Dostoiévski: Um escritor do seu tempo, de Joseph Frank, é a edição condensada da biografia definitiva de Fiódor Dostoiévski. É reconhecida como o estudo definitivo sobre a vida e a obra do autor russo. Ao preservar a narrativa e o estilo do trabalho original e combinar gênero biográfico, história intelectual e crítica literária, o livro traz a história cultural da Rússia do século XIX, oferecendo tanto um retrato completo do mundo em que viveu Dostoiévski como uma interpretação de sua vida e obra.

Leia a seguir trecho do capítulo sobre o momento em que o autor escreveu O idiota.

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Em carta para um correspondente, escrita mais de dez anos depois de terminar O idiota, Dostoiévski observa: “Todos aqueles que falaram se tratar de minha melhor obra têm algo especial em sua formação mental que sempre me surpreen- deu e me agradou”. O idiota é o mais pessoal de todos os seus principais romances, o livro que encarna suas convicções mais íntimas, acalentadas e sagradas. Ele deve ter sentido que os leitores que se comoveram com essa obra constituíam um seleto grupo de almas gêmeas com as quais poderia se comunicar de verdade. É somente em O idiota que Dostoiévski inclui um relato de sua provação diante do pelotão de fuzilamento — uma experiência que lhe dera uma nova apreensão da vida, e o príncipe Míchkin se esforça para trazer essa revelação a um mundo ato- lado na indolência material cotidiana. O príncipe Míchkin se aproxima da personificação mais extremada do ideal cristão de amor que a humanidade em sua forma atual pode alcançar, mas ele está dividido pelo conflito entre os imperativos contraditórios de suas aspirações apocalípticas e suas limitações terrenas.

Como sabemos, a primeira parte de O idiota foi escrita sob a inspiração da decisão de Dostoiévski de centrar uma grande obra em torno do caráter de um “homem positivamente belo”, e o singular fascínio espiritual do príncipe Míchkin deriva, em grande parte, da imagem dele projetada nessas páginas iniciais. O halo moral que envolve o príncipe é veiculado já na primeira cena, na qual seu comportamento é marcado por uma total ausência de vaidade ou egoísmo; ele não parece ter o sentimento de amor-próprio que alimenta essas atitudes. Mais do que isso, demonstra uma capacidade ímpar de assumir o ponto de vista de seu interlocutor. Isso explica por que o príncipe não se ofende com sua recepção pelos outros, e sua capacidade de transcender-se dessa forma desarma invariavelmente a primeira resposta de desprezo debochado e presunçoso daqueles que encontra.

Max Scheler, em seu admirável livro Essência e formas da simpatia, distingue o que chama de “simpatia vicária”, que implica experimentar uma compreensão e simpatia pelos sentimentos dos outros sem ser dominado por eles emotivamente, de uma coalescência total que leva à perda da identidade e da personalidade. O movimento subjacente de O idiota pode ser definido provisoriamente como a passagem do príncipe do primeiro para o segundo tipo de simpatia, mas na primeira parte não há indícios dessa perda de identidade. Ao contrário, toda a ênfase recai na capacidade instintiva e indiferenciada do príncipe de sentir uma simpatia vicária completamente lúcida, mesmo sob grande tensão. Como exemplo, podemos tomar a cena em que o príncipe intervém na briga encarniçada entre Gánia Ívolgin e sua irmã e recebe o golpe destinado à moça. Sua reação é cobrir o rosto com as mãos, virar para a parede e dizer a Gánia com voz entrecortada: “Oh, como o senhor vai se envergonhar do seu ato!”.

Esse atributo do caráter do príncipe não tem absolutamente nenhum motivo psicológico, mas, de uma forma sugestivamente simbólica, está ligado a certos leitmotivs. De um lado, o príncipe é obcecado pela perspectiva da morte: nessas páginas iniciais, alude duas vezes a uma execução que testemunhou há pouco e também relata em cores vívidas os sentimentos e pensamentos de um homem condenado à morte por fuzilamento e que, em seguida, recebeu inesperadamente o indulto. Uma terceira descrição salienta o imenso valor que o momento da existência assume à medida que o fim se aproxima. Apesar da presença obsessiva do motivo da morte nessas páginas, o príncipe também admite ter sido “feliz” nos anos que precederam sua chegada a São Petersburgo, e as relações entre esses dois motivos fornecem o substrato mais profundo de seus valores. Ficamos sabendo que a “felicidade” do príncipe começou com sua recuperação de um estado de estupor epiléptico. Um choque repentino da consciência — na forma de algo tão humilde e prosaico quanto um burro — o acorda para a existência do mundo. Está claro que o burro tem óbvias conotações evangélicas, que se misturam com a inocência e a ingenuidade do príncipe, e esse animal paciente e laborioso também enfatiza, de acordo com o cenoticismo cristão, a ausência de hierarquia na apreensão extática pelo príncipe do milagre da vida. O mesmo contraste é introduzido pela observação do príncipe de que, nos estágios iniciais de sua recuperação, fora consumido pelo desassossego e pensara em encontrar “todo o enigma e no mesmo instante veria uma nova vida” em seu desejo transcendente de alcançar “a linha onde o céu e a terra se encontram”; mas depois, acrescenta, “me pareceu que até na prisão pode-se encontrar uma vida imensa”.

