Contos indecisos

* Por Kiko Sucupira *

Preso na Vida

Quando as portas se abriram súbito, não soube o que poderia me acontecer, não me ocorreu antes pensar sobre isso, sobre o que me reservaria a vida daquele instante em diante. Esbocei a mim mesmo – sem que percebessem, o que fiz em defesa de meu futuro – um breve descaso, uma pequena indiferença coadjuvada a um arrogante ar de sabedoria. Encarei. De supino: o sol resoluto trincava o calçamento no ar, alterava o ritmo dos meus pulmões. Pessoas estruturadas, outras apresadas, a maioria distraída de si própria, pouca importância conferindo a si mesmas. Perplexa, minha cabeça indagava se nunca havia observado, ou, ao menos se não sabia dessa realidade. Não sei. Foi o único pensamento que me ocorreu sem rodeios: Não sei. Essa minha ignorância me colocou de volta à vida que deixara atrás da porta. Trago delineado na memória o desenho e as cores do vitral insculpido na madeira da porta principal, tão solene quanto pesada. Há anos, as portas se abriram para que eu entrasse – igualmente assustado como narrei acima – e, agora se abrem dando-me de volta à vida. Se, assim sucederam os fatos, permitam-me considerar, na ausência, ainda, de melhor argumento, chamar a isso tudo de vida.

Estou a caminho de onde moro, onde acumulo grande volume de objetos e louças e livros e livros e  porcelanas e telas e tapeçarias e gravuras, onde se ouve um díssono constante entoado pela mistura de esperanças e incertezas. Dos objetos afeiçoo-me às cadeiras de mesa, por isso, tenho-as em quantidade desnecessária, desproporcional à minha recatada vaidade. Muitas delas cercam a mesa central de refeição, conferindo um ar senhoril à casa e à sensação dos convidados. Cada cadeira apresenta um estilo, propiciando-me encantamentos quando fico à admirá-las, acomodando-me em uma delas. Sobre elas há um, dois, ou, uns dez livros. Localizo-os num passar de olhos, facilitando à continuidade das leituras, sem interromper o clima inicial, ainda, que retome tal e tal livro, tempos depois. Está tudo lá, em silencio diário, com ares de esquecimento, de imprestabilidade, talvez, motivado pela escassez de donos e de titulares.

Neste verão, os dias serão longos, as noites grudentas, o despertar indolente, causado no acumulo dos dias irrespiráveis, áridos e de paisagens seca. A cidade viverá às penas da erradicação das florestas, dos bosques ceifados, das nascentes soterradas. Tudo agora está, perfeitamente, urbanizado. Assim apregoa a modernidade, oferecendo conforto e vida saudável ao cidadão em busca de status.

Não sei, à mais remota hipótese o que tudo isso poderá representar, ou, possa significar a vida em um mundo de adultos. Onde os adultos são apresados, programados pela mídia para reproduzirem gestos e gestuais sem lógica, sem rumo… consumidores da natureza. Novamente, sem rodeios: Não sei. Voltei, preso na vida.

 Após vinte anos

João Mário, quando resolve vir, surge sempre no despontar das madrugadas frias, quentes, até chuvosas. Chega silencioso, envolto sobre os aparatos de segurança dos motociclistas, o que lhe confere um certo anonimato, discrição e à sensação de estar invisível – talvez para ele mesmo -, transpõe com a moto o limite da rua para entra em meu portão. Mormente está cansado após cumprir o turno daquele dia/noite. Mesmo sabendo dos modos de JM me agrada a sua chegada, quando despe o seu rosto do capacete e da máscara ninja que emoldura seus olhos azuis e serenos. Súbito, encanto-me. JM está ao meu lado, volta-se à minha frente. Espera que lhe abrace.

Dia desses, ele estava entediado e decidido foi logo dizendo: este ano completo vinte anos de serviço, de formatura e de casamento, Laila está com vinte anos de idade, nasceu no ano em que me casei. Estou fazendo quarenta e cinco anos… e riu muito, talvez porque a idade dele está bem aquém dos meus tantos anos já vividos. Veio disposto a falar, contou tantas outras coisas, inclusive, de seu inevitável divórcio. Como sempre, JM é matemático nos seus gestos, é raro de sentimentos. A vida no seu entender é uma tabuada que se decora, ora, se esquece, ora, sabe-se de cor e salteado.

Resignei-me ao silêncio. Tanto que, além do que me dissera no início da conversa o resto não me recordo de mais nada. Fiz, por espírito de sobrevivência, ouvido mocho. Pelos cálculos dele, sempre muito precisos, deduzi que nós nos conhecemos há exatos vinte e dois anos. Bem: o que poderia eu ter acrescentado aos fatos ocorridos na vida de JM?

Acrescentaria, apenas, que não lhe deixei só, nem confuso, nem agravei alguma eventual situação, antes, quando necessário estive presente dando-lhe o que chamo de opinião, ou conselhos – que lhes foram decisivos à execução de seus planos. Tampouco pedi socorro ou sacrifícios. Aliás, tirá-lo de seus interesses e planos era interpretado como um ato de extrema violência e invasão à sua intimidade.

O meu silêncio, pois, foi a melhor reação, afinal, o silencio resolve. Não gostaria de deixá-lo, assim, tão imediatamente, já sabendo que havia me riscado da sua vida e de sua trajetória nos últimos vinte e dois anos em que me visitou. Naquele momento, JM, na minha imaginação se transformara num ser estranho, encapuzado sobre uma motocicleta, rodando, desesperadamente no meu coração – que ardia. Não eram só de dor e de tristezas, mas, de esperadas alegrias. A moto rodava e rodava à procura de uma saída, um caminho, uma possibilidade.

Percebi que não sou afeito à ingratidão, a mascarar sentimentos mais íntimos, que seria incapaz de alvejá-lo em ódio e vinganças. Recordei, então, os anos todos que almejei, à cada visita de JM, ser com ele feliz.

Não queria deixá-lo, ainda mais, sem rumo, apoiaria as mais recentes decisões que havia tomado ou, que tomaria em breve.

A maneira mais humana que encontrei foi oferecer a JM um jantar que lhe serviria naquelas noites em que ele, ainda, viria à minha casa. Seria uma espécie de comemoração, nem tão íntimo assim, para lhe desejar sorte para os próximos vinte anos.

O coração de JM não está mais casado, já se sente e age como um homem livre. A mim não me reconhece como antes. Se hoje JM é outra pessoa, naturalmente (encaro como previsível), observa-me como sendo outra pessoa, alguém diferente de quem conheceu nas altas madrugadas.

Aos quarenta e cinco anos, o coração de JM quer amar, viver tudo novamente, ser expectador da própria vida, reviver o potencial da ilusão. JM, finalmente, está iludido, a vida lhe sorri, ele agarra a juventude que lhe escapa, seus olhos recuperaram o viço de vinte e dois anos passados. Estão vorazes, vitais, gananciosos, por um futuro que o leve às últimas consequências – JM tem um novo amor.

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Kiko Sucupira é advogado ambientalista e escritor, autor do livro Eu me lembro. Faz parte do conselho editorial da São Paulo Review. Os contos acima são inéditos 

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