Ecos de 1968

* Por Alexandre Staut *

Em 1968 – Quando a Terra tremeu (editora Vestígio), Roberto Sander traz histórias saborosas sobre política, economia, ciência, moda, comportamento, esporte e cultura em geral, daquele que foi um ano complexo, assombroso e sedutor. 1968 é um ano-chave na história mundial , de tantos episódios emblemáticos: Maio Francês e a Primavera de Praga, na Europa, e a Passeata dos Cem Mil e a imposição do temido AI-5, num Brasil subjugado pelo regime militar. A abordagem do jornalista Roberto Sander, contudo, não se limita aos acontecimentos políticos. Ele faz um painel, numa narrativa que avança mês a mês, tratando de assuntos diversos como a primeira visita ao Brasil de um arredio Mick Jagger; a África do Sul do Apartheid, onde acontecia o primeiro transplante de coração bem-sucedido do mundo; Havana, onde Fidel Castro fazia um expurgo no Partido Comunista cubano; e as viagens espaciais que preparavam a chegada do homem à Lua. Abaixo ele diz sobre suas descobertas ao pesquisar o ano de 1968:

As grandes surpresas que descobriu fazendo pesquisas para o livro 

Foram muitas surpresas. Sabia que 1968 havia produzido um grande impacto na sociedade, mas quando me defrontei com os acontecimentos, por mais que alguns fossem bem conhecidos, fiquei definitivamente seduzido por este período. Cito, como exemplo de episódios me espantaram particularmente, as crescentes tensões no Oriente Médio (causados pelos conflitos entre Israel e os países árabes da região) que determinaram, depois de uma conferência no Cairo, a intensificação das atividades de grupos terroristas contra Israel reunidos em torno do Fatah, fundado por Yasser Arafat. Como consequência, um ano depois, o próprio Arafat assumiria a presidência da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). No plano nacional, fiquei bastante impactado ao esmiuçar a chamada Batalha da Rua Maria Antônia, em São Paulo, quando estudantes da USP e da Universidade Mackenzie entraram em violento choque. Ali estava bem delineada a divisão que existia no Brasil entre aqueles que combatiam a ditadura (representados pelos estudantes da USP) e os que a apoiavam (representados pelos estudantes da Mackenzie). Mas é impossível se referir a 1968 sem mencionar o Maio Francês, à Primavera de Praga e à Passeata dos Cem mil e o AI-5 no Brasil que também são retratados no livro.

Ecos de 1968 na política e na economia

Na política, 1968 é marcado por uma onda de protestos em todo mundo. O que aconteceu, pelo que pesquisei, foi uma reação da juventude que se sentia acuada pelas pressões de mais de duas décadas de Guerra Fria. Por isso, ela buscava encontrar um novo rumo, uma nova ética. Foi assim que acabou tornando o que aparentava ser uma agitação esporádica numa força emergente na história contemporânea. Foi, na verdade, uma resistência aos processos de manipulação das grandes mídias que difundiam a ideologia capitalista. Paralelamente, havia também rejeição ao socialismo opressivo operado pela União Soviética nos países do leste Europeu. Os rebeldes parisienses diziam que “a humanidade só seria feliz quando o último capitalista fosse enforcado nas tripas do último burocrata stalinista”. Já no Brasil acontecia um processo de marchas e contramarchas em relação aos destinos da ditadura. Foi um ano inteiro de pressões da sociedade civil para que o regime militar chegasse ao fim com a volta da democracia. No próprio núcleo do governo existiam correntes mais e menos radicais. Acabou prevalecendo a vontade da linha dura que impôs o AI-5 e o início dos chamados Anos de Chumbo, quando, com o Congresso fechado e a censura em pleno vigor, se institucionalizou a tortura, as prisões arbitrárias e as perseguições políticas no país. No plano econômico, 1968 se caracterizou pela tentativa de o governo brasileiro controlar a inflação através de um rígido arrocho salarial. Era o preço que o capital estrangeiro cobrava para se sentir seguro no Brasil. Isso foi possível com a manutenção da classe trabalhadora em silêncio, totalmente imobilizada pela intervenção nos sindicatos. Mesmo assim, em sinal de resistência, pipocaram as primeiras greves (a de Osasco é narrada em detalhes no livro) num prenúncio do que aconteceria pouco mais de uma década depois com o surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT).

