− “Era um jardim para cegos.”

A voz era firme, modulada e com uma dicção irretocável. Quem porventura tivesse a curiosidade de transpor o som em ondas veria que até mesmo o registro gráfico delineava um traçado gracioso, embora não tão suave a ponto de se tornar monótono. Essa perfeição vocal brotava da garganta de Lídia Pardo, protegida de Dom Patrício Suçuarana, o governante de Riverão e patriarca de uma das mais tradicionais famílias detentoras de feudos no Império.

− “A visão era constantemente maltratada, mas dele o olfato  podia  extrair  um  considerável  prazer,  embora  não  delicado.”  −  Lídia  levantou  os  braços  em  um  gesto  expansivo  e  repentino, fazendo o ar em torno de si refluir.

− “As rosas Paul Neyron, cujas mudas ele mesmo adquirira em Paris, haviam degenerado…”

Lídia  se  deteve  no  meio  da  frase  como  quem  vê  uma  assombração. O som de palmas solitárias preencheu o ambiente, ressoando  nas  pedras  irregulares  das  paredes,  que  pareciam  amplificar cada estalo.

− Bravo! − saudou um sujeito metido em fraque e cartola. − Está descrevendo o jardim de meu pai? − disse em tom zombeteiro enquanto suas palmas ainda ecoavam.

− Se lhe aprouver. − A resposta seca de Lídia não mais soava como a voz angelical de outrora.

−  Pois saiba que você nada tem a ver com esse jardim. − Leon Suçuarana passou as costas da mão no rosto de Lídia, que se desvencilhou com delicadeza, como era próprio dela. Ainda que tivesse de matar alguém, ela o faria com graça. − O que fazia?

− Nada, Leon − Lídia desviou o olhar, constrangida.

− Andava a compor um poema ou a ensaiar para uma peça?

− Lia um livro − confessou, por fim.

Ele notou que a lente de Lídia exibia um texto e pediu para ler.

− Deveria experimentar formas de arte menos antiquadas, isso sim. Não é difícil aprender a tocar o estimulador mental, basta criar um ambiente em realidade virtual e aproveitar os efeitos lisérgicos que o instrumento produz.

− A literatura não é antiquada. Ela suspirou e foi embora. O vulto de seus cabelos cacheados o deixou sozinho com o perfume de ervas de Serendip. Lídia havia sido prometida a Leon e chegara à corte de Riverão poucos dias antes. Ela não se acostumara bem à pompa dos Suçuarana, e ele certamente não sabia como fazê-la sentir que pertencesse àquele lugar.

Leon permaneceu pensativo no velho salão, acossado por rachaduras impressas pelo tempo. O ambiente era como o poderio dos Suçuarana: decorativo. Um nome de peso e, no entanto, oco. Estava ali a tradição de uma família que atravessou séculos acomodada no trono de Nebulosa, mas que agora amargava a decadência.

Um século havia se passado desde a morte de seu bisavô, o Imperador Leopoldo V, o que marcava o declínio do poder dos Suçuarana e o início do império de Sargão, chamado em Riverão de Usurpador. Ele era o avô do atual imperador, Nimrod II. Após perderem o trono, não tardou para que os Suçuarana vissem o dinheiro minguar. Velhos hábitos custam a desaparecer, de modo que precisaram de duas gerações para perceber que iriam à falência se continuassem gastando o mesmo que seus antepassados da corte. No entanto, a modéstia é uma dádiva difícil de obter. Para que esse desengonçado sentimento coubesse nos corações outrora abastados dos Suçuarana, seria necessário abalroar o orgulho. Preferiam manter-se na direção de um buraco negro financeiro do que saltar para o bote salva-vidas da humildade.

Um  ícone  minúsculo  de  mensagem  piscou  de  relance  na  lente de Leon. − Venha aos meus aposentos − convocou seu pai, Dom Patrício.

Ele obedeceu e saiu do salão vazio. Seus passos firmes ecoaram por corredores tão antigos que já haviam induzido muitos historiadores e arqueólogos ao erro de acreditar que Riverão seria o planeta originário da humanidade, teoria que de tempos em tempos ressurgia. Mas não se sabia se existiu mesmo um mundo assim. Havia, é claro, a lenda do planeta originário, um império devastado em uma noite por um enxame de androides militares, que não passava de um conto bobo para assustar crianças que se comportavam mal.

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André Cáceres é autor do romance distópico Cela 108 (Multifoco, 2015) e coautor do livro-reportagem Corações de Asfalto (Patuá, 2018), tem contos publicados nas revistas Gueto e Qorpus e nos jornais Cândido e RelevO, além das antologias Realidades Voláteis & Vertigens Radicais (Alink, 2019), Era de Aquária (Oito e Meio, 2019), Kriptovisões do Futuro (Alink, 2020) e Da Necessidade de Relâmpagos (Avec, 2021). Foi finalista do V Prêmio Internacional de Teatro Jovem, da editora espanhola Dalya, com a peça de ficção científica Esperando o Dono, escreve sobre literatura para o jornal O Estado de S. Paulo e ministra oficinas de crítica literária.

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Nebulosa, de André Cáceres (Patuá, 336 págs.)

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