E m 1977, Carlos Drummond de Andrade fazia 75 anos, sem nunca ter dado uma entrevista sequer. Com toda a grande imprensa à sua procura, só uma jovem repórter de um pequeno jornal paulistano foi recebida por ele – e em seu apartamento, no Rio de Janeiro, aonde nem os amigos tinham acesso.

Quase 40 anos depois, a jornalista Nanete Neves conta essa história no livro O poeta e a foca (Editora Pasavento), descrevendo o encontro que rendeu uma matéria no Shopping-City News, um perfil do poeta na revista Nova e, principalmente, uma amizade, com troca de telefonemas e cartas. A autora relata também as conversas com intelectuais que lhe falaram do poeta recluso, suas esquisitices, sua visão de mundo e idiossincrasias pessoais, entre eles, Antônio Houaiss, Nélida Piñon, Ferreira Gullar, Affonso Romano de San’Ana, Antônio Callado, Pedro Nava entre outros.

Leia abaixo trechos da obra:

Cidade maravilhosa

Passava das 19 horas quando desembarquei no Santos Dumont e, de táxi, zarpei rumo ao apartamento do Louzeiro, em Botafogo. Contudo, mal sentei no sofá, ele foi direto ao ponto para cortar possíveis excessos de expectativa. “Você não vai conseguir chegar no homem, esquece. Ele não fala com estranhos nem recebe ligações. Chega a atender ao telefone fazendo voz de mulher para dizer que não está, é um caramujo. Mas quem sabe você consiga fazer pelo menos um perfil falando com os amigos dele. Só posso ajudar com uns nomes e uns telefones pra você começar”, disse abrindo sua agenda. E, em ordem alfabética, começou a ditar, mal esperando eu puxar um maço de folhas de lauda de dentro da bolsa. Ele ditava rápido, fui anotando do jeito que pude, feliz pelo calibre dos contatos que ele ia pescando ali: Affonso Romano de Sant’Anna, Antonio Callado, Antônio Houaiss, Ferreira Gullar, Nélida Piñon e Pedro Nava.

Quando achou que era suficiente, o velho jornalista fechou a agenda e, matreiro, me deu uma dica preciosa: “Diga sempre que você veio ao Rio exclusivamente para falar com eles, assim todos se desdobrarão para encontrar horários e, quem sabe, ainda possam indicar outras pessoas para você conversar. Daí pra frente você se vira”. Santo conselho! Faltava o principal, porém, e timidamente justifiquei: “Melhor eu ter, né?”. Meio relutante, Louzeiro acabou me passando o telefone e o endereço do Poeta. Nunca poderei agradecer o suficiente por isso.

Comecei a sentir um cheiro gostoso de sopa saindo da cozinha. Era hora de sair. Levantei e despedi-me rapidamente, afinal não tinha tempo a perder. No aperto de mão, o escritor com eterna alma de jornalista ainda pediu: “Me liga antes de voltar pra São Paulo pra contar o que conseguiu”. Concordei. E, receosa de incomodar, ainda arrisquei perguntar: “Até que chegue ao hotel, só vou conseguir ligar para as pessoas perto das 22 horas. Tudo bem ligar nesse horário?”. Ele garantiu que sim, que “escritores costumam dormir mais tarde”, me tranquilizando.

E foi o que fiz. Para mim, Drummond era uma tela em branco; precisava recolher dados para começar a compor a sua figura, e o tempo era curto. Quem era o homem? E o Poeta? Tudo o que conseguira era meia dúzia de nomes. Assim, naquela mesma noite, sentada na cama do quarto do hotel, comecei a série de telefonemas. Lembro perfeitamente que liguei para todos da lista que seguia uma ordem alfabética, pois não perderia tempo nem chance alguma.

A primeira ligação foi para o escritor, professor e crítico literário Affonso Romano de Sant’Anna, que, gentil, arrumou um tempo para mim logo no dia seguinte, entre uma aula e outra na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Soube depois que foi pura sorte encontrá-lo no Rio naquela época. Affonso tinha acabado de voltar de uma temporada dando aulas de literatura brasileira no Texas e já se preparava para um período de ensino em Colônia, na Alemanha, enquanto finalizava outro de seus livros de poemas.

Sentados em um banco do jardim, protegidos na sombra de um imenso salgueiro do sol ainda suave naquele início de manhã, Affonso iniciou dizendo que conhecera o Poeta em 1955, quando era ainda adolescente. Mas admitiu que sempre teve medo do mito que o cercava. E relatou uma passagem que por si só exemplifica a aura de respeito que Drummond sempre inspirou.

