Por Marcos Teofilo *

Vislumbrei a casa que parecia mais perto agora, avizinhando-se através das árvores. A vegetação, antes densa e fechada, abria-se numa clareira. As janelas iluminadas se destacavam no negrume da noite e desenhavam formas geométricas no piso da varanda e nas cadeiras brancas de vime encimadas por almofadas floridas. Enrodilhado numa delas, um gato malhado me olhou com pouco interesse, espreguiçou-se e desapareceu entre as grades do pórtico que dava no bosque lá atrás. Rahul? Lá em cima no telhado, a fumaça subia em rolos até desaparecer no céu sem estrelas, nem sequer uma brisa. Devem estar todos lá, pensei, mas com a lareira acesa nesse calorão?

Foi aquele médico alemão de nome estranho e impronunciável que me garantiu: é infalível. Qualquer lugar? Perguntei sem conseguir disfarçar minha pouca confiança. Quando estendeu a mão com o frasco marrom e disse unfehlbar, notei na hora o sotaque do leste. O muro caíra há pouco, mas a Alemanha unificada, uma única pátria, parecia anos-luz de se tornar realidade. E agora todos, sem exceção, vendiam segredos, traficavam projetos de bombas caseiras e aparatos militares, uniformes, fotografias, máscaras contra gases, receitas médicas, remédios, fórmulas matemáticas, pistolas e capacetes amassados com suásticas gravadas desgastadas pelo tempo. Médicos, físicos, químicos, zoologistas, farmacêuticos, ginastas e biólogos.

Todos tinham lá seus segredos escondidos pela cortina de ferro, enterrados feito um bicho de estimação nos fundos do quintal de suas casas. E agora desencavavam tudo, ávidos por alguns marcos e uma noite regada a muita cerveja no biergarten mais próximo. Prost! Encontrei o tal médico de aparência carcomida, num apartamento ainda mais carcomido numa ruazinha de pedras em Cottbus. Dez gotas, ele disse me olhando por cima das lentes dos óculos sebosos. Nem mais, nem menos. Jogue fora o que restar. Preste atenção porque perde o efeito 15 minutos depois de aberto, então tome logo que abrir.

Fui caminhando devagar pela trilha, que virou um caminhozinho ladeado de pedras caiadas de branco. Atravessei o jardim e o cheiro de dama da noite me tomou. A casa parecia tão definitivamente em silêncio, até que escutei o som do piano. Adivinhei que vinha da sala de estar e me detive com atenção redobrada. Ah, Chopin! Um de seus noturnos, me certifiquei apurando os ouvidos a cada nota. Agora tinha certeza que estava no lugar certo. Certamente estão reunidos ao redor do piano, cada um com sua taça de ponche. A casa parecia flutuar no calor da noite, suspensa fora do tempo.

Contei as dez gotas que foram pingando no copo com água, já sentada na cama. Assim não corria o risco de me estatelar de cara no chão. Deite-se, feche os olhos e conte até dez, mas de trás para frente. Parecia ouvir a voz do médico, carregada de sotaque. Respire profundamente: dez, nove, oito, sete…

Abri a porta devagar e parei na soleira, as notas do piano agora tão próximas. A casa cheirava a bolo de fubá e esse cheiro só aumentou quando Ifigênia surgiu sorrindo com seus passos miúdos, as pernas curtas e inchadas de varizes. Ah, então você veio! Abracei-a intimamente como se a conhecesse há anos, sentindo nela o perfume de água de rosas na nuca, de cabelos grisalhos tão cuidadosamente presos na fivela de osso em forma de uma harpa romana. Presente de dona Lygia, ela gostava de contar com orgulho. Disse que comprou numa de suas viagens, num país distante no meio do deserto. Tunísia? Entre, entre minha filha, ela disse me tomando pela mão. Já estão todos aqui, acrescentou num sussurro em respeito ao noturno que reverberava, algo raivoso, pelas paredes da casa. Se enveredou por um corredor e desapareceu dizendo que precisava desligar o forno. Na passagem estreita que ia do vestíbulo até a sala, parei para tomar fôlego.

