Fascínio, de Eltânia André

femme2

Por Eltânia André *

De sua varanda, qual um promontório de onde seus olhos navegavam num oceano de cismas, Flaviana passava horas, como que se preparando para não adernar na agitação de sua cidadela íntima, enquanto imaginava que seu território necessitava de defesas. Vigilante em seu implacável juízo sobre a vizinha, espionava o inimigo pela fresta do madeirame vermelho e descascado da janela, o olhar se enfiando, como um inseto esgueirado na fissura, penetrando a estreita lâmina de vidro que arrematava aquela curvatura em diadema sobre a esquadria; eu acompanhava o que se passava dentro do quarto, pelo pequeno arco do vidro ela se exibia em seu pequeno mundo, entre a cama e a penteadeira, aquela-uma-zinha pensa que não sei das suas intenções, mas eu conheço esse tipinho, não perdoa homem casado, sempre de olho para seduzir qualquer um, novo ou velho, pai ou avô, quem passava pela calçada rente ao muro de contenção que protegia o barranco da casa, não precisava de maior esforço para devassar seus segredos, vizinhos e transeuntes, subindo ou descendo o morro da Cojan, ninguém se poupava de conferir a cena, sempre pontual, lá estava ela, sempre às 18h30, depois do Momento da Ave-Maria que podia ser ouvido no rádio de dona Elza, de sua mãe, certamente ela esperava a bênção e depois ia se benzer de cosméticos, até a noite ficar mais densa, a moça todas as noites estava ali, para meu desespero e delírio dos que tomavam aquele caminho, passava pouco tempo noutros cômodos, depois do banho o ritual se repete, entra no quarto, o corpo ainda úmido, bronzeado e sedutor,  enrolando-se nas tulipas da toalha, olha-se numa autorreverência, seguem-lhe uns movimentos – o quadril, as mãos se roçando, um gingado, a coreografia que alisa os cabelos, sei bem como é, passa os fins de semana no clube, ela levanta da canga estirada na beira da piscina olímpica, segue num comedido desfile, os homens ensaiam mergulhos, saem  balançam os corpos para enxugar a água e o cloro, seu nariz-em-pé, sua certeza dos olhares, a caminho do bar ou do vestiário, por causa do piso quente, algumas vezes caminha nas pontas dos pés em direção à ducha, não coloca os chinelos por puro charme. Alguns segundos de olhos fechados, enquanto os jatos amenizam-lhe o calor, relaxante cortina de água sobre ela, finge não perceber os olhos cobiçosos dos frequentadores, ela desperta desejos e sabe disso, tem consciência do seu poder, esforça-se para manter a marquinha do biquíni, conferindo se a alça não saiu do lugar,  se a calcinha não se deslocou, é preciso que a minúscula peça fique sempre naquela altura. Ah, essa putinha foi esculpida com perfeição,  não sabe o que é a vida dura de uma dona de casa, cuidar de tudo, de marido, quintal, roupa, cachorros, plantas, cozinha, não é fácil, a gente sem tempo de se arrumar e ela ali se exibindo, toda-toda,  e eu que nunca tenho um-zinho do salário do marido para depilação, esteticista, massagista, cabeleireiro, manicure, mas, quando dá, eu me cuido, na  maioria dos dias não sobra tempo, a casa é grande, ainda bem que estou enrolando o Beto, há anos ele quer ter filhos, aí que a coisa desanda, imagina se aceito, aí mesmo que essas “zinhas” vão nadar de braçadas, não vou poder fiscalizar o que se passa porque o bebê vai chorar, vai querer o peito a toda hora, mas eu não vou deixar ela se oferecer pela janela, ah, não, essa exibicionistazinha quer todos os homens que sobem e descem, quer ser admirada, ah, mas eu não vou mesmo facilitar, o Beto que se cuide, senão ó, nem sei do que sou capaz, ela, a moreninha-putinha, fica um bom tempo passando creme no corpo, vira-e-mexe na frente do espelho para ficar