Por Paulo Ribeiro *

Como já acontecia em torno de seu cinema, naquele final de anos 70, o preço que Glauber teria de pagar por suas ideias seria alto. Sua posição de criador heroico, inconformado, temido, corajoso, faziam com que este baiano-judeu-protestante fosse amado e amado-odiosamente.

Amado, por aqueles que o entendiam e à sua obra. Amado-odiosamente, por aqueles que entendiam sua obra, mas não aceitavam a força daquela natureza individual. “Voz de trovão do povo em seu grito de guerra”, escrevia Jorge Amado.

Pensamento livre e criador. Sem papas na pena, Riverão Sussuarana (ed. Record, 1977), seu único romance, surgia para destruir com todos os mitos da história brasileira, sem concessões. Antônio Conselheiro, Luís Carlos Prestes, Lampião, Padre Cícero e João Guimarães Rosa — personagem espécie de ator em meio à saga dos jagunços -, habitavam a corrente caudalosa daquele glauberiano rio: Riverão. Revisão. A heustória (a estória que incorpora a História, não conta, nem contra) do Brasil.

Riverão Sussuarana está ligado diretamente à dimensão do itinerário sertanejo. Do sertanejo de Vitória da Conquista, Glauber Rocha, que não é, no romance, o seu itinerário único e total, é a manifestação estética de um rio que corre (riverun — “rio que corre” — segundo a tradução de Augusto e Haroldo de Campos de Panaroma do Finnegans Wake, de James Joyce).

O livro começa e termina num “riverun” dentro das veias de um protestante — de origem judia — em terras messiânicas. Um rio sertanejo que está ligado à infância do autor (a infância povoada de tiroteios dos “westerns” de Hollywood, estrelados por Gary Cooper, John Wayne, Errol Flyn, e dirigidos por John Ford) que agora, bem mais tarde, marcará o estilo de sua romanesca forma narrativa: longas sequências descritivas e logo irrompe o diálogo. E ligado também à maturidade de Glauber, rompida bruscamente por uma tragédia pessoal do Rio de Janeiro já daqueles dias, que foi a morte (nunca suficientemente esclarecida) de sua irmã Anecy Rocha, em Copacabana.

Glauber acreditava ter escrito um livro bíblico, uma espécie de terceiro testamento plasmado no sofrimento e na vivência. Um Canudos redivivo. Um livro com a linguagem brasileira do povo do sertão, diferente, portanto, do eruditismo de João Guimarães Rosa que, no Grande Sertão: Veredas, acaba compondo um épico que nada tem a ver com os “falares” do sertanejo-povo.

E Rosa paga tributo, transformando-se ele mesmo, Rosa, num dos personagens — carne e osso — do Riverão, em contato epidérmico com o “sertanês” oficial, a fala dos matutos.

Glauber julga Rosa “um ditador do sertão”. Argumenta que, a partir do Grande Sertão, toda a literatura brasileira de caráter regionalista teria se aprisionado na camisa de força da subversão da língua natural do sertanejo promovida pelo mineiro. Assim, criar uma obra que resgatasse o “sertanês” contador de causos era o objetivo de Glauber.

E Riverão cumpre este papel. Um livro com a fala do povo que, interessante, transcrita esta mesma fala para o papel, acabou se tornando um emaranhado gramatical, tão antigramática que os críticos e linguistas não reconheceram aquele registro como sendo literatura.

A fala do povo é secreta, selvagem, reprimida, uma fala antigramatical, capaz de ser transposta literariamente somente na boca de um ator, intérprete da boca do povo.

E, entre tantos atores que atravessam a narrativa, este também é o papel a cumprir pelo Rosa-personagem.

Ele, ao mesmo tempo, é ouvinte-pesquisador, recitador dos clássicos greco-latinos, cavaleiro-romancista, acadêmico de Cafarnaum (leia-se Academia Brasileira de Letras) e, suprema desmistificação, amante de Linda, a “heroína” do Riverão, filha de Riobaldo com Diadorim.

Robin Hood Tupiniquim

Riverão Sussuarana é, na verdade, uma profunda revisão crítica da história do Brasil. Seu destino messiânico. A fé, a crença ingênua são expostas por Glauber numa tentativa obsessiva de libertar o povo brasileiro de sua eterna necessidade de proteção.

Fazê-lo ver a sua impotência para buscar o seu próprio caminho, sem atrelismo aos ideais europeus de conduta política-ideológica. Vontade de destruir com a adoração dos Totens Oficiais, ou aqueles criados pela sua própria inconsciência de abandono.

É dentro deste propósito que Glauber se insurge contra um dos totens político: Luís Carlos Prestes. Para Glauber, Prestes não assumiu a Revolução de 1930, e, por isso, caímos no regime ditatorial de Vargas.

Um soldado anônimo — falando do seio da própria Coluna — faz a denúncia. O caso Geisel e as multinacionais (não esquecer que estamos nos anos 70) também passam pelo crivo glauberiano. A crença popular é vista impiedosamente por Glauber no romance. Ele julga que os seguidores de Antônio Conselheiro eram verdadeiros kamikaze  de um revolucionário de causa nenhuma. Um “anacoreta sombrio” no dizer do próprio Euclides da Cunha.

O Totem Religioso, representado por Padre Cícero, é mostrado nas suas relações com os deputados do Nordeste. Cícero viu Prestes como o anticristo a caminho do Juazeiro. Numa única passagem, o anônimo soldado da Coluna acaba com os mitos Cícero e Lampião — o Robin Hood tupiniquim:
“Até Lampião nos enfrentou empresado pelo Padre Cícero mas ficou com medo do Fogo do Cavaleiro da Esperança – este Cavaleiro de Glórias Pátrias! Nós afundamos na Bolyvya, derrotados porque de 1924 a 1926 as massas urbanas não responderam ao nosso grito” (p. 81).

Se Grande Sertão: Veredas é um poema épico da gente nordestina. Se Os sertões é uma reportagem humanizada do apego à terra seca, Riverão Sussuarana é a expressão falada desses dois clássicos da literatura brasileira. “É absolutamente necessário ler Riverão Sussuarana”, recomendava Jorge Amado.

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Paulo Ribeiro é professor universitário e escritor. Lançará em junho sua nova obra, Bagorra

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