Por Ronaldo Cagiano *

Escrevemos para nos auscultarmos, para entender o que vem dentro de nós.

                       María Gainza

                 (“Hotel melancólico”)

Escobar (Editora Moinhos, 2021) marca em grande estilo a incursão de Márwio Câmara pelo romance, após a sua bem-recebida estreia com o volume de contos Solidão e outras companhias (Ed. Oito e Meio, 2017), que já sinalizava um autor a mapear histórias e personagens permeados por dilemas, conflitos e obsessões.

Nessa curta e pungente novela, Márwio aprofunda seu mergulho em questões que abordam personagens atingidos íntima e socialmente pelas suas circunstâncias, mas lutando contra seus fantasmas, no limite tênue entre fronteiras que o desconfortam espiritual e psicologicamente.

A geografia de uma intimidade desértica e desestabilizadora de um protagonista no fio da lâmina existencial é percorrida com grande destreza verbal e metafórica, na medida em que o autor cria um painel de idiossincrasias para refletir sobre os cacos da experiência trágica do personagem, o que funciona como gatilho para a explorar os passivos emocionais de um ser em permanente desassossego.

Tendo como pano de fundo que baliza toda a história a morte e o luto pelo desaparecimento trágico do amigo do jornalista Escobar, o autor constrói uma trama permeada de sutilezas poéticas e estilo depurado. Num percurso labiríntico em que é forte a presença da intertextualidade, de diálogos concisos e diretos e um flerte com os signos da arte, Márwio, com inegável perícia narrativa, conduz o leitor a uma viagem estética permeada de questionamentos e reflexões sobre a própria condição humana. Temas ancestrais como o afeto, as conveniências delimitadoras das relações sociais, o advento de uma paixão misteriosa por R. e vetada pelas circunstâncias, os embates e dúvidas de Bruno com sua sexualidade, uma criatura ensimesmada, nostálgica e reprimida pelos códigos morais e os desejos aprisionados vão compondo um espectro tão atávico à natureza humana desde o primórdio dos tempos.

O livro é perpassado por certo hibridismo, uma prosa heterodoxa, pois  desenvolve-se como um caleidoscópio de gêneros. Por força de recursos de que se utiliza, habilidosamente, o autor empresta ao seu projeto ficcional recursos semânticos que conferem ao texto frescor e liberdade criativa, na medida em que cenários e situações vão sendo deslindados em forma fragmentária – incorporando poesia, ensaio literário, diário, olhar fotográfico, analogias, flagrantes cinematográficos – marcas de um exercício estético que caracterizam não só esse trabalho, mas de um modo geral a incursão de Márwio pelos amplos territórios de sua trajetória como professor, crítico e escritor, centrado principalmente na prospecção de um olhar multidisciplinar sobre a genética do próprio texto.

Ao abrir Escobar com uma epígrafe de Roland Barthes o autor desnuda a chave para a compreensão de sua ourivesaria e estende o fio de Ariadne para conduzir-nos por esses escaninhos e palimpsestos por meio de uma leitura delicada, mas cirúrgica, sobre os atalhos e dúvidas do amor, sobre as dores e delícias que condicionam o homem, colocando-nos frente a frente com os mistérios e a concretude do mundo que nos habita e do insondável que abrigamos.

E a linguagem se faz também personagem nesse romance, caudatária desse processo catártico de descobertas e questionamentos, pois é o próprio autor de Fragmentos de um discurso amoroso que nos ajuda com seu farol a empreender, como Márwio, uma profunda imersão nesse drama de densa e tensa humanidade: “A linguagem é como uma pele: com ela eu contacto os outros. Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz.”

Marwio_livro

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Ronaldo Cagiano é escritor mineiro de Cataguases, vive em Portugal.

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Obra ilustrativa: Paisagem branca, do venezuelano Armando Reverón 

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