mais tempo de costas exibindo o traseiro, mas ai dele se o pego de olho comprido naquela janela, depois que comprei este binóculo nada me escapa – sei que toda quinta sua mãe troca as roupas de cama e a toalha de banho, ela tem três, todas com estampas de tulipas, só muda a cor, ela deve ser fissurada por essa flor (…), outro dia, o Beto acha que eu não reparei, mas como quem não quer nada, trouxe o jornal e fingiu ler na janela da sala, é lógico que o que ele queria não estava nas manchetes e sim do outro lado da rua, toda nua procurando uma roupa que melhor lhe valorizasse o corpo escultural, é, mas a devassa não vai ter essa beleza pra sempre não, também já tive meus dias, mas envelhecer é uma merda, penso em fazer uma lipo, a Soraia, do Paulete, fez, ficou nos trinques, o problema não é apenas o custo da operação, mas confesso: tenho medo, assim vou aumentando a numeração das minhas roupas e colecionando tristezas (…), ela comendo a maçã, parece uma Eva no paraíso, com short e camiseta colada, lendo um livro de pernas para o ar, parece um anjo, mas sei que ela está mais para serpente e diabinha, ela faz psicologia em Além Paraíba (meus planos eram me formar em pedagogia, sempre quis ser diretora de escola, profissão digna, a cidade inteira respeita as diretoras, mas casei quando estava na última série do Normal, parei de estudar, hoje me arrependo, mas…), então, ela vai e volta todos os dias da escola, o ônibus especial passa na porta da casa e deixa no portão da escola, chega por volta de meia-noite e meia, o Beto adormecido, levanto, pé-ante-pé – pego o binóculo, que escondi atrás do ornamental vaso de comigo-ninguém-pode, dou uma manjada, sim, é um vício, sinto-me mais segura quando a putinha cai no sono daquele jeito, no dia seguinte, ela vai cedo para a butique da avenida, atender as madames da sociedade, coitada, tenho até dó, deve ser difícil, mas eu não posso me comover, afinal é a minha vida que está em jogo, que vença a melhor de nós duas, deixo a água fervendo para fazer o café e, enquanto o Beto se entrega ao banho demorado, dou uma rápida supervisionada pelo arco da vidraça, corro de volta à cozinha, coo o café e, quando ela passa o batom, eu já sei que é o momento exato de descer correndo as escadas, encontro casual em frente ao portão: “Olá, Flaviana. Bom dia, tudo bem com vocês?” – não sou ingênua, sinto logo uma ironia naquele “s”, vocêssss: o mesmo que uma alfinetada, mas eu também consigo ser cínica, então ignoro a provocação: “então, estudando muito? Quanto tempo falta pra sua formatura? Sei que você será uma excelente profissional, dá pra perceber seu talento. E a dona Elza, tem passado bem? Eu vou comprar pão, gosto dele fresquinho, por isso compro nessa hora, sei que é cedo, mas está saindo uma fornada agora”, vou conversando até a esquina da padaria, ela segue sentido centro e eu curvo para o lado oposto, o resto do dia, adianto os afazeres para retornar à batalha ao anoitecer, mas há os dias em que vou ao Bahamas fazer a feira ou apenas bater pernas no calçadão, perto da butique em que a putinha trabalha, nesses dias eu indago à dona Elza se ela quer que eu leve alguma merenda para a filha, passo de manhã, aí dá tempo de ela bater um bolo, sempre saio depois do almoço, mas, em uma ocasião, ela não estava na loja, meu coração disparou indicando perigo, por onde andaria na hora do expediente?, fui à repartição do meu marido, e o Adolfo, colega de departamento, disse-me que ele saiu para uma visita técnica, não me convenceu, sei bem como é, desculpa durante o expediente, à noite não troquei uma palavra com ele, silêncio bruto, pensa que sou sonsa, mas sou muito esperta, ò, mas antes, ele teve que repetir