* Por Nilma Lacerda *

Os aviões da Cubana de Aviación eram aparelhos imponentes, de origem russa, e traziam memória de anedotas sobre sua antiguidade e resistência. Com saídas do Rio e pouco depois apenas de São Paulo, a companhia, uma das mais antigas da América Latina, perde espaço com a presença da Copa Air Lines, sediada no Panamá, e oferecendo amplo leque de cidades a partir do pequeno país que funciona como ponto de conexão para toda a América Latina e para a América do Norte.

Chegando ao Panamá, 26 de outubro de 2003.

A aeromoça anuncia os destinos proporcionados por este voo: México, Guaiaquil, Los Angeles, São José da Costa Rica, Miami, Santo Domingo, Bogotá, Medellín, Managua, Guatemala, Havana. A tal consciência latino-americana que o Macunaíma põe na cabeça cai sobre mim, um capuz benfazejo. No saguão do aeroporto, um grande luminoso: Bienvenidos a Panamá. Cable & Wireless comunica a Panamá. Ao redor, os anúncios de Bulgari, Guerlain, Samsung, Sony e o convite para o acúmulo de milhas One Pass da Copa Air Lines em parceria com Banco Uno e Mastercard.

A conexão para Havana não prevê muita espera. O tempo é suficiente para ir ao banheiro, tomar um café, dar um pequeno giro pelas cercanias do portão por onde ocorrerá o embarque. A quarta vez em que vou pisar o solo da Isla me enche de expectativas. Como estarão as pessoas que já aprendi a querer? Como estará a dura realidade que costumam enfrentar? Lectura 2003 acontecerá de 28 de outubro a 1° de novembro; na volta, faremos uma parada nesta Ciudad de Panamá.

Chegamos. Os barcos pararam. A Babalaorixá mandou o povo entregar os presentes, as comidas, as flores. As coisas, arrumadas em cestos, flutuavam um pouco e logo depois afundavam – Olorum estava lá embaixo esperando, com seus negros cabelos soltos, sua estrela vermelha na testa. Esperando, feliz, os presentes do povo.

Eu pensei que estava na hora de voltar, que a festa acabara.

Mas tive uma surpresa.

*

A Babalaorixá passou para o barco em que ia o cavalinho. 3 pescadores junto com ela. Eles seguraram o cavalinho pelas pernas. A Babalaorixá agarrou a cabeça dele, prendeu por baixo do braço, e com a mão esquerda puxou uma faca da cintura – na verdade era mais um punhal que uma faca. E furou-lhe os dois olhos!

O cavalinho berrou de dor e desespero. Os homens, então, o largaram. Ele esperneou um pouco dentro do barco e chaaa! mergulhou nas águas verdes do mar.

Eu estava impressionado com aquilo. “Para quê?” – eu perguntei. E uma pessoa me respondeu: – “O cavalinho é o presente preferido de Iemanjá. É pra ela levar a passear os afogados bonitos”. “E por que lhe furam os olhos?” – perguntei. “É pra ele não ver a praia e não voltar nadando. Cego e com dor, ele vai direto para o fundo.”

*

Quando eu voltei, tive uma surpresa reúne as cartas fac-similadas de Joel Rufino dos Santos a seu filho Nelson, por ocasião de sua prisão na ditadura militar brasileira. Por meio das longas e cuidadosas cartas, com histórias e desenhos, Joel preocupava-se em se fazer presente na vida do filho, tanto quanto esclarecer que não estava preso por ser bandido, mas por pensar diferente das pessoas que estavam no poder.

Havana, 28 de outubro de 2003.

