* Por Ary Quintella *

O escritor britânico David Szalay, nascido no Canadá em 1974, filho de pai húngaro e residente em Budapeste, ainda não foi traduzido no Brasil, segundo pesquisa que fiz nas páginas eletrônicas de livrarias. Ao ler seu quarto e mais recente romance, All That Man Is, fiquei me perguntando por que as editoras brasileiras, sempre sedentas por autores estrangeiros, ignoraram Szalay até agora.

Publicado em 2016, finalista do “Man Booker Prize”, apresentado pelo seu autor como um romance, All That Man Is possui estrutura peculiar. Trata-se, na verdade, de nove histórias, cada uma descrevendo um momento crucial, no tempo presente, na vida de diferentes homens europeus. As histórias são apresentadas de forma cronológica: ao iniciar a leitura, estamos na primavera europeia; ao concluí-la, estamos em dezembro do mesmo ano. Há no livro outro tipo de cronologia: o primeiro conto trata do homem mais jovem, Simon, um inglês de 17 anos; o último, do homem mais velho, Tony, também inglês, de 73 anos. Assim, vemos as estações do ano se sucederem, enquanto se desenrolam sucessivas experiências emocionais masculinas, características — na visão do autor — de cada idade.

Há outros paralelismos no livro. Todos os homens, mesmo os menos afortunados financeiramente, viajam. Mulheres aparecem como figuras secundárias, em geral como objeto do desejo dos homens, a não ser na história de Tony. Cartas de tarô surgem em vários dos contos.

Outro traço comum a todos os “heróis” de David Szalay é que suas preocupações estão centradas em, de um lado, sexo ou amor; de outro, dinheiro ou sucesso profissional. Simon entrará proximamente na Universidade de Oxford, está apaixonado por uma colega de colégio e tem um longo futuro pela frente. Tony, aposentado, preocupa-se com a morte, pensa na carreira que teve como diplomata e alto funcionário público e em seu longo casamento, onde hoje impera a frieza emocional. Entre a história de Simon e a de Tony, lemos sobre diversas vicissitudes sexuais e financeiras — e os sentimentos delas decorrentes — dos demais personagens.

Simon está passeando de trem pela Europa com um colega de colégio. Visitam a Polônia, a Alemanha, a República Tcheca, a Áustria e, saberemos no final, também a Itália. Tony está em sua casa de férias na Emilia-Romanha.

Depois de Simon e antes de Tony, travamos conhecimento, sucessivamente, com sete outros personagens principais. Bernard é um rapaz pobre de Lille, de 21 anos, não muito inteligente, que viaja a Chipre de férias, em busca de experiências sexuais. Manterá relações com duas inglesas, mãe e filha, ambas terrivelmente obesas. Somos apresentados a Balázs, húngaro instrutor de musculação, surpreendentemente sensível, que viaja a Londres para servir de segurança à mulher que ele ama, prostituta de luxo cedida aos clientes pelo seu próprio namorado, mafioso e patrão de Balázs. Há Karel, belga flamengo, acadêmico em Oxford, que viaja de Londres à Polônia e é talvez o personagem mais desprezível do livro. Em seguida, entra em cena Kristian, jornalista dinamarquês adúltero, que trabalha em um tabloide e viaja à Andaluzia, hipocritamente, para entrevistar o ministro da Defesa de seu país, com o objetivo de expor sua relação com uma mulher casada, o que destruiria a carreira do político. Vemos depois James, um corretor de imóveis inglês que viaja a trabalho aos Alpes Franceses. Este é sucedido nas páginas do livro por Murray, escocês que mora na Croácia. A oitava história é dedicada a Aleksandr, oligarca russo de 65 anos, à beira da ruína, residente na Inglaterra, que viaja em seu iate pelo Adriático, o Mar Egeu e o Mediterrâneo.