umas quatro vezes quem era o tal cliente (…), ah, uma vez foi por sorte mesmo que a encontrei na sauna do clube, toda quarta das 19 às 21 horas – horário feminino, nunca gostei dessas coisas, fico sem ar, aquela bruma sufocante, um forno nazista, parecia desfalecer, mas foi o destino que me guiou até lá, ela, a moreninha-putinha, apareceu na bancada dentro da sala de vapor, sentou lá no fundo, que é bem mais quente (como ela aguenta?), a fumaça encobria as pessoas e eu não pude vê-la nitidamente, segurei ao máximo minha agonia e, quando ela tocou a campainha para a dona Liliane disparar a ducha, eu dei um salto, estava sufocada, sem ar, fiz tudo de repente, num impulso, peguei o mesmo banho, forte jato de água gelada, um ponto no teto e duas duchas nas laterais, uma pressão danada,  senti o hálito dela, de tão perto, quando abriu os olhos após o volume de água ter reduzido a pingos, ela disse: “ué, é você, vizinha, está sentindo algum mal-estar!?”, ficamos um tempo conversando no hall das espreguiçadeiras, enquanto ela raspava as pernas, ela estava de biquíni de joaninha, eu de maiô, têm muitas senhoras que ficam apenas de calcinha, deve ser melhor pra enfrentar os 60 graus, mas não tenho coragem, sinto vergonha, para não fazer feio, no outro dia mesmo saí para comprar um biquíni, oh, mas quero um bem bonito – disse para a atendente, (…), ela caminhou até o balcão e pediu uma pedra-pomes e uma barra de sabão de coco, lixou os pés durante cinco minutos, acompanhei os ponteiros do relógio, no final, ela perguntou se eu gostaria que ela lixasse os meus também, neguei, é lógico, mas me arrependi de imediato, melhor seria manter a proximidade, “se você insiste, pode sim”, fiquei ruborizada quando ela pegou no meu pé com suas mãos macias, “já fui manicure, sabia?”, sensação estranha e agradável tomou-me da cabeça até as extremidades, ela ria feito criança, ria da minha falta de jeito, “você é muito engraçada, Flaviana, aproveitei para indagar sobre sua vida, com sutileza, é claro!, estávamos na segunda quinzena de dezembro e me informou que estava em período de férias, “se quiser, podemos vir todas as quartas juntas, você vem de carro comigo, que tal?” –  perguntei, ensaiando interesse no cardápio de sucos, melhor estratégia é mantê-la perto de mim, mesmo ela se fingindo de amiga e eu de desentendida, ela retirava o canudinho do suco de abacaxi e dava lambidinhas nas espumas, aquilo me incitou a sede, pedi uma água, mas a secura da boca não se desfez, ela aceitou ir de carona comigo, foi tomar banho, eu apenas coloquei a roupa por cima do maiô, por puro acaso estava numa posição que permitia ver, pela porta de vidro, a área de banho coletivo, primeiro ela tirou a parte de cima do biquíni, as joaninhas penduraram-se na torneira, seios à mostra, firmes e arredondados, mamilos arrepiados pelo contato da água fria – do jeito que os homens gostam, enxaguou os cabelos da hidratação que tinha feito com um creme de babosa, tirou a calcinha, as últimas joaninhas voaram pelos azulejos e pousaram no chão, a marca branca, contrastando com a pele morena, dava um toque de sensualidade que, com certeza, deixaria o Beto excitado: costas, barriga, joelhos, mãos…, procurei um defeito, qualquer um: um dedo torto, que seja o mindinho do pé, uma verruga, uma micose, estrias, mas nada, seu único defeito era o caráter: uma putinha, que mesmo ao longe ameaça a paz de qualquer lar (…), quando eu era jovenzinha tinha minhas qualidades e a maior delas: as pernas, esguias, torneadas; as primeiras varizes apareceram cedo, aí (…), a putinha não apareceu na semana seguinte, nem no quarto nem no clube nem na cidade, precisava saber por onde andava, então perguntei para