Resenha: A fotografia das palavras de Schroeder

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Por Raimundo Neto *

Eu dizia (sempre, e ainda hoje) que se fosse um escritor falaria em um (extenso) livro sobre travestis, transexuais, e drag queens. Acho incrível o poder de transformação que executam em suas vidas, e como tudo começa a girar ao redor dessas mudanças: as escolhas, as suas, os desejos, dos outros, a dúvida, as suas, os preconceitos, dos outros, a vida, de todos. Eu dizia: faria uma travesti ser uma rainha, ou uma fada, ou feiticeira. Mas tudo acaba indo para a gaveta.

Recebi As fantasias eletivas numa noite qualquer. Noite, muito quente. O romance de Carlos Henrique Schroeder estava guardado no computador. O quarto guardado, também, na noite. Tem dias que não quero abrir minha vida para nada lá fora, sozinho. Resolvi logo. Comprometi-me com uma resenha. Solto palavra crônica como se tivesse alguma intenção maior. E ao abrir o documento, que é livro, não estive mais sozinho.

Schroeder apresenta Copi, travesti que enxerga o mundo com a palavra, ou enxerga todas as palavras que fazem o mundo girar. Copi escreve textos sobre a solidão, gosta de fotografia, lê muitos livros. A personagem utiliza-se (como escape, ofício) da fotografia para entender a literatura: é a “fotografia das palavras”, como ela mesma diz.

Qualquer detalhe é um grande acontecimento para Copi: uma colcha quadriculada de cama, um corredor alongado, uma cruz no alto de um morro, o bar de um hotel, o pé pendurado na poltrona de um ônibus, uma mão armada em nocaute, os rejuntes de azulejos. Santa Catarina é o mundo. E uma travesti poeta, que enxerga o mundo através da dor, mora ali. Já pensou? Uma mulher guardada na força de um homem compromissada com a ambiguidade que liberta; ambígua e única.

Entendi o golpe amolado das palavras na cena no início do livro: É para dizer que as palavras são afiadas. Uma violência vai rasgando do começo ao fim, nada brusco, ou bruto, a sutileza ainda é violência, quando as palavras estão no lugar certo, com o leitor. É assim com Schroeder: linguagem simples, vai fundo, não é que seja tudo ternura, mas cada sentença anterior de mão estendida à sentença seguinte, tudo em seu devido lugar. Nas linhas deste livro não há nenhum céu nebuloso, misterioso; é tudo claro, limpo, manso, apesar dos relâmpagos, as luzes cortantes lançadas sobre a compreensão da vida e de tudo que parece invencível e morre. Fiquei quieto, por horas, rezando para que a chuva fina, que amansava meu medo de avançar sozinho dentro da noite, nunca parasse.

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A prostituição aprisiona Copi em algum lugar no próprio corpo; e o corpo aberto não apresenta saídas. É com poesia e fotografia que Copi encontra liberdade. A fotografia apreende momentos únicos, e as palavras que descrevem os momentos guardados a salvam do impossível.

O feminino já está elaborado em Copi. Uma mulher mora ali, as portas escancaradas, o corpo a receber dinheiro e pouco amor. Copi sabe-se travesti, humana, única, escritora, em gênero, número e sexo.

Não vi generalizações, rótulos massacrados, no livro. O autor manteve-se longe disso. Copi está viva, depois morre, e livre. Em algum lugar de toda a prosa construída há liberdade. Ela, a prosa-travesti, poderia ser um escritor, poeta, uma fotógrafa. Copi é uma escritora, poeta, fotógrafa. O gênero que não delira mais sobre o que é: mulher, resquício de homem. Uma mulher com senso de humor que diverte e entristece, fraturado, aquele tipo de alegria que lamenta sem a desvantagem da autocomiseração.

O mercado de prostituição em Balneário Camboriú é o ambiente, e não encerra nenhum dos personagens. Se houver um foco é a amizade de Copi e Renê. Dois recomeços, dois caminhos perdidos. A tristeza não se lamenta, os encontros não são explosivos. O amor é calmo e discreto, sorrateiro até, mas longe de mostrar-se mentira.

Compreender momentos do mundo presente, adaptá-los às crenças saturadas que o passado ensinou, e ressignificar o futuro: é o que Copi faz através da escrita e da fotografia. Renê e Copi são cortes profundos queimando a memória, e as lembranças também são afiadas, vêm e vão a todo momento. Renê lembra um passado recente, duros golpes; Copi escreve cartas à mãe, escreve um livro, explica suas dores, e ri das desgraças.

Não interessa ao leitor as cirurgias plásticas, alterações hormonais, o silicone abastecendo o corpo, os documentos novos. Copi tem uma alma que envolve o mundo que não a comporta, por isso ela explode em significados a cada observação minuciosa. Copi é um exército de mulheres e homens que não aceitam a morte dos significados, por isso deixa nascer palavra em tudo que vê. Copi não é apenas uma travesti, é palavra, pura e livre. Carrega o gozo da palavra-mundo.

Os dias de Copi, em As fantasias eletivas, são feito noite, sem os perigos, sem o frio, a boca seca ao final do livro, no meio da noite. Uma grande personagem que escreve sobre a solidão, uma narrativa simples, em poucas páginas. As palavras fizeram-se dia, ao final da leitura, dentro da noite. Li o livro do Schoreder no escuro, e havia luz na palavra.

As fantasias eletivas (Record), de Carlos Henrique Schroeder

Avaliação: bom

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Raimundo Neto escreve, mas, conforme o próprio, ainda não é escritor. Foi mencionado na Revista Bula e no Jornal Opção como um nome que poderia estar na Geração Zero Zero. Publicou contos na extinta Revista Malagueta, no site da revista Bravo (também extinta), e venceu um concurso literário (Contos de Teresina  – 2º colocado). Tem um blog, extinto também: www.agentesempretenta.blogspot.com e uma coluna no site O pensador Selvagem (parece que também extinto. Escreveu conto para a Revista Parênteses