E u tinha terminado um treinamento em San José, no Vale do Silício, e seguiria para uma viagem de férias pelos Estados Unidos. Vivia sozinha, já naquela fase em que as amigas têm marido e filhos. Nunca me dei muito bem com meus pais, o cheiro e as cores daquela casa me faziam pensar no fundo de uma caverna úmida. Fora os companheiros de trabalho, ninguém sabia que eu estava na Califórnia. Se fosse encontrada morta, levariam meses para descobrir minha nacionalidade, o que eu estava fazendo ali. As pessoas aqui também tardariam em notar minha ausência, depois avisariam as autoridades norte-americanas, que fariam buscas. Meu processo na mão dos burocratas da Embaixada Brasileira, meu corpo sem alma, sem pensamento, esvaziado, um silêncio bom.

Era uma profissional bem-sucedida, subia na empresa sem muito esforço, mas nunca me importei com isso. Andava lendo matérias sobre a Ponte Golden Gate. É o lugar onde mais pessoas se suicidam no mundo. Um suicídio a cada duas semanas. Cento e vinte quilômetros por hora em direção à morte líquida no fundo do Pacífico. Causa de morte: múltiplas lesões contundentes. Não sei se algum brasileiro já morreu lá. Apenas um por cento das pessoas que se jogam sobrevivem.

Nos vídeos que encontrei na internet, os jumpers da Golden Gate Bridge faziam movimentos similares. Caminhavam por alguns minutos de um lado para o outro e depois se aproximavam da barra de metal, apoiavam os braços nela. Alguns pareciam chorar, curvavam a cabeça e a alocavam entre os braços. Quando levantavam o rosto, olhavam para a frente e em seguida para baixo. Passavam a perna bem devagar pela grade de proteção e ficavam de pé na plataforma estreita que dá para o mar. As mãos atrás das costas segurando o resto da grade, um último elo com o espaço preenchido, sólido. O tórax projetado para a frente. Eles sempre ficavam um pouco nessa posição antes de saltar. O boné de um velho saiu voando. Passavam-se minutos ou segundos, até que os dedos se soltavam do ferro e o corpo caía.

Para mim, voavam, parecia uma morte boa. A vista era bonita, o oceano, os morros, a baía de San Francisco, a ponte vermelha pulsando sob os pés. Muito melhor do que se jogar nos trilhos da estação da Sé. Uma vez me disseram que, quando você se suicida no metrô, morre eletrocutado antes mesmo de o trem passar sobre a sua carne.

Vi no vídeo uma pessoa se jogando da Golden Gate de costas, com os braços abertos, uma ave tranquila, leve, como se tivesse encontrado muita paz no salto. Era um homem jovem, desses que aparentam ser aventureiros, donos de uma vida agitada. Invejei sua coragem. Parecia que a qualquer momento puxaria uma cordinha, um paraquedas se abriria, e ele pousaria no mar, boiaria de olhos fechados. Parecia que o corpo dele só era sugado pelo mar e depois a água fazia o que era preciso. Macio, suave, indolor.

Comprei uma garrafa de whisky por apenas dezoito dólares, bebi dois copos na varanda do hotel e usei o resto para encher o cantil de inox que levei dentro da bolsa. Já estava de férias e passava os dias no quarto vendo televisão, não tinha vontade de conhecer os lugares, falar inglês, fazer compras.

Só consegui me animar quando tomei a decisão. Um fio de adrenalina nasceu no dedão do meu pé esquerdo e foi subindo até o pescoço. Havia muito tempo não sentia espanto. Pedi indicações para o recepcionista do hotel e peguei o ônibus que me levaria até a ponte. Durante o percurso, olhava pela janela, reparava no rosto das pessoas, dava uns goles bem pequenos no whisky. A ideia não era ficar muito bêbada, mas um pouco mais leve. Não sabia muito bem se queria pular, mas as imagens me atraíam. Talvez sim. De qualquer modo, era preciso ter contato com aquele vazio.

Quando eu me perguntava por quê, me sentia ainda pior. Fazia uma retrospectiva da vida, meu pai deitado no sofá rasgado vendo luta de boxe na tevê, a barriga para fora e uma latinha de Brahma na mão, minha mãe sentada na cozinha comendo uma coxa de frango sobre um tupperware, eu na faculdade, cerveja com alguns colegas num bar com mesas que imitam mármore, um garçom triste, nada tão problemático.

As pessoas que saltam da Golden Gate Bridge costumam escrever bilhetes suicidas e inseri-los em sacos plásticos dentro dos bolsos. Um deles dizia “Sobrevivência do mais apto. Adiós. Inapto.” Outro dizia “Absolutamente nenhum motivo, exceto uma dor de dente”. Eu não escrevi bilhete, não saberia o que dizer, a quem me dirigir.

Foi bonito ver a paisagem só um pouco embriagada, as pessoas se moviam de forma mais lenta e tranquila, pareciam felizes. Pela passarela vermelha que transporta os pedestres e ciclistas, li plaquinhas azuis “PEÇA AJUDA. Se você está tendo pensamentos suicidas, por favor ligue para o National Suicide Prevention Lifeline, 1-800-273-8255”.

