* Por Krishna Monteiro *

Então é isso a morte, pensou o poeta, ao olhar para a Velha Délhi não do alto, como sempre havia imaginado que seria; mas a partir de dentro: como se fosse – ele próprio – a antiga cidade murada.

Como se fosse ele próprio os pés que o pisavam. Pois sentia a pressão de solas e sapatos e sandálias, mas os pontos onde era pisado não lhe doíam como feridas, ao contrário: sentia também com aqueles pés. Sentia o contorno irregular das ruas; suas pedras, as poças d’água, a lama suja. Para sua surpresa, o poeta era, agora, ao mesmo tempo, pés e ruas, pressionando-se uns aos outros, como duas palmas de mãos rentes em prece.

Tomo um táxi rumo à Velha Délhi. No caminho, penso no poeta Ghalib, nascido em 1797, morto em 15 de fevereiro de 1869 em sua casa a poucas ruas da mesquita Jama Masjid e do Forte Vermelho.

O motorista de meu táxi buzina, projeta o carro nos cruzamentos; empenha-se na lei do mais forte que rege o trânsito na Índia. Mas é derrotado por caminhões que o fecham e obrigam a parar. Do outro lado da avenida, num canteiro à margem, debaixo da lona de uma barraca improvisada, uma moradora de rua tira as roupas da filha, que não deve ter mais de três anos. Despeja sobre ela o conteúdo de uma lata. Ralha com a menina que ri, gira, grita, levanta para o alto os braços, com eles perfurando a água. E penso em um verso de Ghalib:

 

بازیچۂ اطفال ہے دنیا مرے آگے ‎

ہوتا ہے شب و روز تماشا مرے آگ

 

O mundo se descortinando, como o jardim de uma criança

Renovado, noite e dia.

 

Caminhões abrem passagem. Uma revoada de pombos alça voo. O trânsito segue. Pouco a pouco, a Nova Délhi – a cidade de ruas largas, alamedas retas, curso previsível, construída pelos ingleses nos anos 1930 numa tentativa de deixar para trás a poeira, o calor e a convivência com humanos sobre os quais exerciam domínio e sequer consideravam humanos –, a Nova Délhi que hoje, após a partida dos britânicos, tornou-se a cidade dos políticos, dos financistas, a Nova Délhi, à medida que meu táxi abre caminho, cede lugar a camadas mais profundas e antigas:

muralhas construídas por imperadores mogóis quando meu próprio país era apenas uma praia onde homens nus como o primeiro homem assistiam, ao longe, despontar um artefato estranho, que mais tarde aprenderiam ser feito de casco, mastro e velas;

o Forte Vermelho, a partir do qual foram repelidas sucessões de invasores, até que o último dos mogóis se tornasse apenas um joguete dos britânicos e se conformasse em desempenhar, todos os dias, apenas para diversão de ingleses que riam e se abanavam do calor, o ritual das audiências;

e, em frente ao forte – onde o motorista freia de uma vez, enxuga o rosto e mostra o trânsito que começa a se afunilar à margem das primeiras vielas: “A partir daqui não é possível ir” –, em frente ao forte puxadores de riquixás dizem num coro de centenas de vozes, até há pouco acotoveladas umas às outras, e que de repente saltam, se levantam, correm ao me ver: dizem que por um valor mínimo me fariam atravessar a rua; que seriam o guia seguro pela Velha Délhi, a cidade antiga.

 

“Até a Velha Mesquita, Sir”

“Por havelis mogóis, Sir”

“Pelo mercado de especiarias”

“Até uma figueira de bengala escondida dentro de um pátio e que possui um tronco com a forma exata de um homem e cuja localização somente eu conheço, Sir”

“Até um calígrafo que é o último homem na terra a escrever em urdu clássico”

“Até o memorial de Ghalib, Sir”

 

Então é isso a morte, deve ter pensado Ghalib, batizado pelos pais de Mirza Asadullah Baig Khan. Mas que, com o tempo – quando se tornou mais e mais conhecido na corte mogol e seus versos começavam a repetir-se nas casas de chá da Velha Délhi –, com o tempo concluiu que o nome pelo qual o chamavam não era mais capaz de conter todo aquele somatório de experiências, de histórias e medos, de dores e cenas desejando ser escritas. E um dia, ao assinar pela primeira vez com o pincel:

 

Mirza Ghalib,

 

o poeta não pôde deixar de olhar para dentro de si. E viu morrer Asadullah Baig Khan; viu-o recolher-se numa região segura, sair de cena, sem qualquer sinal de rancor ou mágoa.