“Basta dizer que um dia vim de Minas Gerais especialmente para falar com ele, mostrar-lhe uns escritos. Mas, quando entrei no elevador, vi que ele já estava lá e continuou olhando para baixo. Se fosse outra pessoa, eu teria puxado conversa, tentaria pelo menos um cumprimento formal. Mas era Drummond. Certo de que ele havia me visto e não queria conversar, voltei imediatamente para Minas totalmente frustrado e com meu material debaixo do braço. No entanto, tempos depois, quando eu preparava a minha tese de análise global sobre sua obra, Drummond me emprestou mais de 500 artigos que poderiam me ajudar. Esse meu trabalho recebeu quatro prêmios importantes – do Instituto Nacional do Livro, da União Brasileira de Escritores, da Fundação de Cultura do Distrito Federal e da Secretaria de Cultura da antiga Guanabara. Hoje, eu sei quem é Drummond. Temos um relacionamento profissional amigável. Não peço nada a ele, para não o constranger. Sei como ele é. Nosso contato é geralmente pelo telefone. Através desse meio de comunicação ele é um grande conversador, mas fala quase só, para não abrir espaço a perguntas. E se você quer saber minha opinião, ele é o maior poeta do século”, me disse Affonso, num depoimento amoroso sobre o seu primeiro grande ídolo e, agora, colega.

Preocupado com o horário, Affonso despediu-se me desejando boa sorte e colocando-se à disposição caso eu precisasse de algo mais. Antes, me passou os telefones de dois estudiosos da obra de Drummond que poderiam me ajudar com importantes informações. Fiquei ainda um tempo por ali no jardim da Universidade, observando os estudantes que passavam, refletindo sobre o que ouvira, fazendo anotações. Começava a somar os primeiros dados sobre o Poeta. Depois do Louzeiro, Affonso era a segunda pessoa que me falava dessa tal “aura de respeito” que Drummond inspirava, mesmo entre os iguais – o que me deixava a sensação de estar ainda bem longe de conseguir cumprir minha missão. Isso tudo me deixava ainda mais fascinada pela personalidade dele.”

Rabiscos de um retrato

A sexta-feira, dia 21 de outubro, amanheceu clara, com o céu limpo prometendo outro dia de sol. Levantei cedo para otimizar o tempo e, com meu jeans de sempre, uma blusinha simpática e sandálias baixas, saí animada para mais uma jornada carioca. Tinha várias entrevistas agendadas a partir das 11 horas, por isso decidi começar o dia ali mesmo pelo centro da cidade e me dirigi até o número 46 da avenida Rio Branco. Meu alvo: o Iphan. Me interessava também conhecer outras duas facetas do meu personagem: o Drummond-chefe e o Drummond-colega-de-trabalho.

Fazia quinze anos que ele se aposentara. Haveria ainda ali quem tivesse sido seu colega? Com a ajuda simpática de um senhor alto e negro, uma espécie de assistente geral, ou contínuo, como se dizia, constatei que sim. Ciceroneada por aquele homem, circulei por várias seções daquele edifício histórico, e de todos ouvi que o antigo chefe era calado, organizado e inspirava respeito, por isso ninguém ousava puxar muita conversa. Uma senhora contou que ele era também bastante metódico. Costumava chegar cedo e pontualmente à repartição e só começava a despachar depois de dar uma passada de olhos por, pelo menos, dois jornais. Um senhor que aparentava estar próximo dos 70 anos ainda me contou que Drummond raramente tomava café. “Ele às vezes reclamava do estômago. Dizia que café dava-lhe queimação”, disse.

Várias pessoas ali, quando descobriam que eu estava colhendo impressões sobre o ex-colega ilustre, chegavam-se ao grupinho que se formou ao meu redor. Todos queriam acrescentar algo. Uma senhora gorducha de cabelos pintados num “vermelho Rita Lee” contou que Drummond era exigente, muito cioso do dinheiro público, porém nada chegado a dar aumento de salários para a equipe, alegando sempre que o país estava em crise. “Mas não se constrangia em usar a máquina ociosa do ministério. Escrevia poesias durante o expediente e pedia para datilografarmos quando tivéssemos uma folga”, disse. Completou, pesarosa: “Ele ficou tão famoso que me arrependo de não ter guardado aqueles originais manuscritos”. Depois pediu, preocupada: “Você não vai colocar meu nome nisso, né?”.

