Por Raimundo Neto *

Sobre o escritor e suas fontes:

Quem acompanha Alex Sens desde os idos tempos de suas iniciativas literárias em revistas e blogs, ao ler O frágil toque dos mutilados pode pensar que deu grandes goles na consistência poética e firme de duas de suas escritoras sempre mencionadas como preferidas, Virginia Woolf e Lionel Shriver. Creio que não apenas goles. Alex Sens mergulhou nos mares profundos de Shriver e Woolf, com sede; um mergulho preparado e ensaiado há anos, desejado; um salto ornamental para as profundezas literárias de suas referências; um mergulho preparado com distância e competência; treino e paciência; coragem e risco. Alex Sens mergulhou no mar invencível de Shriver e Woolf e conseguiu, sem afogar-se, ser outro. Trata-se de uma escrita sólida de um autor maduro sobre relações fraturadas.

Só quem leu Virginia Woolf sabe o prazer vibrante que é ver-se refletido nas águas profundas de todos os sentidos escritos em seus livros. Só quem leu Lionel Shriver  sabe o que é esperar com uma ânsia infantil cada próximo livro. Os escritos de ambas dificilmente passam pelos leitores sem deixar estilhaços de impressões e condenar vontades: impossível manter-se leitor competente sem Woolf e Shriver. Assim também, só quem leu Alex Sens sabe, agora, o que é esperar ver-se mais e tantas vezes refletido nas dores de personagens tão humanos, tão eu-você. Para os jovens leitores que estão descobrindo livros e escritores pela internet, ou participando de eventos literários, promoções de livros, acompanhando páginas de editoras no Facebook e em outras redes, conhecer as linhas de Alex Sens é um preparo até Virginia Woolf e Lionel Shriver. Alex é um grande e novo nome da literatura brasileira contemporânea, capaz de levar leitores a agarrar-se a seus escritores e ainda a descobrirem grandes outros autores. Alex é chegada e partida .

Sobre as linhas e tempestades íntimas:

Dividido em três partes (Aproximação, Toque, Choque), em O frágil toque dos mutilados, os dias vazam contados. Uma odisseia de uma vida íntima, de uma personagem intrigante, através da qual todas as outras personagens existem: nenhum deles é qualquer coisa além do que se revela através da acidez perturbadora de Magnólia. Todo amor é posto à prova. Como se todo amor fosse uma provação: Vencer o amor é um modo de fazer-se amando e amado. Estar sóbrio e aos pedaços: é assim que se faz amado. Mutilado e líquido: é assim que se ama. O amor é sacrificado, eufórico, voraz, impetuoso. Mas quem sobrevive quando o amor revela-se arma e escudo?

Parece-me, no início, que tudo o que eu poderia saber sobre o livro é que Magnólia convive com o Transtorno de Personalidade Borderline; que Orlando é o vício aprendido dos que se entendem sobreviventes de tragédias incontornáveis; que Muriel e Tomas vivem plácidos na passividade que se instala com a morte de Sara (um acidente que vibra dentro de um mistério); que Leopoldo é digno de pena; que Lourenço tem o pecado correndo sob a pele; que Herbert é a prudência irritada de um amor incapaz de desfazer-se completamente; Elisa é o otimismo encantado vivendo numa dimensão ridiculamente paralela e adoecida; Laura é o bom gosto exagerado tendendo à ridicularia repleta de compaixão; que Alister e Tomas vivem um amor romântico recém-descoberto, brotando e fluindo de uma dor ainda recente, e talvez perpétua. Que Sara é o início e o fim de tudo.

Mas não é apenas isso. Todos eles são mutilados numa trama densa que leva o leitor (pelo menos, foi a minha experiência) ao fundo de si.

Magnólia sustenta a certeza de que é possível o controle de si, de controlar o que reside em si como um transtorno sem limites. Uma certeza intrigada com a prudência. Controlar o quê? Que demônio vive no transtorno Borderline que precisa ser contido; que bicho mora no corpo, que impulso escorrega pelas palavras e mutila, esmaga, machuca quaisquer vínculos? Magnólia quer seu demônio fora do corpo, porque ninguém consegue abraçar o Diabo sem vender um pouco (ou tudo) da própria felicidade. E então os ditos ácidos, as ironias derramadas, os gritos ventilados em sopros rebeldes: então Herbert, Orlando, Muriel, Tomas, Elisa, todos descobrem suas próprias feridas; é quando as relações se revelam frágeis.