o seu irmão caçula, “ela foi viajar para Búzios na excursão da Joana, volta amanhã”, ela voltou mais atraente do que antes, havia cortado os cabelos na altura do ombro, realçando assim a tatuagem do ombro: uma borboleta em pleno voo, deve ter acabado com muitos casamentos por lá, sabe como é, putinha é putinha em qualquer lugar, mas a dona Elza acredita que a filha é uma santa, mas a mim ela não engana (…), na terça-feira seguinte, toquei a campainha da casa dela com uma caneca na mão, precisava de um pouco de farinha para fazer uma massa, ela quem atendeu, entrei, né, não se pode negar a oferta de uma xícara de café, senão essa gente magoa, conversa-vai-conversa-vem, perguntei se ia à sauna no dia seguinte, ela disse que precisava aproveitar as férias para estudar, nunca mais voltei naquela estufa e jamais usei o biquíni novo (…), com ela no quarto o dia inteiro, eu não tinha sossego, binóculo-tanque, binóculo-fogão, binóculo-vassoura… (binóculo-desejos ocultos), de um dia para o outro: uma sensação estranha, uma dor no peito, uma angústia, tomei um antiácido, deve ser um peixe que comi no almoço (…), da minha varanda-mirante, eu decorei cada pedaço daquele corpo, cada detalhe, cada gesto, afinal, guerra é guerra, numa manhã, bem cedo, quando saí ainda de camisola para regar os antúrios, as roseiras e as avencas, percebi eles arrastando móveis, os moradores numa função, de-lá-pra-cá-de-cá-pra-lá, ah, mas eu tinha que saber, ela estaria mudando de quarto?, não pode ser, quando cheguei à beirada da mureta: o susto – um caminhão de mudança na porta da casa da minha putinha. Dona Elza dando ordens, desesperei, agora sim perdi o Beto, eles se encontrariam pelos cantos da cidade, sem que pudesse fazer nada, não controlei o tremor de minhas pernas, as putinhas sempre vencem e não há nada que se possa fazer, recuperei o juízo e fui lá oferecer minha ajuda, “é, vamos mudar para Além Paraíba, melhor para a Pâmela, ficar pegando estrada todos os dias não é seguro”, os lábios frescos se abriram num encantador sorriso, dentes redondos e brancos, pele de pêssego, cílios longos, olhos que me invadem. “adoramos morar aqui, mas vai ser melhor”, fui levá-los à rodoviária e nunca mais a vi, o que me resta é a lembrança de suas mãos agitando um adeus por outra janela, essa menos invasiva, voltei para casa num estado de luto, o que eu faria das minhas noites?, ela perturba meu sono, em meus pesadelos ela chega nua no quarto com tulipas, e joaninhas deslizam pelo seu corpo, caminha nua pela sauna, pelas ruas, deve ser meu instinto premonitório, talvez o Beto esteja indo a Além Paraíba para vê-la desfilando pelas ruas da nova cidade, quando ele sai para suas suspeitas visitas técnicas não sei por onde vai (…), ando tão cansada, sem ânimo, sinto meu peito sufocar, um ódio do novo morador, eles apossaram-se da casa, a moreninha é que era a proprietária daquela janela, a putinha e mais ninguém, uma tristeza, uma angústia que se espalha por onde caminho, o doutor Elias me disse que é depressão, outro disse que é estresse, não sabem o que tenho, Beto e eu nos separamos, afinal não podia aturar tamanha traição, ele confessou que estava tendo um romance com uma colega de trabalho, a Celma da tesouraria, aquela mulher feia e sem graça, você não tem gosto, não, me trocar por aquilo, isso não admito, melhor seria (…)

Os novos inquilinos cobriram a parte superior da janela com adesivos de times de futebol, mas é um obstáculo maior que boicota os olhos de Flaviana.

*

Eltânia André é mineira de Cataguases e vive em São Paulo. Psicóloga, é autora de Meu nome agora é Jaque (contos, ed. Rona, BH, 2007) e Manhãs adiadas (contos, Ed. Dobra Idéias/ProAC, SP, 2012).