Ao falar do antigo funcionário, Edson de Brito Maia, chefe do arquivo e da biblioteca do Iphan naquele 1977 colaborou com informações importantes. “Quando o dr. Drummond era chefe da seção de História, tínhamos com ele um contato diário. Humano e amigo, ele ajudou a todos nós. Hoje, ainda colabora com o arquivo cedendo recortes importantes. Vem todas as semanas para ler e faz anotações, muito concentrado. É a pessoa mais eficiente que vimos trabalhar. Toda a organização do Iphan é obra dele. Mas vou te contar um segredo que ouvi de Judith Martins, a funcionária que o substituiu quando se aposentou: ele gosta de ouvir piadas apimentadas para depois recontá-las aos amigos.”

Um traço inesperado (e divertido) do Poeta que me ajudaria bastante a compor o seu perfil.

Aliás, fazendo um parêntesis aqui, há alguns anos li na excelente biografia Clarice, feita pelo norte-americano Benjamin Moser, num trecho em que ele fala do interesse da Lispector sobre coisas ligadas ao sexo, que ela e Drummond trocavam revistas pornográficas importadas. Eu não duvido, uma vez que o Poeta era de Escorpião e, como asseguram os astrólogos, os nativos desse signo são providos de grande sexualidade e interesse pela coisa…

Na época lamentei não ter conseguido o contato de Clarice, de quem tinha lido alguns livros. Teria adorado conhecer essa mulher tão intrigante quanto talentosa. Só depois fui descobrir por que a protegeram tanto: naqueles dias em que eu circulava pelo Rio ela já estava bastante adoentada. E, detalhe, A hora da estrela, uma das mais belas obras dessa escritora, seria lançada na quarta-feira seguinte, precisamente no dia 26 de outubro, pouco antes do aniversário do Poeta. Jamais poderíamos imaginar que aquele seria o seu último livro em vida. Dias depois do lançamento, a atormentada Clarice daria entrada no hospital, vindo a morrer, de câncer no ovário. Sobre o falecimento da amiga, Drummond escreveu:

“Clarice/ veio de um mistério, partiu para outro/ Ficamos sem saber a essência do mistério/

Ou o mistério não era essencial/ Essencial era Clarice bulindo no fundo mais fundo/

Onde a palavra parece encontrar/ sua razão de ser e retratar o homem…”

Triste é agora perceber que, enquanto os cadernos culturais brasileiros festejavam o aniversário de Drummond, sua amiga Clarice, dezoito anos mais jovem do que ele, estava passando maus bocados e não chegaria a completar o próprio, falecendo em 9 de dezembro de 1977, véspera do dia em que completaria 57 anos.

Mas voltando à visita ao Iphan, satisfeita com o que apurara e de olho no relógio para não atrasar na primeira entrevista do dia, quando já me encaminhava para o portão principal o tal contínuo chegou junto a mim no corredor, jogou algo dentro da bolsa grande que eu carregava (tipo sacola, muito em moda naquela época), dizendo baixinho em meu ouvido, em seu tom baixo-profundo: “Não conheço você, nunca te vi”.

Foi tudo muito rápido, e, juro, me senti como num filme policial. Saí fingindo tranquilidade daquele edifício histórico. Alguns metros adiante, apressei o passo, o coração batendo a milhão. Só parei depois de virar o quarteirão. Foi quando vi um envelope pardo e, dentro dele, a reprodução da foto de um Drummond jovem, datada da época em que ele ingressou no Iphan, com dedicatória dele para o poeta Mário de Andrade. Que presentão!

Agora eu já conseguia começar a visualizar a minha matéria no jornal. Mentalmente mandei um beijo de agradecimento a esse homem cujo nome eu esqueci a seu pedido, mas de quem sempre vou lembrar como o meu anjo negro, alguém que gostou de mim assim, de graça.”

A concha do caramujo

— Carlos, posso te pedir uma coisa?

— Mas é claro, minha filha.

— Posso escrever sobre tudo o que conversamos?

— Mas você não anotou nada…

— Não anotei, mas está tudo aqui, ó — disse, apontando para a minha cabeça.

— Isso seria importante para você?

— Seria, muito.

— Então tudo bem, mas com uma condição.

Já temerosa, perguntei:

— Qual?

— Você vir aqui pessoalmente trazer a matéria para mim depois de publicada.”

 

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