Por Manoel Herzog *

A partir da Segunda Grande Guerra o mundo, pautado na filosofia do vencedor, adotou a filosofia mais exacerbada de todo o capitalismo, considerando desde a Renascença até a Revolução Industrial. Pra América Latina, com seu déficit civilizatório de trinta anos, pode-se considerar esse advento do império do deus mercado a partir do fim da ditadura militar (e como conseqüência dela), com a imposição do modelo neoliberal protagonizado pela alternância PSDB/PT. Parte-se de dois conceitos maniqueus pra formar essa unidade travestida de dicotomia: Estado Absoluto versus Mercado Deus.

Sem considerar a tragédia que é isto pra todas a áreas do saber, vide a crise das universidade e a adoção do curriculum Lattes como  paradigma de competência, na arte temos a última fronteira de resistência, ainda que para muitos envolvidos com arte não convenha resistir muito.

Se pintura e escultura foram reduzidas a uma elegante forma de sonegação, atribuindo-se preços surreais às obras pra se lavar a nódoa das cédulas verdes, se a música de qualidade foi banida da execução pública em favor de jabás e interesses corporativos, se Hollywood monopolizou a produção do cinema e o transformou em entretenimento puro e simples, convém um estudo sobre como o fenômeno liberalizante influiu nesta arte aparentemente menos afetada por conjunturas mercadológicas, a Literatura.

Parto de um pressuposto de que a ascensão do capitalismo implica na sobrevalorização da prosa em detrimento da poesia. Tanto que a ascensão do romance enquanto gênero, suplantando a epopeia clássica, dá-se com o nascimento das grandes navegações, em Cervantes, e tem seu apogeu no pós Revolução Industrial. A evolução do processo econômico tende a reduzir o tamanho da prosa, ganham relevo a novela, o conto, atualmente e mais do que nunca a crônica, o micro-conto, a narrativa curtíssima, o aforismo e logo chegaremos aos volumes encadernados de postagens de facebook. Ao passo que a prosa tecnicamente vende, e por prosa aqui não se entenda propriamente Literatura, a poesia se debate, incapaz, por sua essência, de se adequar ao mundo das cifras.

Quando falo poesia não se entenda uma redução ao mundo do verso, falo da própria prosa poética, a Literatura, este objeto tão estranho e indiferente ao fluxo das variações do novo deus. Mas, se a verdadeira Literatura em si é indiferente às tais variações, seus agentes, autores, críticos e editores, não se podem dar a tamanho luxo. Quanto às editoras, empresas que são, a questão é por demais simples, prioriza-se o que vende. E se o que vende não está necessariamente ligado a qualidade. Pode-se inclusive chamar, sem maiores pudores, de livro ao que não é livro – caderno de colorir, por exemplo. Ou de escritor ao que não é escritor propriamente, cata-se uma celebridade aqui outra ali, contrata-se um ghost writer que por ela escreva e a figura do “autor” se vende por si, para um público consumidor que se intitula, também impropriamente, leitor.

Claro, as aparências devem ser mantidas, mas mentiras são duras de sustentar por muito tempo. Portanto, resta a alternativa de se conferir um fumo de seriedade nessa atividade empresarial tão pouco digna que se tornou vender livro. A empresa então mescla em seu portfólio algum autor de verdadeira literatura. Verdade que ele não vai vender muito nem garantir o fluxograma positivo, mas é interessante do ponto de vista dos prêmios literários, da crítica especializada, do comentário dos entendidos, tudo a garantir o tal fumo de seriedade. Pois bem.

Não se acende uma vela pra cada deus. Literatura e mercado são oposições, antagonismos, à medida que cumpre ao mercado escravizar o homem, e à Literatura libertá-lo. Ao contrário do que uma infinidade de “oficinas”, agora “ateliers”, se propõem a vender, quem escreve não pode estar preocupado com vendagem, recepção do público, crítica, a nada que não seja o ditame da própria individualidade de autor, ou então não é mais arte. O que o mercado insufla é a figura do autor, que se tornou mais importante que a obra, situação em que o performático e o pragmático levam grande vantagem sobre o tradicionalmente recluso e tímido escritor, não raras vezes misantropo. Daí ao autor virar animal de exposição nos zoológicos e feiras é um pulo.

E os tais zoológicos, feiras  e prêmios, patrocinados pelas grandes estrelas do próprio mercado, são monopolizadores, dirigem tudo ao sabor de uma literatura marcada pelos signos da brandura, do politicamente correto, do insosso, etc, tudo em detrimento da perigosa linguagem poética e libertadora.

Mas há reação, se há. Por um processo natural de manutenção da espécie humana, e não me venham neomarxistas e liberais dizer que isso também é uma regra de mercado, por um processo natural que dita que o Homem simplesmente não vive num mundo sem poesia, no escuro horizonte dessa tempestade reducionista que o mercado impõe às letras surgem as pequenas editoras, as cooperativas de autores, os independentes, enfim. Surge a turma do barulho, que com muita propriedade denuncia as máfias, as panelas, os conchavos que dominam as premiações, os ditames editorais e a combalida crítica que ainda resiste num cenário que a encaminha pra extinção.

Milito nessa trincheira. Publico meus livros por uma editora que se vem firmando por respeitabilidade, sem olhar a ditames mercadológicos e lutando contra um sistema brutal de falta de distribuição, a gloriosa Patuá. Vejo pelo Brasil, mesmo fora do eixo Rio/São Paulo, um bom número de iniciativas idênticas, citando de cabeça a Editora Cousa, de Vitória/ES, a Confraria do Vento, de Recife/PE, a Crisálida, de Belo Horizonte/MG e tantas que se faz impossível elencar. Acredito que a Literatura, que não vai morrer, ao menos enquanto não morra a Humanidade, vai se perpetuar é através dos autores e desses editores guerreiros, dos críticos que corajosa e honestamente estendem um olhar sincero a obras relegadas pelo mercado de bijuterias, dos bons livreiros e dos verdadeiros leitores, que estão aí, órfãos também, passando uma raiva imensa quando entram numa livraria comercial e se deparam com manuais de venda de queijo, criação de ganso, magias, psicografias e cabanas de fé.

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Manoel Herzog, Santos, 1964, foi finalista, com Amazônia, romance, do Prêmio Sesc 2009. Publicou os romances Os bichos, Companhia Brasileira de Alquimia, e A comédia de Alissia Bloom

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