Fujo dos riquixás, abro sozinho meu percurso entre sucessões de ondas de carros. Chego em segurança à outra margem. Entro no primeiro beco. Um leproso salta de minhas leituras e lembranças do Antigo Testamento e se materializa em carne, sem nariz nem pálpebras; pede uma moeda. Mais adiante, numa loja, uma menina de echarpe açafrão encomenda convites para seu casamento. Um mendigo a olha fixo: ele tem a perna esquerda cortada à altura da coxa; aperta a muleta até o sangue quase lhe explodir os dedos. A menina segue. Examina contas de cerâmica. Acima dela, um samovar secando em todos os seus tons e brilhos na varanda olha com desprezo baldes de cobre, amontoados sobre a calçada. Uma moto corta, como uma quilha, todos nós. Antes que tenhamos tempo de nos reagrupar no vácuo, consigo ler no interior dele trechos da placa onde se diz que “Neste prédio, no ano de 1857, um grupo de combatentes da liberdade invadiu a sala do diretor inglês e ali mesmo o…” Sinto um baque nas costas; a multidão me obriga a seguir, alcançamos a porta de um pátio. Em seu interior, seis pequenas casas com portas esculpidas, envoltas por uma calma estranha, dispostas em círculo ao redor de uma figueira, parecem ter conseguido estancar o tempo.

Tempo que, para Ghalib, dizem ter sido implacável. Não para a fama e prestígio do poeta, que só cresceriam. Mas para sua língua-mãe; a cultura em que se expressava. No dia 12 de maio de 1857, na cidade de Meerut, a sessenta quilômetros de Délhi, um levante contra a ocupação britânica começa a se alastrar por todas as cidades do norte do país, não demorando a atingir a capital. Na sala de audiências do Forte Vermelho, o último dos imperadores mogóis, Bhahadur Shah Zafar, recebe emissários dos rebeldes. Há muito o ancião de 82 anos se conformara em reinar sob tutela dos ingleses. Pouco interesse tinha por disputas políticas. Preferia – segundo cronistas da época – passar as tardes escrevendo, declamando e lendo poesia urdu. De seu trono no salão de audiências, porém, o velho homem escuta os revoltosos evocarem a origem divina de sua dinastia; argumentos como: “Ninguém melhor que um venerável santo sufi para restaurar o império mogol, que chegou a contar com 160 milhões de súditos”. Aos poucos, o imperador-poeta passa a crer cada vez mais em palavras que argumentavam ser possível reverter a pulsação dos anos, sem dar-se conta de que elas traziam, na verdade, um subtexto – um aviso.

“É isso, então”, pensou Ghalib, ao juntar-se a outros milhares aglomerados em frente ao forte para ver sair acorrentado o velho e ingênuo soberano, logo após o cerco e vitória dos ingleses. Talvez tenha sido naquela noite que, após sentar-se à mesa, escreveu:

 

قید حیات و بند غم ، اصل میں دونوں ایک ہیں‎

موت سے پہلے آدمی غم سے نجات پائے کیوں

 

A prisão da vida e a escravidão do sofrimento são uma e a mesma coisa

Antes do início da morte, como o homem pode esperar ser livre da dor?

 

Saio do pátio, deixo para trás a figueira. Olho para cima: diagonais entrançadas de fios elétricos detém em si a eterna possibilidade de um incêndio que seria o fim de tudo; indiferentes a esse desfecho, que, de tanto se fazer possível, tão presente, apagou-se, num paradoxo, do rol de possibilidades, vendedores de chá esquentam em canecas de lata uma mistura de leite e açúcar caramelizado, vertem a fervura marrom na erva, passam-na pelo coador, distribuem-na em copos de cerâmica trocados por moedas daqueles dispostos em fila diante deles. Mergulho o pé numa massa escura. Ao tentar limpar-me, meu flanco se abre, vulnerável ao um condutor de riquixá que, meio brincando, meio sério, diz: “A partir daqui, Sir, comigo”. Sento no banco de trás. Ele sobe e desce no mesmo ritmo do corpo pedalando à minha frente.

No memorial de Ghalib, construído na casa onde o poeta passou seus últimos anos, meu desejo de ficar só e em silêncio encontra obstáculo na figura de outro estrangeiro, que insiste em me eleger como companhia. Sem que eu lhe pergunte, sua voz, como se apaixonada por si mesma, discorre sobre a “obscuridade” a que ficou relegado o poeta após a queda do último imperador mogol; sobre o exílio involuntário, no século XX, após a independência e divisão da Índia, dos escribas; sobre a morte dos calígrafos; sobre o esquecimento dos saraus em língua urdu nas casas de chá.

Retorno às ruas. Às minhas costas, ainda ouço fios da voz do especialista estrangeiro. Sem notar minha ausência, ela segue discursando, cada vez mais fraca. Mas à minha volta outra voz parece ganhar corpo; e quando tento identificar sua origem tenho a impressão de que nasce na verdade de um coro de pés, de mãos rentes em prece; de oferendas nas mesquitas; do chiado de frigideiras cozinhando receitas ancestrais; do contorno irregular das ruas; de suas pedras, das poças d’água, da lama suja. E olhando-me a partir de dentro, a antiga cidade murada repete o verso de Ghalib:

 

مستقبل دکھایا جائے گا

مجھے دیکھنے کے لئے کیا باقی رہتا ہے.

 

Somente o futuro irá relevar

O que resta para ser visto.

*

Krishna Monteiro é diplomata e escritor, autor do recém-lançado Mal de Lázaro

 

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