Entrei no recinto sem dar um pio e sentei-me no banco cujos braços eram formados por cisnes entalhados na madeira de jacarandá, os pescoços se projetando em uma curva romântica, as pontas dos bicos se escondendo enterradas nas asas. Ninguém notou minha presença. Fiquei ali, respirando, enquanto um arrepio me subiu pelo braço. Mas tinha esfriado assim de repente? Agora mesmo estava tão quente lá fora. Levantei-me e fui me infiltrando entre os personagens, até chegar a lareira. Bem melhor aqui, com esse calor e o cheiro do fogo crepitante. Busquei no bolso o maço de cigarros e, ato contínuo, o moço do saxofone aproximou-se, estendendo na minha direção o isqueiro aceso. Agradeci e soprei para o alto a fumaça. Não vai tocar? Hoje não, respondeu alisando o saxofone, muito limpo e brilhante, que refletia toda a sala como se estivéssemos em uma caverna iluminada e nada mais existisse a não ser o grupo, capturado e aprisionado num reflexo momentâneo. Hoje só ela vai tocar, anunciou num tom solene, arremessando um olhar para a cabeleira farta e armada, a fronte compenetrada, o batom marcante, atrás do piano. Quer dançar? Agora era ele que perguntava estendendo a mão e sorrindo um riso de dentes tão brancos que me fez recolher qualquer palavra ou gesto. Olhei para o chão, encabulada. Mesmo assim ele tomou minha mão e depositou nela um diamante do tamanho de um ovo de pomba. Estremeci. Tenho pressa, preciso ir, disse. Devo atender a um pedido. Fica com isso. Você sabe que preciso sair e nunca mais voltar, certo? Ah, Senhor, eu sabia! Como eu sabia e por saber meu coração se encolheu apertado no peito e um soluço de angústia se instalou em minha garganta. Ele vai se matar! Guardei no bolso do casaco o diamante e enxuguei uma lágrima com as costas da mão. Meu olhar se anuviou e quando voltei de novo minha atenção à sala, ele já havia desaparecido. Joguei o cigarro na lareira, meu rosto ardia como as brasas. Preciso sair daqui, cogitei procurando a passagem para o vestíbulo, mas ela já não existia. Onde agora, meu Deus?

Posso saber por que a senhorita está chorando? Virei-me e vi Ifigênia me observar com olhar severo. Enlaçou-me pela cintura e subimos a escada. Você precisa descansar, mocinha. Entramos no primeiro quarto. Estava tonta, uma zonzeira que me tomava em ondas. O som do piano agora vinha de muito longe, como se pairasse num sonho dentro de um sonho, na noite amarela e infinita dentro da noite menor, onde adormeci, abrindo a mão ao desabar sem sentidos e fazendo rolar pelo chão o copo vazio das gotas (mágicas?) do alemão de Cottbus. Deite-se aqui minha filha, disse Ifigênia com carinho, mas com certa autoridade. Isso é coisa do mal des transports, logo passa. Sentiu com a palma da mão minha testa afogueada. Tão quente! Vou já buscar um ponche bem gelado, disse acendendo o abajur ao lado da cama. Apagou a luz e desapareceu fechando a porta. Levantei-me e fui até a janela para abri-la, precisava de ar fresco.

Você sofre de cinetose? Uma voz com sotaque alemão atrás de mim perguntava. Virei-me num salto. A moça loira e pálida estava sentada numa cadeira no canto do quarto. Tinha só uma perna saindo da parte de baixo do vestido. Mas e a outra? Me olhava curiosa com seus pequenos olhos azuis que quase desapareciam na cabeleira loura. Helga! Se estivéssemos na farmácia do velho Wolf em Dusseldorf, ela continuou, eu te daria algum remédio para isso. Ia ficar boa logo. A voz era doce e seu olhar parecia se desculpar por não poder ajudar. Você viu minha perna ortopédica? Tive um tremor. Agora um olhar furioso tomara seu semblante, como uma máscara. A boca entortada num rasgo de riso insano. Eu vim da Alemanha até aqui enfiada torta dentro da terceira classe de um vapor para encontrar aquele maldito! Sabia que ele se casou comigo só para roubar a minha perna, sabia? Desapareceu como um rato na noite de núpcias! Onde foi parar aquele ladrãozinho nazista de merda filho de uma puta? A voz era um grunhido. Suas mãos seguravam o acento da cadeira com tanta força, que os nós dos dedos das mãos muito brancas, quase transparentes, ficaram vermelhos cor de fúria. E agora gritava, minha perna! mein bein! Onde está minha perna?

