Por Paulo Ribeiro*

Iberê Camargo escritor? Serão de fato importantes os textos deixados pelo artista plástico, a ponto de merecer um estudo no âmbito da Teoria da Literatura?

A ligação de Iberê com a literatura remonta ao tempo de aprendizado: ainda servindo no Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, núcleo da Coluna Prestes, Iberê ficava no acampamento exercitando-se no desenho a partir de uma Divina comédia ilustrada por Doré. Mais tarde, já em Porto Alegre, ele viveria a efervescência intelectual da Livraria do Globo, promovida principalmente por Erico Verissimo, com quem trocaria cartas durante a vida toda. Também é interessante registrar a relação muito próxima do pintor com Vianna Moog: esse escritor foi um dos responsáveis pela Bolsa de Estudos que levou Iberê ao Rio, em 1942. Na bagagem iria uma carta do autor de Um rio imita o Reno endereçada a Augusto Meyer, para que introduzisse o jovem pintor no ateliê de Portinari.

No Rio, Iberê passaria a frequentar o Café Vermelhinho, ponto de encontro da intelectualidade. Daquele tempo, o artista guardava histórias memoráveis, que envolviam desde os poetas Drummond, Bandeira, o escritor Marques Rebelo até ao ator Solano Trindade, o fundador do Teatro Negro. Um dos episódios referia-se à maneira “desajeitada” com que recebeu Augusto Frederico Schmidt: “Quer dizer que este é o poeta do Galo branco?” perguntou Iberê ao ser apresentado aquele sujeito sombrio e esquisito, levado ao seu ateliê pelo seu então amigo e mecenas, Luís Aranha. Augusto Frederico Schmidt era conhecido pelo espírito sempre aberto para ajudar os seus colegas artistas; foi ele quem teve a estranha ideia de pedir romance a um sertanejo ocupado em escrituração mercantil, orçamentos e relatórios — Graciliano Ramos. Foi também Schmidt o responsável pelo lançamento de Vinícius de Moraes no mundo literário.

Esse era o seu círculo, e que o deixava sempre muito próximo do interesse literário. Do Vermelhinho e da Globo guardava um sentimento nostálgico, que extrapolaria num texto absolutamente irônico, denunciando o vazio muitas vezes presentes na linguagem atual.

— Anui, Rabota.

— Anui, Viragato, respondendo o cumprimento de Rabota.
Ambos param à beira da calçada, em frente da Livraria do Globo, melhor, de seu antigo prédio.

— Teri mure viroto copata?

— Sorô, sorô, fatulim rebentim.

— Bentum, bentum, Viragato.

Rabota apoia-se no guarda-chuva e com voz de flauta, quase assobiando; piu, piu, sissifô, fu, fu, fu, prossegue agora quase assoprando.

Viragato desvia o olhar de seu interlocutor e se distrai na contemplação de uma pequena aranha que desce de um fio, como acrobata de circo, da arcada da porta da livraria. Depois, concentrando-se, prossegue:

— Rabota, Rabota, renoê, rebinô, suravaca, sunurico, rebutoco, chocaraco!

— Ti, ti sfrigo!

— Pregunça! Putotanca! Os dois filólogos conceituais se encaram, olho no olho, e se separam visivelmente irritados.

Iberê escreveu continuamente artigos para jornais, a maioria deles relativos à baixa qualidade da tinta nacional e muitos de fundo crítico, como Angra, no qual faz a denúncia da ameaça nuclear. Seu breve escrito quando da morte de Guignard, mais que um reconhecimento, redimensiona a importância da convivência entre os velhos mestres e o aprendiz. Ele ainda nos legaria vários outros textos que demonstram que a pintura nos privou de um fabulador, de um escritor muito interessante. Como em suas telas, nos seus escritos encontraremos as nossas dores e angústias, revelando pleno domínio da técnica literária.

Era leitor refinado. Além de Dante, tinha como seus autores prediletos Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Faulkner, Thomas Mann, Kafka, Goethe e Cervantes. Dessa eclética seleção, era capaz de passar dos poemas do português José Régio às descrições políticas e apaixonadas da Grécia, feitas por Henry Miller, no seu O colosso de Marussia, lido no italiano.

Entre os nacionais, Machado de Assis — e nas suas estantes apareciam exemplares de Jorge Amado, especialmente um A B C de Castro Alves, em alemão, cuja paisagem de capa tinha a marca do seu punho; sua biblioteca continha ainda um razoável número de obras específicas de estética, História da Arte, além de livros com reproduções dos grandes mestres.

Em 1988, publicou No andar do tempo. Neste livro de contos encontraremos imagens ligadas ao plano do fantástico, um narrador envolto com forças estranhas e, sobretudo, personagens imersos num ambiente de suprema angústia diante do tempo (tempus fugit), a inquietação diante de um mundo regido por forças inconcebíveis. Temos ali uma narrativa tomada de traços sobejamente vinculados à tradição do mais genuíno grotesco.

Novamente tendo como eixo narrativo o fluxo aterrador do tempo, encontraremos também em suas memórias (Gaveta dos guardados, publicado post-mortem em 1998) a expressão da condição humana, da dor humana, e expressão, verificaremos, raramente alcançada em literatura.

Ele ainda nos deixaria outros inéditos, como os textos escritos originalmente em italiano, quando de seu aprendizado no ateliê de Giorgio De Chirico, na década de 40, em Roma. Eles aparecem pela primeira vez aqui, vertidos para a Língua Portuguesa; embora em número pequeno, são textos que enriquecem e comprovam a capacidade de Iberê Camargo como escritor.

* Paulo Ribeiro é escritor e professor universitário. Lançará em breve uma coletânea de contos intitulada Bagorra

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