E m meio a esses dias bastante atarefados, lembro que Frei Betto me trouxe a solicitação de redigir breves palavras para esta obra biográfica.

Penso que se podem escrever muitas coisas admiráveis sobre ele. Não posso, no entanto, admitir que eu me omita.

Conheço-o há mais de 35 anos, desde quando visitei Manágua em 19 de julho de 1980, por ocasião do primeiro aniversário da Revolução Sandinista. As ruas vibravam ao som dos cantos sobre o herói e líder da luta contra a tirania somozista: “Carlos Fonseca, comandante vencedor da morte, amante da pátria vermelha e negra, toda a Nicarágua clama a ti: Presente!” Aquilo se repetia incessantemente por meio da voz clara e musical dos nicaraguenses.

Diante de Daniel Ortega e dos demais dirigentes do movimento revolucionário, desfilavam os militares encabeçados pelo comandante Edén Pastora, que, sem dúvida, apreciava as cerimônias castrenses e marchava, de cabeça erguida, à frente daquela vigorosa milícia. Ali estava Rosario Murillo, que, em pleno apogeu da luta revolucionária, acompanhou Daniel em sua audaciosa viagem à cidade de Matagalpa, berço do poeta Ruben Darío.

Naquela comemoração tive a honra de conhecer Frei Betto, radiante e feliz com aquela revolução em pleno coração da América Central, nas pegadas do heroico general de Homens Livres, Augusto César Sandino, assassinado pelas intervenções ianques.

Desde então constatei tratar-se de uma pessoa de vasta cultura, amplos conhecimentos e profundas convicções.

Motivado desde muito jovem pela fé cristã, engajou-se na luta revolucionária, pela qual sofreu encarceramento duas vezes. A primeira, antes de completar vinte anos e, mais tarde, entre 1969 e 1973.

Viveu em uma favela, onde se solidarizou com os mais pobres. Consagrou-se à conscientização e mobilização populares, e o contato com o povo o confirmou na causa que abraçou por toda a sua vida.

Em 1992, durante o Período Especial 4– etapa difícil para o nosso país –, organizou, com outros amigos brasileiros, o Voo da Solidariedade a Cuba.

Contribuiu, com suas opiniões e experiências, na preparação da visita do papa João Paulo II a Cuba, e participou como convidado nesse evento. Do papa Francisco, que recentemente nos visitou, conhecíamos seu empenho pela paz e sua decidida luta pelo bem-estar de todos os povos. Presenteei-o com o livro Fidel e a religião, escrito por Frei Betto, que me havia comentado sobre o caráter progressista e as ideias do novo chefe da Igreja Católica.

Frei Betto impregna-se de alto sentido de lealdade e amizade. Defende com veemência Cuba e a Revolução, sem deixar de sustentar pontos discrepantes ou diferentes dos nossos. Procuramos analisá-los e discuti-los de modo construtivo entre revolucionários e verdadeiros amigos, como o comprova o diálogo mantido entre nós dois, publicado por ele com o título Fidel e a religião.

Assumiu, como sua, a causa dos Cinco Heróis cubanos, e a defendeu nas mais diversas tribunas internacionais.

Homem simples, de fala pausada, com a modéstia e a humildade que enaltece a sua condição de religioso, se identificou com os valores genuínos de nossa Revolução, que, segundo afirma, são também os da confissão cristã que ele professa: justiça, igualdade, compromisso com os pobres e os discriminados.

Contudo, ninguém suponha que não debatemos bastante. Betto defende teorias científicas nas quais acredita firmemente, baseadas no big bang. Foi das primeiras pessoas que me falou deste fenômeno singular. A mim, que havia cursado o ensino fundamental no Colégio Dolores, em Santiago de Cuba, dirigido por jesuítas bem preparados e exigentes, me haviam ensinado a existência de planetas que giram ao redor do Sol, e a distância de cada um deles em relação à Terra na imensa galáxia na qual estamos inseridos.

Naquela época predominava a economia imperialista emanada do colonialismo. Os mapas da África, de grande parte do Oriente Médio, do Sul e do Sudeste da Ásia, Oceania, Austrália, Canadá e Dinamarca, o Caribe e as Malvinas apareciam com as cores típicas de cada um dos países anglo-saxões europeus e opressores. E também de alguns outros, como França, Itália, Bélgica e Espanha, todos mais ou menos desenvolvidos, há menos de um século, no rumo das sociedades consumistas.

Para Betto, versado também em temas científicos, a evolução da matéria estaria acompanhada de um elevado índice de radiações, algumas visíveis, outras obscuras, cujas consequências, ao longo de bilhões de anos, não se atrevem a prever um número incalculável de cientistas de mais de quinhentos centros de observação espacial.

Ignoro se Frei Betto recorda, hoje, daquela nossa troca de ideias. Guardo na memória as lembranças do encontro no qual me entrevistou, em meu gabinete, ao longo de inúmeras horas. Ali, curiosamente, de vez em quando eu observava uma foto de Ernest Hemingway junto a um gigantesco peixe-agulha – o dobro do tamanho do autor de O velho e o mar – que este me presenteara.

