos mitos fundadores indigenistas de Marco Cremasco, submerge nos siris e sereias do Ademir Demarchi, navega no portunhol salvage do Mar Paraguayo de Wilson Bueno, tateia-se na delicadeza narrativa do Nihonjin de Oscar Nakasato. Minha Madeleine é incômoda, feita não do estranhamento dos formalistas russos, mas de um odor de peixe assado. Um ato personalíssimo, uma operação que só eu guardo sua complexa teleologia, um ato meu, só meu, mas que insiste em afastar os que se aproximam muito. Um gatilho, enfim, que volta e meia me assalta, que me lembra o que sou, qual é meu minúsculo papel nessa republica de gigantes.

E por falar em gigantes, as lembranças involuntárias me vêm com A tensão superficial do tempo, romance do Tezza, recém lançado pela editora Todavia. Um livro de dicotomias: a escalada da polarização dos discursos está presente na boca dos personagens, uns ainda advogando por um “governo que só está começando” outros que sempre pugnaram sobre a imbecilidade do capitão no posto máximo de nossa Nação. Também, por muitas vezes, fica realçado o caráter antitético da Cultura e da Química – a disciplina que o professor Cândido ministra.

Amor é cultura, não química – disse-lhe Hélia, brincando com ele, um ano depois de juntados. E ele respondeu: Errado. Cultura é o que você inventa para justificar o que a química já fez com você.

Cândido, o professor, se vê enredado com uma família cujo patrono é um Procurador da República. Neste ponto, mais uma vez os polos opostos são erigidos, os muros são mostrados ao leitor; o Procurador justiceiro versus o Professor que pirateia filmes para a mãe, a solução dos grandes crimes contra uma contravenção banal. Este constante jogo de ambivalência é mostrado com a mestria costumeira do autor – um jogo de vozes intrincado, um fluxo de consciência constante, um rigor técnico que, por vezes, acaba deixando a leitura menos fluída.

Esse jogo de figuras antitéticas (como se tornou o Brasil de hoje) acaba desembocando em um inusitado paralelismo: qual a semelhança do instável Brasil atual com solidificadas regras químicas? Cândido, não tão otimista quanto o xará famoso de Voltaire, aproxima o cenário de guerra cultural em que vivemos com leis moleculares. E, assim, cria o conceito de moléculas culturais. Essa é sua explicação para como aspectos técnicos, cotidianos, gostos, preferências, tudo, de repente, se aglutina em nossas timelines, todos propulsores para ó ódio ao que é oposto.

De modo que, se você acha, como um liberal clássico, vamos supor, que é uma boa ideia privatizar os correios, você terá de levar junto no como cultural tupiniquim a defesa da pena de morte e ao mesmo tempo a criminalização do aborto, mais a Terra pana e o fim do Estado laico e o horror do globalismo, porque só Jesus salva; e se você acha que tudo que diga respeito ao sexo, do conceito do gênero à livre escolha da minha orientação afetiva, está na esfera da liberdade individual, e portanto se enquadra nos direitos inalienáveis da condição humana, que devem ser garantidos pelo contrato social das leis, você terá de levar junto, como se fosse venda casada, o monopólio da Petrobrás e a inquebrantável defesa dos privilegiados das corporações letradas.

 

Assim o Brasil cordial se perde; pela junção de temas técnicos, de nuances que vão se amontoando em dois grandes grupos, ou se é isso ou se é aquilo, a química ficcional de Tezza dá uma fórmula do que se tornou o país.

Bem, a ciência elucida um país dividido e arrasado. Mas e a memória involuntária que sai do livro, que me vem à cabeça, que me faz sentir um cheiro ruim, mas que é sinônimo de boas recordações? A química explica tal estímulo?

O outro gatilho que me ocorreu foi com os Passos Vermelhos de John, do meu conterrâneo Luigi Ricciardi. Os Passos Vermelhos vêm de uma tradição antiga, sedutora, de borrar os limites do real e do imaginário; é enciclopédico nos fatos históricos, é surpreendente na trama que enverga, mas sua maior genialidade é a fusão do que é registro e do que é delírio. Parte da premissa de que o célebre John dos Passos esteve em Maringá (um fato), narra uma paixão de nossos tempos, por whatsapp (uma ficção), e, no meio, finca o mito, a Maria do Ingá, a forte mulher que não apenas dá nome a cidade, mas que, principalmente, segue a identidade do seu povo.

E, se na Guerra cultural exposta através de fórmulas biológicas de Tezza as coisas se aglutinam, aqui, o mito ganha força pela sutileza, pelos mil véus da ficção, pelos artifícios que nos transportam de uma República real para um Império onírico.

Tal receita – um pé nos livros de História, o outro pisando nas nuvens – é usada como argumento para um romance que poderia ser classificado como policial ou histórico. A mistura do ‘Policial’ com a ‘História’ não é nova, disso sabe Ricciardi. Tal como nos romances de Ricardo Piglia, o mote persecutório, indiciário, não é só o objetivo para solucionar um crime; é, sobretudo, um meio para conhecer a História. A nossa própria história.

Com capítulos curtos, fragmentados, com um mosaico em que o casal Dos passos & Maria reflete o flerte de Dean & Aretha, a trama conta com espiões da KGB, revisita personagens reais, locais tombados e, com a benção da mitológica Maria, cria uma nova narrativa para uma cidade. Maria do Ingá assim se ergue não apenas como personagem, mas como mito fundador. Neste romance, a mulher se colore como uma forte sindicalista, mas Ricciardi e os demais (paranaenses ou não) sabem que a personagem não lhes pertence. A sindicalista Maria já veio na roupagem de sereia do lago barrento do Parque do Ingá (Alô, Demarchi) e certamente retornará, com outras roupagens, com outros véus, consolidando-se assim o que os teóricos chamam de Tradição.

Os passos vermelhos de John é da escola da Terra vermelha de Pelegrini, do Niihonjin do Nakasato, do Santo Reis da luz Divina, do Cremasco, de Chove sobre minha infância de Sanches Netto. Nasce não apenas como registro de boa literatura, mas também é, desde seu nascimento, o registro de um território, de um povo carente de escritores e de registros. Por tais romances, Peabiru, Maringá, Londrina dão suas caras, nosso povo pede licença ao eixo, empunhamos um cartão de visitas, talvez o mais importante nestes tempos em que o Paraná seja reconhecido (infelizmente) como sinônimo de um irracional conservadorismo.

A república do Paraná é feita destas (e de outras) letras. Vampiros do Sul, pés vermelhos do norte, ficcionistas influenciados pelas letras hispânicas dos nossos vizinhos portenhos e guaranis, feitos da colonização paulista, com resquícios de colônias italianas e japonesas, de sotaque caipira ou orgulhosos de sua fonética leitê quentê, ucranianos, alemães, nem todos tão conservadores assim – graças a Deus e a todos os mitos fundadores, paranaenses ou não – somos não apenas o nascedouro do crime (o tal Lava Jato) nem a panaceia do crime (a tal lava jato): que digam os outros da república do Paraná nos noticiários e programas políticos.

Para mim, é apenas um quadro (com grandes escritores) pendurado na parede.  Mas o cheiro de peixe… ah, como insiste em me assaltar.

Marcos Peres é servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Autor de O evangelho segundo Hitler (prêmios SESC 2012/2013, São Paulo de Literatura 2014 e finalista do Prêmio Jabuti 2014) e do romance policial Que fim levou Juliana Klein.

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