Saí destrambelhada do quarto, fechando a porta que abafou os gritos e os fez desaparecer num gemido. Pobre criatura, pensei caminhando pelo corredor à procura do lavabo (não tinha um lavabo?). Precisava molhar o rosto e quem sabe recobrar o sentido das coisas, mas Ifigênia já apontava no topo da escada. Eu não disse que você precisava repousar? Estou bem, não se preocupe, menti. Arrisquei a pergunta, quem é a moça loira lá no quarto? Ah, você reparou na foto, disse me olhando surpresa. É uma parenta distante de dona Lygia. Dizem que morreu jovem na época da guerra. Durante o cerco a Berlim, uma mina explodiu e decepou sua perna. Morreu em desalento, abandonada pelo noivo na primeira noite juntos, depois do casamento. Coisa horrível, uma moça tão jovem e bela. Ifigênia! Veio o grito lá de baixo e ela me olhou um pouco assustada, gritando de volta por cima do corrimão. Já vou dona Lygia! Desapareceu no final da escada. O piano já não mais tocava e só ouvia agora o murmurinho das vozes abafadas da sala de estar.

Estava outra vez sozinha no corredor de muitas portas, quando Rahul passou rápido ao meu lado e foi se arrastando em posição de caça, acompanhando o rodapé. As orelhas inclinadas para trás, grudadas na cabeça. O corpo estirado, pronto para o ataque. Mas, parecendo desistir da presa invisível, apenas esgueirou-se pela fresta de uma das portas e desapareceu. Segui-o, empurrando a porta que se abriu. Uma nuvem de vapor me acertou em cheio. Contemplei o salão entalhado em pedra, com piscinas e quedas d’água escorrendo em filetes que abasteciam os banhos. Mergulhei a mão num lago e a tepidez da água me fez relaxar. Que vontade de me deitar nesse lago, mas apenas sentei-me a sua beira, passando a mão num ir e vir lento na superfície da água. Dezenas de homens, uns nus, outros vestindo togas brancas, caminhavam pelo salão em discussões acaloradas. Outros boiavam nas piscinas. Avistei Rahul, num canto, apoiado em um dos ombros numa prateleira de ânforas. Desaparecera o gato, dando lugar ao atleta grego de corpo esguio e músculos rígidos. O rosto de traços finos, quase femininos, e os olhos, ah, eram os mesmos do felino! Olhou-me como se me conhecesse, esboçando um riso travesso. Quantas vidas tem um gato? Hoje à noite vou correr nu carregando a tocha olímpica na primeira volta de revezamento, comentou – não quer ir? Mas antes que eu respondesse ao convite, a mão de um rapaz tocou seu ombro, puxando devagar a alça de sua toga, que deslizou até o chão pelo seu corpo de estátua grega, lustroso de suor e azeite. Lançou-me um último olhar antes de desaparecer por entre as colunas, encoberto por uma nuvem de vapor. Saí de volta ao corredor envolto em silêncio.