Ecos de 1968 nos costumes e no comportamento

Sem dúvida alguma, apesar das resistências dos conservadores, 1968 representou o início de um novo ciclo comportamental. Daquela torrente de protestos emergia uma nova consciência ecológica, as primeiras ONGs, os primeiros movimentos feministas, de direitos humanos, dos negros, de defesa dos animais e das minorias. Foi quando explodiu também o movimento hippie como consequência, entre outras coisas, da negação ao belicismo norte-americano na Guerra do Vietnã – bastante retratada no livro. Os cabelos e as barbas cresciam, as roupas se coloriam, anéis, tiaras, pulseiras e colares enfeitavam os jovens, mulheres deixavam os sutiãs de lado e aderiam à pílula anticoncepcional em massa – o amor livre era a novidade. Por outro lado, as drogas proliferaram, despertando um novo tipo de consciência, mas trazendo também fuga e dor. A morte de Jimi Hendrix, em 1970, aos 27 anos, foi sem dúvida reflexo do lado trágico dessa insurreição.

Ecos de 1968 na cultura 

Toda essa efervescência não tinha como deixar de se refletir na música e nas artes em geral. A trilha sonora era o rock dos Beatles, do Rolling Stones, de Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison. Tudo isso desaguaria em festivais como o mitológico Woodstock que aconteceria em 1969. No Brasil também vivíamos a era dos festivais. Eram os tempos das músicas de protesto, do tropicalismo, da introdução da guitarra elétrica e da nova MPB. Nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo e Elis Regina se firmavam no cenário musical do país. Particularmente, Gil e Caetano sofreram nessa época. O último texto do livro, por exemplo, é dedicado a narrar a prisão de ambos pelo regime militar duas semanas depois da edição do AI-5, já no apagar das luzes de 1968. A justificativa para a detenção, em 27 de dezembro, foi um show que tinham apresentado com Os Mutantes. Neste show, o palco foi ornamentado com uma montagem do artista plástico tropicalista Helio Oiticica, na qual o bandido ‘Cara de Cavalo’, recentemente morto pela polícia, era representado por um boneco com os dizeres: “Seja um bandido, seja um herói”. Gil e Caetano acabaram obrigados a deixar o país, se exilando em Londres. No teatro, o ataque, em São Paulo, à peça Roda-Viva, do diretor José Celso Martinez Corrêa – uma ruptura em relação ao teatro tradicional – por membros da organização CCC (Comando de Caça a Comunistas) também simbolizava uma resistência ao moderno e a qualquer tipo de questionamento ao status quo.

Ecos de 1968 para a paz mundial 

O livro apresenta três momentos de 1968 que simbolizam a luta pela paz mundial. O primeiro é o questionamento dos jovens norte-americanos da Guerra do Vietnã. O lema “Paz e amor” se transformava numa espécie de mantra que se disseminava pelo mundo. As deserções aconteciam em massa e o governo dos Estados Unidos começou a ser fortemente pressionado a encerrar a sua participação no conflito. Em maio de 1968, o livro narra a Conferência de Paris, quando, pela primeira vez, representantes de Hanói e Washington se reúnem para discutir a paz. Não houve qualquer acordo para que se colocasse um ponto final na guerra naquele momento, mas foi um primeiro passo para que, em 1973, Henry Kissinger, pelos Estados Unidos, e Le Duc Tho, pelo Vietnã do Norte, assinassem os Acordos de Paz de Paris. Também nos Estados Unidos o assassinato de Martin Luther King, ativista dos direitos dos negros, tem um simbolismo fortíssimo retratado no livro. Coincidentemente, em 68, numa África do Sul dominada pela política do Apartheid, o cirurgião Christiaan Barnard fazia um transplante do coração de um homem negro para um homem branco. Diante de afirmações racistas de que o procedimento não daria certo por causa da cor do doador, Barnard reuniu a imprensa numa entrevista coletiva para garantir que os negros eram excelentes doadores por raramente terem doenças cardíacas. De fato, o dentista branco Philip Blaiberg, que recebeu o coração de um negro, viveria ainda por um ano e meio, o que nunca havia acontecido com nenhum outro transplantado. Era mais um preconceito varrido pelos ventos libertários de 1968.

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1968 – Quando a Terra tremeu (editora Vestígio, 304 págs.), Roberto Sander

 

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