Estudante de Medicina em Belo Horizonte no início da década de 1960, Herbert Daniel logo se juntou às fileiras da resistência à ditadura civil-militar instaurada no Brasil em 1964. Entrou para a luta armada e conviveu com nomes ilustres do movimento, como o capitão Carlos Lamarca e a ex-presidente Dilma Rousseff. Um dos últimos brasileiros a voltar do exílio, na década de 1980, escreveu e editou livros e ainda engajou-se nas campanhas pela defesa do meio ambiente e das minorias e foi um importante ativista pelos direitos das pessoas portadoras de HIV/Aids no Brasil.

Herbert Daniel foi também pioneiro ao se candidatar a deputado estadual e a se assumir publicamente como homossexual, fazendo campanha e militando no embrionário movimento LGBT no Brasil. Mas, nem sempre foi assim, como nos conta o historiador James Green na biografia Revolucionário e gay – A vida extraordinária de Herbert Daniel. Para o autor, para ser aceito nos grupos de esquerda e participar da luta armada Daniel precisou reprimir sua homossexualidade, vista com maus olhos pelos militantes da época, e viveu, segundo ele, uma espécie de “exílio interno”. A motivação para escrever a biografia veio da percepção de que, mesmo com toda a sua importância no ativismo de esquerda e pelos direitos humanos, Daniel foi esquecido.

Leia trecho do livro:

***

Ao fim da minha primeira visita à dona Geny, Hamilton veio me conhecer. Ele queria me mostrar um vídeo de família, filmado durante o Natal de 1991, três meses antes de Herbert morrer. No vídeo caseiro, estão todos em torno de uma grande mesa desfrutando de uma ceia preparada por dona Geny. Cláudio, o companheiro de quase vinte anos de Herbert, é claramente um integrante da família – faz piadas com Geraldo, o pai de Herbert, e brinca com seus sobrinhos e sobrinhas. É uma cena tocante. A aids havia tomado conta do corpo de Herbert, que parecia magro e cansado. Em determinado momento, ele se volta para o irmão mais novo, Hélder – o cinegrafista amador –, levanta um copo, sorri para a câmera e diz enfaticamente: “Eu estou vivo.”

No início de 1992, dona Geny passou um mês no Rio de Janeiro cuidando do filho. “Cláudio chegava de tarde e dava banho nele. O Cláudio tinha um carinho com ele […] Ele dava o remédio e [Bete] vomitava tudo. […] Eles tiveram uma amizade de vinte anos; agora, eu te falo mesmo, nenhuma mulher ia tratar o Bete como ele tratou. Esse Cláudio foi um menino de ouro para ele. Se fosse uma mulher casada com ele, não ia cuidar dele desse jeito; não ia, ele foi cuidado como se fosse uma or.”2

Conforme Herbert se aproximava da morte, Cláudio e a irmã, Magaly, além de amigos próximos que moravam no Rio cuidavam dele dia e noite. Num domingo à tarde, no m de março, Válber Vieira, o médico de Daniel, foi chamado ao apartamento. Na companhia apenas do médico e de seu companheiro, Cláudio, Herbert Daniel faleceu.

O velório e enterro foram organizados rapidamente. Mais de cem pessoas se reuniram no Cemitério São João Batista para prestar suas condolências. Cláudio mal se mantinha em pé. Quando os carrega- dores finalmente removeram o caixão para que fosse transportado a Belo Horizonte, os presentes rebentaram uma salva de palmas em homenagem ao amigo e camarada.

Cláudio e alguns amigos acompanharam o corpo no avião. Devido a atrasos imprevistos, o enterro teve de ser adiado até a manhã seguinte. Cerca de sessenta amigos e familiares se reuniram no Cemitério Parque da Colina. Um cortejo fúnebre acompanhou o corpo até a sepultura, e as pessoas levavam faixas onde se liam: “Viva a vida” e “Herbert Daniel: liberdade e luta”.3

A cerimônia foi pincelada de ironias. Embora Herbert tenha se tornado ateu, uma missa foi celebrada em sua memória. D. Geny não arredou pé da decisão. O nome do cemitério, Colina, era o nome da organização revolucionária à qual Herbert havia se a liado com tanto entusiasmo 25 anos antes, como estudante de medicina. Uma guarda militar de honra acompanhou o caixão como ato de solidariedade ao irmão de Herbert, o major Hamilton Brunelli de Carvalho, como se as atividades subversivas de Herbert não mais carregassem um significado controverso.

Geraldo, o pai de Herbert, dona Geny e Cláudio agarravam-se uns aos outros, apoiando-se, à medida que seguiam o caixão lentamente. Quando a procissão chegou à sepultura, Helena Greco, fundadora da Coordenadoria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de Belo Horizonte, falou da luta de Daniel contra a ditadura. Apolo Herlinger Lisboa, seu antigo camarada de luta revolucionária, lembrou sua coragem enquanto vivia na clandestinidade, época em que dividiam o espaço de um pôster que anunciava a busca a “terroristas”. Cláudio, que não dormia havia três dias, mal podia conter os soluços convulsivos enquanto lia palavras escritas por Herbert: “Tenho aids há muito tempo. Décadas, talvez. Minha principal descoberta, no entanto, é que estou vivo. Tenho estado bem com minha aids e tenho sofrido. É só uma doença. Espero que um dia, quando finalmente a morte me levar, ninguém diga que fui derrotado pela aids.”

Conforme o caixão era descido, os condolentes ali repetiam: “É importante a vida antes da morte, e não depois” e “Eu não quero ter razão; eu quero lucidez”. A primeira tornara-se o mantra de Daniel no ativismo pela causa da aids; a última era uma frase de seu primeiro livro.

Os canais de televisão local mostraram cenas breves do funeral no jornal do meio-dia e da noite. Eles mencionaram a trajetória revolucionária de Daniel, seus feitos como escritor e sua postura aberta em relação ao fato de ser portador de HIV/aids. Obituários e outras reportagens jornalísticas também enfatizaram seu passado como guerrilheiro, particularmente seu envolvimento no sequestro dos embaixadores alemão e suíço, o exílio na Europa e sua carreira como escritor e ativista pela causa das pessoas com aids depois de retornar ao Brasil. Um jornal descreveu o enterro como um “ato de protesto”. Diversos deles mencionaram que Herbert deixou (viúvo) Cláudio, seu companheiro por vinte anos, um fato pessoal sobre um casal do mesmo sexo que, na época, era incomum na imprensa.

Recortes de jornais sobre o funeral são cuidadosamente guardados no álbum que dona Geny mostrou-me durante minha primeira visita. Em determinado momento durante nossa conversa, ela se levantou repentinamente e começou a revirar o quarto dos fundos de sua casa. Após um ou dois minutos, reapareceu segurando firme um vidro de 100 ml de Chanel No 5. “Bete me trouxe quando ele voltou da França”, explicou, com um suspiro. Restava muito pouco da mágica fragrância cor de âmbar no vidro cristalino. “Toda vez que eu quero pensar nele, coloco um pouquinho. Me ajuda a lembrar.”

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Revolucionário e gay – A vida extraordinária de Herbert Daniel, de James N. Green (Tradução de Marília Sette Câmara, 378 págs., Civilização Brasileira)

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