Há pequenos detalhes que fazem o elo de um conto a outro. Murray, no final da sétima história, desanimado com sua precária situação financeira e a solidão, vê no mar, perto da costa croata onde se encontra, o iate de Aleksandr, personagem da oitava história. O russo possui um vinhedo que produz um Barbaresco, vinho que Tony bebe na nona história. Terá vindo da propriedade de Aleksandr? E quem sabe se Karel não será professor de Simon em Oxford?

O ponto a unir de forma decisiva a primeira página e a última é o fato de Tony ser avô de Simon. Este, assim, aparece como personagem já nas primeiras linhas e, como objeto de uma conversa do avô, também nas últimas, fechando um círculo. Esse detalhe revela a inteligência de David Szalay na construção de seu livro. O rapaz de 17 anos, objeto da primeira história, precisa ainda formar seu futuro e sua personalidade, enquanto que o avô, no final do livro, medita sobre a vida que passou. O fato de Simon, personagem mais jovem, ser neto de Tony, personagem mais velho, cria um dualismo entre os dois. Não queremos que Simon se torne um dia o homem triste, desiludido, que é o seu avô. Entre a juventude e a velhice, temos a chance de construir para nós uma vida que nos deixe sem remorsos ou frustrações. Os personagens de Szalay, sucessivamente mais velhos, mostram, em cada história, etapas no fracasso ou na mediocridade de uma vida. O livro se presta a uma reflexão sobre o sentido da existência humana, seu potencial, e o que dela fazemos.

O título do romance é extraído de um famoso poema de W. B. Yeats, Byzantium, onde lemos que o céu “estrelado ou enluarado despreza tudo o que o homem é”, pois as vidas humanas, por mais complexas que nos pareçam, são na verdade pequenas e insignificantes, diante da imensidão do Universo. Há algumas alusões, em All That Man Is, ao fim do Império Romano e ao do seu sucessor, o Império Bizantino. Se impérios são passageiros, o que dizer da existência humana?

O autor nos diz, com bom humor — pois o tom nunca é melodramático — que o gênero masculino é frágil, imperfeito, digno de pena. “Tudo o que o homem é”, na sua visão, é muito pouco, é algo nada glorioso. A meditação que Szalay nos fornece sobre os homens, embora pareça pessimista, é na verdade positiva, pois ela nos faz pensar que cabe a nós orientar nosso próprio rumo. A mensagem vem também acompanhada de um estilo irônico, quase sarcástico, revelado em pequenos detalhes. Sorrimos, durante a leitura, quando menos esperamos. Por exemplo, quando Aleksandr está mais desolado, deprimido, somos informados de que, no Who’s Who, ele listou como seushobbies: “riqueza” e “poder”.

Embora as personalidades dos homens sejam diferenciadas — e um dos prazeres na leitura é constatar a competência do autor ao criar mundos bem elaborados — as nove histórias formam um todo, justificando a classificação do livro como um romance, apesar do que disseram alguns críticos britânicos e americanos. É preciso ler cada uma das histórias para perceber o sentido geral de All That Man Is. Ao mesmo tempo, cada uma pode ser lida como um conto individual.

A quarta história, a de Karel, é carregada de simbolismo. Sabemos que ele tem 35 anos, porque de repente pensa no primeiro verso da Divina Commedia: “Nel mezzo del caminn di nostra vita”. Embora ainda jovem, ele logo atingirá a meia-idade. Tem o dobro da idade de Simon, e metade quase da de Tony. Ao terminarmos sua história, estaremos chegando à metade do livro. Karel, especialista em filologia germânica — e cuja grande ambição é ser célebre nesse campo restrito — sente-se mais à vontade na Idade Média. Nada posterior ao século XV parece interessá-lo. O ambiente protegido, isolado da Universidade de Oxford faz com que se sinta seguro. Sua própria origem flamenga inspira a ideia de algo normal, plácido, sem incidentes, portanto mediano. O conceito de “muro” é recorrente nesse conto. Muro é algo que protege, mas que também exclui os outros. Karel atravessa a Europa para levar ao pai da namorada, na Polônia, um carro de luxo que este comprou na Inglaterra. Em uma cidade alemã, a namorada, Waleria, junta-se a ele. Ela o ama. Karel, porém, é incapaz de amar qualquer pessoa além de si mesmo. Prefere que nada mude em sua vida, vista por ele como perfeita. Sente que o tempo está passando; gostaria de detê-lo. De todos os personagens, é o que parece sofrer menos com a solidão. De fato, associa a ideia de solidão com a de liberdade. No carro, Waleria perturbará seu contentamento ao anunciar estar grávida. A reação imediata de Karel é: “Que merda!”.