Desci a escada, ainda na esperança de encontrar o lavabo, quando Wanda surgiu por detrás da cristaleira vestindo sua malha de balé cor de rosa e as sapatilhas de cetim. Me tomou pela mão e me puxou com leveza. Vem! Preciso te mostrar uma coisa. Segui seus passos na meia ponta, atravessando a cozinha (por andava Ifigênia, não era hora do jantar?) até a despensa. Parecia às escuras, a não ser pela luz da lua que surgira redonda e quase transparente num céu azul marinho salpicado de estrelas. Ouvi os pássaros em algazarra, mas já amanhecia? Vem, ela repetiu com mais pressa e insistência, olha! Num dos cantos, uma fila negra de formigas se movia rápido pelo chão de ladrilhos e desaparecia atrás do guarda-comida. Wanda se equilibrou na ponta da sapatilha e com uma das mãos sobre uma pilha de sacos de farinha, começou a sequencia básica de movimentos: frente, lado, atrás, lado. A ponta dura da sapatilha fazendo toc-toc no piso. Ajoelhei-me para ver as formigas mais de perto e assim, apertando os olhos naquele lusco-fusco, vi que carregavam ossinhos, que brilhavam num branco-azulado quase fluorescente sob a luz do luar que adentrava a despensa e se derramava sobre as caixas de mantimentos. E tinha aquele cheiro agridoce, bolor? Mas pareciam tão limpos! São do anão, não são? Perguntei e Wanda respondeu sem me olhar e sem interromper a sequencia de movimentos. Levantou um dos braços em um arco suave na terceira posição. Lógico que são, o que acha? Logo o esqueleto vai estar todo montado, acrescentou. Ontem à noite vi que o crânio e as omoplatas já estão ligados e equilibrados, bem atrás do guarda-comida, dentro de uma caixa. Esses aí devem ser os ossinhos da coluna, concluiu arrebitando o nariz e iniciando uma nova sequencia, toc-toc. Levantei-me, nauseada, seria aquele cheiro? E esse abafamento? Faltava-me o ar. Preciso sair, anunciei, você vem? Não, respondeu, preciso ensaiar. Dona Lygia quer tudo perfeito para a apresentação no final do ano. Já comprou metros e metros de tule e cetim.

Deixei Wanda e as formigas para trás, procurando o caminho de volta para o vestíbulo, mas me deparei com a porta aberta dando para o alpendre que se abria para outro jardim nos fundos da casa. Avistei irmã Bula sentada quieta, como se rezasse, em um dos cadeirões numa das extremidades. Parecia preocupada. Aproximei-me, respirando com alívio o ar fresco adocicado pelo perfume de dama da noite. Toquei de leve em seu ombro. Chorava baixinho. Irmã, o que houve? Levantou para mim o olhar umedecido de lágrimas. Ah, minha filha, é Ana Clara, sumiu outra vez! Sentei-me no banquinho ao seu lado e peguei sua mão, numa tentativa de conforto, ouvindo seu lamento. Ah, Senhor, essas meninas, sempre me dando trabalho, sempre!

Ana Clara, ou Ana Turva como era chamada pelas outras quando se embebedava e fazia loucuras varando a madrugada. Chegava em casa ao amanhecer, os olhos fundos envoltos em buracos negros preenchidos pelo delineador derretido nos calores da noite e dos corpos. Irmã, continuei, e as outras. Onde estão as outras? Irmã Bula me encarou, mergulhada em confusão. Quem, minha filha? As meninas, irmã, insisti – onde estão? Alisou uma ruga no hábito, parecendo procurar tempo para buscar uma resposta no labirinto de seus pensamentos. Levantou-se e correu até o pórtico. Lá está ela, Ana! Tentei enxergar, mas lá nos fundos da casa só via o bosque de árvores seculares. Irmã Bula desceu as escadas e caminhou delirante pelo caminho de cascalhos, passando pela estátua da menininha sentada no banco de pedra, paralisada no gesto de tirar do avental um pedaço de bolo. Na outra mão, segurava um passarinho. Enquanto observava, veio outra vez aquela sensação de nadar com esforço numa água, e ser puxada para dentro de um poço. E na minha visão de afogada, seu hábito agora se esvoaçava na ventania que atingiu a casa e os arredores, arrastando pedregulhos, folhas e galhos em redemoinhos. As árvores se inclinaram. Segurou o véu com uma mão e me lembrei da noviça na televisão da minha infância, soprada para o ar pelo vento, levitando com seu chapéu. Irmã Bula, titubeante, adentrou o bosque e sua voz foi desaparecendo longe, longe. Ana! Ana Clara! Onde você se meteu dessa vez, menina?