Um homem oriental vestindo uma camiseta desbotada com foto do Michael Jackson veio falar comigo. Achei estranho que ele viesse na minha direção. Disse que eu estava com alguma coisa no cabelo. Toquei a cabeça e desenrosquei um pedaço de folha dos fios. Se aquele chinês tivesse me dito outra coisa, perguntado o meu nome ou qual era minha música preferida, talvez eu não tivesse pulado. Durante todo o percurso, várias pessoas cruzaram o meu caminho, eu olhava nos olhos delas, ninguém dizia nada.

A cada passo, ia me aproximando mais da grade. Procurei um local mais tranquilo, com menos gente. Percorri a barra primeiro com a mão – ela ficou completamente preta –, depois com o braço e os ombros, então passei a me esfregar, sentindo o metal na pele. Um pássaro negro com a cabeça branca pousou ao meu lado. Tinha um olhar derretido e indiferente. Bicou o próprio pé e a barriga. Não o espantei, deixei que fosse embora por vontade própria.

Olhei para baixo. Aquela ponte faz você querer se jogar. Uma vontade de vertigem, frio nos ossos, pedrada no coração, gelo na nuca. Dizem que quem sofre de vertigem não tem medo de altura, e sim de sentir desejo pelo vazio, de querer pular. Fica atraído pelo nada. E depois não se sabe o que acontece. Não é como dormir, acordar, responder “tudo bem e você”, cortar as unhas dos pés, limpar a caixa de spam do e-mail.

Passei minhas pernas sobre a grade e fiquei de pé no vão entre a ponte e o mar. Ninguém notou que eu estava ali. Refleti por alguns instantes, escutei as buzinas, vi o desenho espiral que as nuvens formavam. Voltar exigiria uma operação complicada, teria que apoiar primeiro os braços na grade, depois os cotovelos e em seguida as palmas das mãos, fazendo um impulso com os músculos dos braços, até que eles sustentassem o meu corpo inteiro, para que então eu pudesse me sentar na grade e jogar as pernas para o outro lado. Qualquer ato desastrado seria fatal. Soltei o corpo, mas mantive as mãos agarradas na grade. Esse momento é difícil, você não sabe mais se quer ou não. Olha para baixo e sente tontura. Aquilo te chama, mas ao mesmo tempo apavora.

Sensação metálica nas mãos suadas, escorregadias. Apertei mais forte a grade. O vento batendo no meu rosto, bagunçando meu cabelo. Contei até dez. Senti meu corpo com frio. Contei até dez de novo e decidi que contaria até vinte, depois até trinta – um bom número.

Quando meus dedos soltaram, pensei que não queria morrer de verdade. O suicídio é uma coisa de momento, dizem. Os sobreviventes contam que se arrependem do ato no meio do ar. No segundo seguinte, porém, eu já estava conformada. Um final eletrizante para uma vida monocórdia. Quis me lembrar dela, mas só surgiram alguns flashes, o barulho do meu dente mastigando uma cenoura crua, o cheiro do cabelo da minha professora primária, a espuma de sabão ficando suja quando alguém esfrega o chão.

Enquanto caía, me emocionei. A gravidade acelerada fez com que as lágrimas fluíssem ao contrário; em vez de deslizarem pelas bochechas até a boca, escorreram pela testa e têmporas na direção do cabelo. Meus seios também penderam para o lado oposto. Dizem que são quatro segundos, mas a queda parecia permanente. Durante esses instantes, me perguntava se já tinha morrido, se morrer era isso mesmo, cair para sempre. Então, veio o golpe forte na água, uma dor única no corpo todo, a pior dor. Meu corpo batido no liquidificador mais rápido do mundo. Achei que a água tinha me partido em duas, por isso para mim aquilo também já era estar morta. Depois não me lembro.

No hospital, estavam todos comovidos. Quando abri os olhos, bateram palmas. Quebrei os dois tornozelos, uma perna, um braço e três costelas, que lesionaram também os pulmões. O coração ficou intacto. Rose, uma senhora baixinha com bochechas rosadas, ia todos os dias me ver. Ela gostava de visitar ambulatórios, de ajudar os internados. Segurava a minha mão – tinha obsessão por segurar as mãos dos doentes –, eu sentia seu dedão rechonchudo e oleoso alisando a pele sobre o acesso venoso da medicação. E sempre me trazia cookies, ainda posso sentir as gotinhas de chocolate flanando nas papilas gustativas. Eu fechava os olhos, respirava sentindo um ar fresco, quase incômodo, entrando pelas minhas narinas, vasculhando as minhas vias respiratórias, me despertando por dentro.

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O conto “Golden Gate” foi publicado com exclusividade na São Paulo Review e é parte do livro Você não vai dizer nada (Nós, 160 págs).

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Julia Codo nasceu em São Paulo em 1983. Formada em Letras pela Universidade de São Paulo e pós-graduada em Editoração e Jornalismo Cultural pela Universidade de Roma “La Sapienza”, é editora, escritora, roteirista e tradutora. Em 2019, foi uma das autoras selecionadas para integrar a antologia de contos Leia MulheresVocê não vai dizer nada é seu primeiro livro.

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