Eu me sentia envergonhado de minha ignorância, pois não estudara o tema profundamente. Perguntou-me por que havia cursado Direito. Suponho que a falta de orientação profissional me induziu a esse erro. O hábito de debater todos os assuntos fez com que muitos insistissem que eu seria advogado. E ao me perguntarem que carreira pensava abraçar, eu respondia mecanicamente: “Advogado.”

Matriculei-me em Direito, porém decidido a estudar uma matéria temida por todos os alunos do primeiro ano – Economia Política. Um exigente professor, que não dava trégua a ninguém, muitas vezes aplicava exame oral nos alunos. Como líder da classe naquele ano e ocupado com outras tarefas, deixei para a segunda etapa do curso a leitura de “Economia Política”, um calhamaço de mil páginas mimeografadas impressas em letras borradas, pois não havia livros-textos. Li várias vezes aquela apostila complexa e compareci ao exame oral. Fiquei muito surpreso quando, depois de demorado exame, o professor me deu nota de “Excelente”.

Era exatamente o que me interessava: a política. Como enfrentar o fenômeno da superprodução; as crises econômicas; o desemprego; a fome; e a injustiça social. Por isso me matriculei em outro curso, o de Ciências Sociais. Fiel a esse projeto, a partir do terceiro ano de faculdade me dediquei a estudar mais de trinta matérias relacionadas a esses temas. Pareceu-me o objetivo a perseguir como ferramenta da política revolucionária, que era, de fato, a ideia que se gestava em minha mente.

Após assumir os compromissos políticos de apoiar Pedro Albizu Campos, líder do partido independentista porto-riquenho, e também o povo da República Dominicana em sua luta contra Leônidas Trujillo – quando adquiri as primeiras experiências em luta armada –, me dediquei aos estudos. Em 1959 visitei Harvard e, ali, comprei O capital, de Karl Marx, em inglês, embora houvesse à venda uma edição em espanhol. Imagine a ideia de estudar Marx em inglês, um autor difícil de compreender mesmo em espanhol!

Era essa a febre política que conservo ainda hoje.

Não posso concluir essas linhas sem reiterar que, em minha opinião, vivemos um momento decisivo para a nossa espécie. É como se nós, seres humanos, fôssemos incapazes de entender que a nossa espécie já atingiu o limite de seus graves erros desde que surgiu, há menos de um milhão de anos, em vários tipos de seres humanos, entre os quais o Homo sapiens, o Neandertal e talvez outros, já capazes de refletir, embora ainda não haja provas definitivas. Por outro lado, as informações sobre as chamadas “civilizações” datam de apenas 4.500 anos, o que descobri ao final do curso universitário ao ler os lendários poemas atribuídos a um poeta grego chamado Homero.

Aliás, o próprio Frei Betto me contou que a cidade de Jericó tem mais de 10 mil anos. Ele conhece bastante o que se pesquisou sobre aquela cidade e descreveu, como se acabasse de visitá-la, até as cores e a arquitetura das casas. Nos últimos cem anos, duas poderosas potências, a URSS7 e a República Popular da China, partiram das ideias marxistas-leninistas na busca de liberdade e justiça social pela única via possível: a revolução social! Ambas adquiriram, com o passar dos anos, poder suficiente para enfrentar o poderoso império baseado na opressão e no saque. Só um espírito realmente aventureiro e irresponsável pode levar os Estados Unidos a uma guerra com qualquer uma delas, independentemente do que ocorreu com o Estado socialista multinacional da URSS na última década do século XX.

Entre Rússia e China, que fraternalmente apoiaram a Revolução Cubana, se desenvolvem excelentes relações. Hoje Betto recebe o Título Especial de doutor honoris causa, em Filosofia, na Aula Magna da Universidade de Havana. Quando Frei Betto retornar a Cuba terá que estar bem preparado para debater com o seu ignorante amigo.

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Frei Betto, Biografia foi escrita pelo historiador Américo Freire e pela jornalista Evanize Sydow. A obra traz desde a sua infância, à descoberta da vocação passando pela militância na educação e na Igreja e o engajamento na luta contra a ditadura no Brasil. O livro conta o episódio da saída de Frei Betto do governo Lula e as críticas que recebeu dos petistas.

A biografia relata o episódio da prisão que inspirou um de seus principais livros, Batismo de Sangue, sobre a participação de frades dominicanos do Convento das Perdizes na Aliança Libertadora Nacional e na captura e morte de seu principal líder, Carlos Marighela.

O livro também aborda sua participação na Teologia da Libertação. Américo Freire á autor de A Política Carioca em Quatro Tempos e Uma Capital Para a República. Evanize Sydow é autora da biografia Dom Paulo Evaristo Arns – Um Homem Amado e Perseguido.

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Frei Betto – Biografia, de Américo Freire e Evanize Sydow (Civilização Brasileira, 472 págs.)
O livro será lançado hoje às 18h na Livraria Cultura do Conjunto Nacional.

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