Míchkin torna a experimentar em sua imaginação a tragédia universal e inelutável da morte, com toda a gama de sua sensibilidade consciente, mas isso não o impede, ao mesmo tempo, de se maravilhar em êxtase diante da alegria e do milagre da existência. Com efeito, a dialética dessa unidade é o significado da história do homem cuja execução é suspensa — a história que encarna o acontecimento mais decisivo da vida do próprio Dostoiévski. O mais terrível de tudo nesses últimos momentos, diz Míchkin, foi o lamento da pobre vítima por ter desperdiçado sua vida e o desejo frenético de ganhar outra chance. “E se eu não morrer! […] eu transformaria cada minuto em todo um século, nada perderia […]!” Mas ao ser indagado sobre o que aconteceu a esse homem após seu indulto, Míchkin reconhece com tristeza que sua resolução frenética não foi posta em prática:

— Então quer dizer, […] que não se pode viver de verdade “fazendo cálculo” [diz Alieksandra Iepántchina]. Por algum motivo, não se pode mesmo.

— Sim, por algum motivo, não se pode mesmo — repetiu o príncipe —, eu mes- mo achava isso… Ainda assim não acredito muito…

É nesse momento que o amor de Míchkin pela vida se funde com sua imaginação assombrada pela morte para formar a unidade singular de seu caráter, pois ele sente o milagre e o deslumbramento da vida de modo tão forte exatamente porque vive contando cada momento como se fosse o último. Sua descoberta alegre da vida e sua intuição profunda da morte se combinam para fazê-lo sentir que cada momento é de escolha ética e responsabilidade absolutas e imensuráveis. Em outras palavras, o príncipe vive na tensão escatológica que era (e é) a alma da ética cristã primitiva, cuja doutrina do ágape totalmente altruísta foi concebida na mesma perspectiva do fim iminente dos tempos.

Há um constante jogo de alusão em torno do príncipe que o coloca nesse contexto cristão. Rogójin, o filho de comerciante ainda próximo das raízes religiosas da vida russa, rotula-o de iuródivi, um louco sagrado, e embora o príncipe cortês e bem-educado não tenha nenhuma semelhança externa com essas figuras excêntricas, ele possui, de fato, o dom tradicional da profunda percepção espiritual, que atua instintivamente, abaixo de qualquer nível de consciência ou compromisso doutrinário. O tom idílico de Novo Testamento está muito presente na história que o príncipe conta sobre a jovem camponesa suíça Marie, pobre, difamada e tísica, que fora insultada como mulher decaída e cujos últimos dias o príncipe e seu grupo de crianças iluminam com a luz de um amor que a tudo perdoa. Desse modo, a figura do príncipe é cercada por uma penumbra cristã que ilumina continuamente seu caráter e serve para situar a natureza exaltada de suas aspirações morais e espirituais.

A história de Marie também traz para o primeiro plano outro leitmotiv que pode ser chamado de os “dois amores” — um cristão, compassivo, não possessivo e universal, e outro secular, egoísta, possessivo e particular. A sugestão de Alieksandra Iepántchina de que o príncipe deve ter se apaixonado o leva a contar a história de Marie. Mas, enquanto a jovem se referia ao segundo tipo de amor normal, mundano, o “amor” do príncipe, como ele explica, era apenas do primeiro tipo. Até mesmo as crianças aglomeradas em torno dele ficaram confusas com essa diferença e, ao vê-lo beijar Marie, acreditaram que o príncipe estava apaixonado por ela. Mas “[eu] a estava beijando”, explica ele, “não porque estivesse apaixonado por ela, mas porque tinha muita pena dela”. A confusão das crianças (e Míchkin também tem um quê de criança) prenunciará sua própria queda na armadilha dos “dois amores”, cujos sentimentos e obrigações mutuamente incompatíveis resultarão, mais tarde, na desastrosa impossibilidade do príncipe de escolher entre Nastácia e Aglaia.

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Dostoiévski: Um escritor do seu tempo, de Joseph Frank (Companhia das Letras, 1176 páginas)

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