Nada em Magnólia é proposital; sua natureza nebulosa é espontânea. O início das interações com as pessoas que ama segue o ritmo de uma chuva mansa, que respinga cadente, silenciosa, em manhãs abrasivas e então, de repente, engrossa, troveja, precipita e inunda qualquer pessoa.

O “Eu te amo” e o “Eu te odeio” de Magnólia são gêmeos siameses: ocupam o mesmo espaço no corpo costurado pela natureza, mas desejam uma vida plena, pretendem a individualidade, duelam pela liberdade de uma vida privada; e na impossibilidade da separação, amarguram o absurdo de sobreviverem sozinhos: partidos e inteiros.

Herbert resiste aos rompantes eufóricos de Magnólia com uma compreensão revestida de compaixão que descasca ao longo dos dias-capítulos. E a cada dia entende mais o quanto o amor é capaz de suportar-vencer-permanecer e também suportar-crescer-explodir, e fragmentar-se em pedaços tão ínfimos que o que resta é estilhaço e sangue. A cada agitação na vastidão instável de Magnólia, Herbert é arremessado para longe, para um lugar onde aquele relacionamento parece-se com uma ilha, habitada por um homem sobrevivente de um acidente em alto mar, indeciso, há anos, entre construir as próprias armas, buscar alimento e água potável, e também construir a jangada que o permita escapar da condenação de viver primitivo; uma saída que, ele sabe, nunca o levará para longe daquele desespero resignado.

Assim, Magnólia teme a solidão, mas não sabe viver sem ensaiar uma aproximação constante com ela. Ríspida, instável, um humor que troveja entendimentos agridoces. Por vezes, Herbert e Orlando não sabem como entrar no mundo caótico da esposa/irmã. Entraram tantas vezes, seguiram tantos caminhos diferentes, mas o mundo de Magnólia gira inconformado, uma órbita desconhecida, e a toda hora as entradas se fazem móveis e refeitas.  Herbert talvez tenha cansado de procurar por todas as entradas que nunca estão no mesmo lugar. Orlando nunca esteve em outro lugar que não a própria dependência e culpa etílica.

Sobre nós e nossos demônios:

Com o fluir do livro, é possível entender que Alex pesquisa cada assunto, investiga. Mas somente uma mão com talento é capaz de costurar os frutos da pesquisa a uma história cativante e que não se perde em informações esclarecedoras sobre dores e perdas, indo além da compreensão por vezes rasa e técnica sobre recaídas, a “efemeridade das emoções”, a instabilidade do humor, apresentado em lirismo e coesão, a complexidade de um rótulo, a bravura de um transtorno que é muito mais que uma consideração adoecida da psiquiatria, a complexidade de grandes experiências em situações cotidianas que ganham proporções dantescas.

O frágil toque dos mutilados é também sobre escolhas e rótulos; transtornos e mutilações; sobre famílias que se desfazem e renascem; sobre perturbações que nunca serão caladas pela química avançada de farmacológicos; sobre a poesia de mortes pensadas; sobre tempestades de amores impossíveis. É sobre o que somos, frágeis estruturas mutiladas prestes a desmoronar, e sobre o que nunca seremos: inteiros e adequados.

Magnólia é um detector de incongruências e fragilidades. Disseca com olhar apurado qualquer leve aparência de adequação. Magnólia é tida como sem parafusos, desde adolescente. É unanimidade: louca. Mas ela discorda, revida, reverte o bem estar sempre frágil em desmantelo, tudo isso para manter-se próxima e inteira. Magnólia só mantém inteireza se arrancar lascas da paciência, do amor, da compaixão e alegria daqueles que ama. “Não há misericórdia.”

As mutilações que Magnólia se impõe buscam abrir o corpo e deixar vazar a tempestade da inquietação que a assola. O que escorre nos sentidos, no simbólico, é exorcizado na mutilação. Romper o corpo, destrancar o que é verdade e deixá-la escorrer, umedecer os fios das relações ressecadas pelo ressentimento, e depois inundar, contaminar a suspeita normalidade de todos que não são Magnólia. Depois de Magnólia, desde Magnólia, assim como Magnólia, todos querem o fim. Todos cansam de buscar o começo. Mas não. Quando o fim se anuncia, no livro, temos o início de todos eles. É então, no fim, que enxergamos um começo. É ou não é sobre todos nós?

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O frágil toque dos mutilados, de Alex Sens [Editora Autêntica, 416 págs.] 

Avaliação: _pena-01_pena-01[muito bom]

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Raimundo Neto é escritor. Colabora com a São Paulo Review

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