Preciso ir, pensei levantando-me e consultando o relógio, mas tinha parado. Que tempo agora? Caminhei pela casa vazia, nenhum som. Passei os dedos pelo piano empoeirado. Abri a tampa do teclado e toquei uma nota, que ecoou pelas paredes, como se numa resposta: Não há ninguém aqui! A mesa do jantar estava posta, irrepreensível. Ifigênia sabia das peculiaridades e do perfeccionismo de dona Lygia. A poncheira no centro da mesa era agora uma piscina esvaziada. Nem sinal do cheiro de bolo de fubá.

Avistei Rahul parado ao pé da escada. Olhava-me e seu olhar era um convite. Subiu os degraus em saltos, parando e olhando para trás uma vez para certificar-se de que o seguia. Fui subindo mais uma vez a escada e lá em cima no corredor me aguardava o gato-atleta, que desapareceu em um dos quartos. Mais um quarto, meu Deus. Lá dentro, só a luz amarelada da luminária em formato de dois anjos enroscados no ensaio do beijo. Um livro aberto na cabeceira, queria tanto, mas tanto saber que livro era! Ela parecia tão alva, as mãos pousadas sob o colo num gesto de santa. Dormia. A manta de lã a cobria até a cintura, o chambre verde-água ajeitado em cada dobra. A cabeleira pousada numa pilha de travesseiros. Num salto ágil de ginasta, Rahul pousou sobre a manta e se posicionou como esfinge em seus pés. Ficou me olhando e fechou os olhos, que diminuíram até que se tornaram dois riscos negros de cajal marroquino. E assim permaneceram, vigilantes. Olhei para o rosto que agora era de cera. Não! Segurei-a pelos ombros e sacudi, acorda! Estão todos aqui! Ifigênia fez bolo de fubá. Wanda ensaia para a apresentação no final do ano, já consegue ficar na ponta! E o moço, aquele que você pensara perdido para sempre, voltou. E trouxe com ele o saxofone, vem! Vamos descer porque logo ele começa a tocar! Irmã Bula vem trazendo Ana Clara e quem sabe as outras, imagina só! E Helga reencontrou Paul Karsten, que comprou para ela uma prótese como aquela dos atletas na paraolimpíada. Fizeram as pazes, acorda! Vem também aquele moço da bolha de sabão, o físico, você gostava tanto dele, lembra? Ah, meu Deus, onde agora a ponta do fio para te fisgar desse sono de trevas? Onde? Vem tocar seu noturno, o piano te espera afinado e ao seu lado os convidados com suas taças de ponche. Rahul vai chegar correndo, com sua coroa de louros, trazendo a tocha olímpica e com ela vai acender a lareira. Vem!

Mas nenhuma resposta, nenhum gesto, nada, ah! Então agora eu sabia e ao me dar conta disso, abandonei às pressas o quarto envolto numa luz doente. Desci correndo a escada e atravessei o jardim, quase sem fôlego, deixando para trás a casa que foi desaparecendo num turbilhão e esse turbilhão me tomou também num arrebatamento de ventos e folhas e agora tudo girava, e eu junto, até que um anão de jardim surgiu flutuando na tormenta e estendeu as mãozinhas de pedra dentro do redemoinho, apertou meu pescoço e sorriu um riso cinzento, que não tinha graça nenhuma.

Acordei soluçando e tossindo, sem ar, com nó na garganta que se desfez com um copo de água. Lavei-o goela abaixo e fui até a janela, amanhecia. Lembrei-me então dos seus olhos sonolentos me fitando com estranheza. O que você está fazendo no meu sonho? A boca terna, os lábios num riso de Mona Lisa. E os olhos foram se esvaindo como um rio, ah, o rio! Enfiei a mão no bolso do casaco e apertei nela o diamante que não via, mas sentia-o do tamanho de um ovo de pomba. E na minha derradeira lembrança, o colorido dos olhos tornou-se verde-musgo, como o fundo do rio, no fio derradeiro da noite que se estendeu pela alvorada do dia, onde o sonho se prolongava infinito até a ponta dos meus dedos abrigados no bolso do casaco, adivinhando-o.

Verde e quente.

Marcos Teofilo é escritor e tradutor

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