Por Sérgio Tavares *

Quatro anos após conquistar o Prêmio Sesc de Literatura, com a coletânea de contos Réveillon e outros dias, o escritor paulista Rafael Gallo resgata de algumas de suas narrativas a substância densa de um desnorteio emocional para compor seu primeiro romance.

Rebentar [editora Record] é protagonizado por Ângela, que decide renunciar o luto de seu filho, Felipe, passados 30 anos do seu desaparecimento. A decisão, no entanto, irá desencadear um série de conflitos internos e eternos com aqueles que orbitam magnetizados por essa história de dor e de incertezas.

Em entrevista à São Paulo Review, Gallo fala sobre o processo de construção do livro: a maturação da ideia inicial, o trabalho de pesquisa, a busca pelo tom correto de tratar um tema tão delicado. Uma obra vigorosa que, lançada há poucos meses, já acumula elogios da crítica especializada e daqueles que, tal como a personagem, passaram por drama semelhante. “Uma mãe de filho desaparecido me contatou pela internet, dizendo que havia lido o livro e gostado muito”, revela o autor.

Você toca num tema delicado, o desaparecimento de criança, que é normalmente relegado às tramas policiais, em razão do luto dos pais ser complexo e, ao mesmo tempo, íntimo demais para ser transposto fielmente para a ficção. Contudo, você não apenas o faz de maneira segura, como o disseca em todas as suas superfícies emocionais. Qual foi o seu primeiro contato com a ideia e quando esteve certo de que havia ali um livro a ser escrito? No começo, eu pensei na história de Rebentar como um conto. Eu já havia tratado de questões familiares difíceis em dois contos do meu primeiro livro, e foram os textos que mais gostei e que os leitores também pareceram ter entre seus prediletos. Estava buscando outras histórias desse tipo, quando me veio a ideia de escrever sobre uma mãe com um filho desaparecido. Mas eu queria trazer uma abordagem diferente a essa situação, não fazer mais uma história sobre a busca, sobre o suspense ‘se o filho vai ser encontrado ou não e onde’, como tantos filmes já realizaram. A partir daí, cheguei a esse momento diferente: o de uma mãe que, depois de muito tempo – 30 anos – decide se dar o direito de aceitar o fim da história com o filho para recomeçar sua vida. Quando comecei a pensar um pouco mais sobre esse tema, percebi que o luto de 30 anos, o desmonte emocional dessa perda e a reorganização de todo o universo da mãe não ficariam muito bem em uma narrativa curta. O tempo desse processo precisava ser pesado, precisava ser sentido. Então, pensei que seria melhor escrever um romance, dedicar um livro todo a essa história. E acho que foi uma boa escolha.

Essa decisão de transportar a ideia dos limites do conto para os do romance demanda um esforço muito mais técnico que criativo, concorda? Organizar os tempos narrativos, construir personagens, estabelecer bases sólidas onde o enredo possa se sustentar. No caso de ‘Rebentar’, é muito evidente o trabalho de pesquisa. Como foi buscar informações para o livro? O que de real foi emprestado para a ficção? Não sei se é exatamente muito mais técnico do que criativo. Pelo menos para mim, na literatura, a técnica e a criatividade são quase uma coisa única. Claro que há os elementos que pertencem mais a um lado do que a outro, mas quando penso que preciso construir a estrutura do livro, por exemplo, penso no que preciso criar para essa estrutura se configurar. Técnica e criatividade são como o arco e a flecha, só se realizam algo quando formam a combinação. Quanto à pesquisa, ela foi fundamental para conhecer melhor o universo – pessoal e social – das famílias com filhos desaparecidos. Há muitas coisas nesse mundo que a gente não imagina a princípio, pelo menos não com tanta precisão. Por exemplo, o fato de que há poucos recursos de segurança, políticos e sociais para essas famílias. Há 30 anos, então, não havia praticamente nada que era feito, a não ser ficar rodando e chamando pelo filho. No universo pessoal, são tantos detalhes que não pensamos… E esses detalhes têm uma potência muito grande. Por exemplo, cito no livro o envelhecimento digital, que é uma tecnologia de produzir um retrato por computador, o qual simule como a criança poderia estar atualmente, depois de décadas. Você pode pensar que é uma grande ajuda para buscas, e é, mas o impacto de ver um rosto adulto, completamente adulterado em sua fisionomia, pode ser um choque tremendo para as mães. A sensação de que perdera o filho novamente. Esses traços da realidade – as contingências com as quais muitas das famílias têm de lidar – são algo que apreendi mais da realidade, porém os personagens do livro e o que acontece com eles em específico é tudo ficcional. Rebentar não é uma história baseada em fatos reais ou que tenha personagens que emulem certas pessoas.

Seguindo nessa seara do processo criativo, como foi o caminho de escrita do livro? O livro evoluiu de maneira linear, como agora chega ao leitor, ou você o escreveu de maneira fragmentada? Quanto tempo levou para ficar pronto? Não o escrevi de maneira linear. O início do livro foi uma das últimas coisas que escrevi. E, de vez em quando, eu dava uns saltos, saindo de um trecho do segundo capítulo para trabalhar no sexto, por exemplo, e depois voltar. Não foi uma escrita totalmente fragmentada, mas em parte sim. Tiveram alguns trechos, também, que eu havia inserido em um determinando ponto, mas depois trocava de lugar. Não costumo estruturar tudo previamente, então a estrutura vai se formando conforme vou escrevendo. Não que eu improvise tudo, mas tampouco pré-planejo. A escrita do livro durou uns dois anos e meio, quase três anos.