Meus personagens prediletos são Simon e Aleksandr. O russo bilionário, “Imperador do Ferro”, está prestes a ficar relativamente pobre, pelos cálculos de seu advogado. Restarão apenas alguns poucos milhões, quando tiver liquidado os investimentos fracassados, pagado suas dívidas e os 200 milhões de libras esterlinas de custos de processos que perdeu, e finalizado o acordo de separação com a terceira companheira, que o está abandonando. Assustador, para alguém até então capaz de comprar por 250 milhões de euros o iate em que navega — o qual, aliás, terá de vender com perda financeira. Aleksandr pensa suicidar-se pulando no mar, mas desiste. Ao revelar toda a vulnerabilidade emocional e a solidão desse potentado moderno, Szalay torna-o de alguma forma encantador. Não queremos ser Aleksandr, mas gostamos de conhecê-lo. Rodeado de empregados, advogados, guarda-costas, cortesãos, prestadores de serviço, ex-mulheres e vários filhos, Aleksandr, que uma vez alugara o palácio de Blenheim — pertencente aos duques de Marlborough e onde nasceu Winston Churchill — para comemorar aniversário com mil convidados, não tem um amigo sequer.

Um dos temas centrais do livro, justamente, é a dificuldade para o homem moderno de formar relacionamentos emocionalmente profundos. Solidão é uma das palavras mais presentes na obra. Amor e amizade, sugere o autor, são hoje conceitos impossíveis de tornar realidade. Quando o amor acontece, ou ele não é reciprocado ou é penalizado. Simon está apaixonado por uma colega de colégio, que mal sabe de sua existência. O ministro da Defesa dinamarquês — personagem mais simpático e aberto do que Kristian, o jornalista que o expõe — terá sua carreira política prejudicada por causa do amor que sente pela amante. Szalay desnuda para nós a mente, as emoções dos personagens masculinos, revelando o que a carapaça esconde. Isso, ele parece apontar, já não é possível na vida real. Não conheceremos nenhum de nossos amigos como chegamos a conhecer os personagens de Szalay.

Simon contrapõe-se ao colega com quem está viajando, Ferdinand. O primeiro é introspectivo e escreve poemas; o segundo, extrovertido, tem uma visão prática, positiva, exuberante da vida. Simon, na verdade, começa a ficar irritado com a convivência forçada, na viagem, com Ferdinand. Na conversa entre Tony e sua filha, Cordelia, mãe de Simon, no final do livro, o adolescente será descrito como “estranho”. Sua mãe preocupa-se com ele. Ao ler sobre Simon no início do romance, no entanto, ficáramos com a imagem de um adolescente tímido, mas inteligente e promissor. Simon contrapõe-se também ao avô. Um, de 17 anos, está tentando descobrir o sentido da vida, o outro, aos 73 anos, pensa que a vida é frustrante. Szalay parece nos alertar, nas suas nove histórias que, se não tivermos cuidado, deixaremos nossa existência tornar-se, gradualmente, uma soma de decepções.