Na sacola distribuída habitualmente aos inscritos no Congresso, vieram a programação impressa, nome e contato dos convidados etc., o bloco para anotações, marcadores de livros (“No hay amigo pequeño”) e o precioso pote de colônia Habana 1791, em primoroso recipiente de cerâmica branca, rolha de cortiça, vedação com cera, e identificação em letras azuis coloniais:

HABANA

1791

Aromas Coloniales

en la isla de Cvba

*

Hecho a Mano

En la

Calle de los Mercaderes

Numero           Entre Obrapia

156            y Lamparilla

Os aromas originais da colônia, de final do século XVIII, levavam o participante de Lectura ao frescor do azahar, a flor de laranjeira. Em tempo de fragrâncias sem os fortes fixadores contemporâneos, o perfume durava o tempo de um devaneio. Breve, mas intensas as sensações despertadas. Como nosso tempo em Havana. Lidia, camareira de meu quarto no hotel Vedado, me deseja “Doces sonhos e feliz estada”, em recado aqui reproduzido em tamanho original.

Minha bagagem e a de meu marido vêm sempre com artigos para serem doados aos amigos. O papel é um deles. Me lembro de uma correspondência de 1995, talvez, vinda de Havana, que chegou à Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Em uma única folha A4 havia a carta e o envelope com endereçamento e selo, na face externa do papel dobrado. Não há um congresso em que o bloqueio não seja lembrado como injustiça que move à resistência.

Embaixada do Brasil em Havana, 31 de outubro de 2003.

Lectura 2003 foi um congresso pujante, com participantes de vários países para além da América Latina. O Brasil estava particularmente bem representado. O livro para crianças, ponto central da programação, contou com bela conferência de Ana Maria Machado sobre Peter Pan, a criança sem memória. O embaixador brasileiro, Tilden Santiago, recebe algumas das pessoas de nosso grupo, no fomento das relações culturais Brasil-Cuba. Muito simpático, fala de sua história de padre operário, as pesquisas sobre o padre Sardinha, que, afinado com o pensamento de Martí, apoiou o projeto revolucionário de Fidel Castro. Pergunta ao grupo sobre a influência de figuras como Varela e Sardinha no Brasil. Ana Maria Machado lembra de Frei Caneca. Daí se vai a Tiradentes, Bonifácio, padre Roma. O embaixador cria uma situação de bem à vontade, no melhor estilo brasileiro, e leva cada um dos presentes a falar de si, explicitar sua presença no Lectura. Galeno Amorim, secretário de Cultura de Ribeirão Preto, expõe o projeto de implantação de 1200 salas de leitura nos espaços de atuação do projeto Fome Zero do Governo Federal. Luiza, filha de Ana Maria, diz que está ali de gaiata, mas surpreende com olhar lampejante quando o Doutor Heleno – um político profissional – se apresenta, a retórica de ocasião devidamente a postos, e entrega cartões de visita a todos.

Em naturalidade admirável, alternam-se no embaixador a dicção do intelectual e do homem simples. Laura Sandroni se apresenta, surge o nome de Joel Rufino, por duas vezes colega de cela de Tilden durante a ditadura militar. A manhã nublada, o belo jardim lá fora, esta sala de mármore e lareira (!), veem ressurgir as noites passadas na cela. As memórias esvanecem, nosso diplomata vem para o presente e mostra desempenhar bem uma das missões que o presidente Lula designou para ele: o intercâmbio entre as duas nações, o aprofundamento do diálogo político e a atenção aos jovens brasileiros que estudam em Cuba. “Não é fácil para quem traz a carga da política superar as contradições no viés da diplomacia, que é a arte de conciliar, e tem muito do Evangelho”, diz e abre a conversa para as opiniões políticas.

*

Na história ao início desta página, Iemanjá se enfureceu com o ato de crueldade humana para com o cavalinho, provocou uma tempestade terrível, incorporou na Babalaorixá e fez o povo prometer que nunca mais faria uma coisa como aquela. Com a ressalva de que aquela história era um pouco de verdade, um pouco de mentira, e que caberia ao filho descobrir o tanto de cada parte, o professor Joel Rufino – vivamente lembrado – deu uma bela lição de História. Se tivéssemos feito bem nosso dever como nação, teríamos conseguido as promessas de que nunca mais ocorreria o arbítrio que vitimou Joel Rufino, Tilden Santiago e tantos outros, tantas outras.

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