Ainda há pouco falamos da importância da pesquisa para a história. E quanto ao pacto com a ficção? Quais livros e escritores estiveram ao seu lado durante o período de composição do romance? O João Anzanello Carrascoza, que assina a orelha, foi uma leitura presente, não? Sim, o trabalho do Carrascoza foi fundamental para mim. Apesar do tema sombrio, Rebentar é um livro bem ‘iluminado’, de certa maneira. A renúncia de Ângela, a protagonista, quanto ao filho desaparecido, é também a escolha por se dar o direito de viver sem estar o tempo inteiro sob a sombra do luto, da perda que poderia ser revertida. E isso passa por ter uma convivência mais aproximada com a família, com seus vínculos afetivos e as experiências que estes podem oferecer. Escrever esse tipo de coisa – uma família que se ama e se dá bem, um casamento feliz, etc. – sem cair na pieguice não é nada simples. Eu estava me debatendo bastante com a busca pelo tom certo, quando descobri (tardiamente, eu sei) o trabalho do Carrascoza. Foi aquele tipo de leitura que nos faz sentir que encontramos o caminho. É a grande ‘eureka’ do escritor. Porque ele escreve bastante sobre esses tipos de relações, e faz isso com excelência. Eu não conheço um escritor na literatura brasileira que faça o que ele faz, com quem pudesse compará-lo. Li, de uma vez, quase todos os livros dele, e isso foi como ter um mestre me ensinando. Quando o convidei para fazer o texto da orelha, foi mais uma homenagem a ele do que outra coisa. E ter a minha grande referência ali, me referendando, é algo que dá uma felicidade enorme. Eu não poderia me sentir mais agraciado.

Você vem de uma estreia premiada e muito bem recebida pela crítica. Qual foi o peso que isso trouxe para a composição do romance, sobretudo na apresentação para a editora? Havia essa preocupação de se confirmar como escritor, uma autocrítica constante? Eu sempre fico em dúvida sobre o que dizer quanto a isso. Eu não fico me cobrando no sentido de pensar ‘Putz, esse livro precisa ir tão bem quanto o ‘Réveillon…’, ou melhor’, sabe? Não existe essa cobrança extrínseca, exatamente, de pensar no que agradaria a editora, a crítica, os leitores ou quem quer que seja. Quando escrevo, o jogo acirrado é só comigo. Ao mesmo tempo, eu provavelmente não teria investido tanta energia e dedicação ao Rebentar se não tivesse já um trabalho mais sólido como escritor, que o Prêmio Sesc e a Record me proporcionaram antes. Acho que é como se tudo isso me desse uma responsabilidade maior sobre meu texto, não exatamente uma cobrança. A experiência literária me deu maior capacidade enquanto escritor. Há uma parte de cobrança pessoal, talvez, mas é a que sempre tive comigo mesmo, e o fato de poder estar na posição de escritor tal qual mencionei também me dá uma segurança para escrever mais a fundo, me chama para isso. O peso, como você falou, não é somente algo que cai sobre meus ombros, mas também um apoio sob meus pés. No fim, é sobretudo uma força a meu lado.

Há um momento recente ao desaparecimento do filho que Ângela encontra refúgio num cais antigo, levando horas em silêncio, defronte ao mar. Como lhe veio essa analogia, a relação do mar com a dor do sumiço do filho? E quando se descortinou o título para você, em que parte desse processo? Quando eu estava começando a pensar na história, me veio a ideia de usar o conceito de rebento. Eu não sabia praticamente nada sobre o enredo, apenas que se referiria a uma mãe de um filho desaparecido que decide dar um fim a sua busca e recomeçar a vida. Assim, o conceito de rebento funcionava como referência ao filho e a esse segundo rebentar, ou seja, ao romper dessa cadeia de espera e busca para ter um recomeço. Deixei a ideia descansar por um tempo e, em certa ocasião, me veio a imagem dessa mulher à beira-mar, em um canto isolado, pensando sobre sua vida. Essa imagem foi o primeiro grão do que viria a ser o romance Rebentar. A partir dela, me surgiram várias ideias sobre a história, sobre a protagonista. A conexão com o rebentar das ondas do mar ficou clara e aí decidi utilizar a palavra como título e com seus vários sentidos ao longo da história.

O livro já começou a ter leituras críticas e, imagino, de outras naturezas, inclusive daqueles que você buscou informações para compô-lo. Qual o retorno que veio dessas pessoas que passaram pela mesma dor que a da Ângela? É legal você perguntar isso, porque uma das coisas que me amedrontavam um pouco era a possibilidade de uma mãe de filho desaparecido sentir-se ofendida pelo livro. É um tema muito delicado, e para a maioria das mães a busca e a esperança são tudo o que elas têm, é algo sagrado. Um cara aparecer falando de uma mãe que decide dar fim a tudo isso pode ser meio chocante. Mas tem acontecido justamente o contrário. Além da receptividade positiva nas ONGs para as quais dei exemplares do livro, uma mãe de filho desaparecido me contatou pela internet, dizendo que havia lido o livro e gostado muito. Ela se identificou bastante com a história e gostou de como abordei o tema. Acho que alguém contar a história dessas mães já é algo que pode trazer algo de positivo para elas. Eu me sinto tocado também por esse retorno, acho que é uma grande troca.

Você sabe o que aconteceu com Felipe? Não tenho a menor ideia.

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Sérgio Tavares é autor de Queda da própria altura, finalista do Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura

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