Em sua viagem pela Europa continental, Simon leva na mochila um exemplar de The Ambassadors, de Henry James. Como faz Szalay em cada conto de seu romance, James nos mostra um personagem masculino viajando pela Europa. O trecho de The Ambassadorsque Simon lê, no trem, na terceira página de All That Man Is, é uma célebre fala em que o personagem principal de James, Lewis Lambert Strether, declara a um jovem interlocutor: “Viva tudo o que puder; é um erro não fazer isso”. Simon, guia leal do leitor de Szalay, nos informa ser este o assunto do livro cuja leitura estamos iniciando, ao anotar na margem de seu exemplar de The Ambassadors: “TEMA PRINCIPAL”. A ironia é que Simon não consegue seguir o conselho de Strether, por ele anotado. Em vez de aproveitar intensamente a viagem pela Europa continental, pensa sem parar, apaixonadamente, na colega, Karen. Chega mesmo a escrever: “Parece algo sem propósito viajar pela Europa, quando tudo o que eu queria era estar na humilde, suburbana cidade inglesa de Didcot”, onde está Karen, imune à paixão que nele despertou. Quando Ferdinand, por acaso, menciona Karen, sem saber que Simon a ama, este se retrai e muda de assunto, em vez de expor seus sentimentos ao amigo.

A questão é: o que significa “viva tudo o que puder”? A resposta dependerá de cada homem. Há no romance diversas alusões literárias, musicais, cinematográficas, bíblicas, históricas que nos fornecem pistas, sem nunca tornar o texto pedante. Tony lê um livro que, ao ser publicado em 2012, causou grande rebuliço nos meios acadêmicos e políticos europeus: The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914. O historiador Christopher Clark propõe que, em 1914, os homens de estado permitiram, como sonâmbulos, sem prever muito bem o rumo dos acontecimentos ou perceber as consequências de suas decisões, que tivesse início a Primeira Guerra Mundial. O importante, nos alerta David Szalay, é não passarmos pela Terra como sonâmbulos, sem controle sobre nossa existência, sem tentar fazer dela algo que valha a pena.

Tony, como Karel, desola-se com o fato de que, um dia, ele já não estará vivo e que o mundo continuará mesmo assim. Em uma das cenas mais marcantes do livro, Tony chora, silenciosamente, ao olhar para o ser que mais ama, a filha, Cordelia, pensando que, um dia, ele a verá pela última vez. Esse é um contraponto a Karel que, ao tomar a gravidez de Waleria como um problema, pode estar se privando mais uma vez da chance de amar alguém, de viver a emoção que Tony sente, a cada vez, ao ver Cordelia.

Uma inscrição em latim, na Abadia de Pomposa — um edifício em estilo românico que Karel aprovaria, perto de Ravena — impressiona Tony: Amemus eterna et non peritura: “Amemos o que é eterno, e não o que é passageiro”. Ele sente haver aí um paradoxo, pois apenas uma coisa é eterna: justamente, a impermanência da vida e das coisas. Ao chegarmos à última página de All That Man Is,ao final da história de Tony, teremos entendido que a vida é decepcionante mas, para cada um de nós, ela é uma só, não acontecerá de novo, e temos o dever de torná-la mais bela, usando nossos critérios individuais. Erros são inevitáveis e permitidos, mas alguns são irreversíveis, e temos de agir com bom senso para evitá-los. Certamente, aos olhos da Lua e das estrelas, o homem vale muito pouco. Para cada um de nós, porém, nossa vida, instável e transitória, é o que temos e somos responsáveis pelo que dela fazemos. David Szalay, em tom amistosamente irônico, nos adverte e nos dá uma aula de filosofia.

David-Szalay-All-That-Man-Is

*

Ary Quintella é Diplomata. Diretor do Departamento da Ásia Central, Meridional e Oceania do Ministério das Relações Exteriores. Serviu na Missão do Brasil junto à União Europeia, em Bruxelas, e nas Embaixadas em Quito e Washington. Foi professor de Política Internacional e de Política Externa Brasileira do Instituto Rio Branco. Publica suas crônicas no blog: www.aryquintella.com

 

 

Tags: , , ,