L eia o segundo trecho da peça Anti-Benjamin, de Ricardo Cabaça (foto), que é publicada em fascículos, quinzenalmente, aqui na São Paulo Review. Para ler o trecho inicial, clique aqui.

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Oscar – Exato. Falemos de trabalho e deixemos a arte para mais tarde.

Eliza – A sua ingenuidade é alarmante. Como é que nos pode acusar de falta de ética? A arte é a culpada, mas pode deixar de o ser.

Oscar – De que forma? Deixando de existir?

Eliza – Provocador e ingénuo. Você está a provocar-me, a tocar no meu ponto fraco. Começo a interessar-me realmente por si. Lá fora seremos tu, tu, tu. Podia ser uma melodia pop. Não. Não, refiro-me a parcerias, em trabalho conjunto para a grandiosidade do momento.  Nós podemos ser o grau zero da nova humanidade. O que acha?

Oscar – Diria que continuo perdido. Eu não sou cientista e você não é artista, não estou a ver qualquer hipótese de parceria.

Eliza – É compreensível, a mente humana tem as suas limitações. Neste momento, caro senhor, acredito que esteja preso à sua atividade, quer dizer, é dramaturgo e não consegue vislumbrar outras hipóteses para além do seu mundo. Não está errado, pelo menos não totalmente. A questão é um encontro feliz e único/

Oscar – Sim, o enco/

Eliza – Porra, é surdo ou é muito estúpido?! Já disse para não me interromper. Aqui é você. Aqui é você. Aqui é você. Repita!

Oscar – Aqui é/

Eliza – É tão ingénuo! Estava a brincar, não quero que repita nada. Enfim, vamos lá falar de negócios. Gosta de falar sobre negócios? Excita-o? Ou prefere falar sobre teatro e dramaturgia?

(Oscar mete o braço no ar.)

Oscar – Posso? A sua ira não me assusta e na verdade, pressinto uma ideia qualquer de teste ou simulacro, por isso digo-lhe que aquilo que me excita realmente são as suas mãos e os lábios.

Eliza – Interessante… (pausa demorada, Eliza pensa sobre os argumentos de Oscar) As minhas mãos… talvez também as minhas pernas ou os seios… objeto, não, matéria orgânica, física. E o meu pensamento?

Oscar – Também, muito, embora menos do que as suas pernas.

Eliza – O meu pensamento convence-o?

Oscar – Naturalmente.

Eliza – Aceita um café? Água? Whisky?

Oscar – Já tenho o chá, obrigado.

Eliza – Claro que tem. Bom, vamos avançar.

Oscar – Por favor.

Eliza – A minha empresa quer contratá-lo como dramaturgo, isso parece óbvio, não é?

Oscar – Como dramaturgo?

Eliza – Qual é a surpresa? Você não é o dramaturgo que ganhou o último grande prémio? Então, qual é a dúvida?!

Oscar – Está tudo certo, não é necessário aprofundarmos argumentos. Na verdade ia sugerir que começássemos por alguns exercícios de escrita, ajudam a desenvolver capacidades. Agora, escrever uma peça para a vossa empresa? Tipo a festa de Natal da empresa? Eu escrevo e os funcionários são os atores?

Eliza – Acredita em Cristo? Lembra-se da Via Dolorosa? Calvário, cruz, etc.? Sinto-me assim, num calvário imenso, uma cruz que carrego até ao infinito. Festa de Natal? Talvez não tenha sido boa ideia. Eu posso acompanhá-lo à porta.

Oscar – A hesitação faz parte da negociação. Sente-se. Estou disposto a ouvi-la até ao fim.

Eliza – Uau, onde é que esteve este homem enigmático? Finalmente mordo o lábio inferior num evidente sinal de excitação. Dispenso corpos musculados, a tonificação do corpo é um disparate, basta que a mente seja forte e cheia de informação.

Oscar – Talvez a ideia de festa de Natal possa ficar para outra altura. Nesse caso, o que é que me trouxe aqui?

Eliza – Curiosidade, fama e muito dinheiro?

Oscar – Estamos a avançar progressivamente, creio que podemos dispensar esses chavões.

Eliza – Quero que escreva uma peça para nós.

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Ricardo Cabaça é licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e tem Mestrado em Estudos de Teatro na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publicou as peças “O primeiro quarto na Bypass #2, Morte súbita”, na Revista Galega de Teatro #78 (Espanha), “Stop Motion para Eadweard”, nas Edições Húmus, “Albert Cossery ou Uma palavra para o dia chegar ao fim” na Revista Ensaia (Brasil), “Storni-Quiroga”, na Licorne, “Depois da última página/ Náufragos”, nas edições Adab, “Gaia, Corpo futuro” e “Dix”, nas Edições Primata (Brasil) e “Albert Cossery ou Uma palavra para o dia chegar ao fim”, na não (edições).

Sua peça “A vida segunda da barata”, a partir de Franz Kafka foi selecionada e encenada na Mostra de Peças em um Minutos dos Parlapatões, em Lisboa e em São Paulo. Participou no Seminário Internacional de Dramaturgia 2015 (Obrador d’Estiu) em Barcelona, na Sala Beckett, com Simon Stephens. Em 2016 foi o dramaturgo português convidado para a residência artística do Chantiers d’Europe, no Théâtre de la Ville, em Paris. A peça “Os náufragos” foi lida pelo elenco do Théâtre de la Ville. Participou no IX Seminário Internacional de Dramaturgia Amazônida (2019) como palestrante e com uma oficina de dramaturgia. Participou no Festival de Peças de um Porvir com a peça “Anti-Benjamin” (2020). Os seus foram encenados em Portugal, Brasil, Espanha e França. O autor é cofundador e Codiretor Artístico da 33 Ânimos, juntamente com Daniela Rosado, desde a sua fundação, em 2012.

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Ilustra obra de Adriana Varejão

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