U ma confissão: Só comecei a anotar a história de Vânia quando vi na telona do luxuoso São Luís o filme Blow Up depois daquele beijo, de Antonioni, um enigma incrível, um assassinato verdadeiro, não sei, tinha que ser um assassinato de verdade e aí me convenci a me transformar também numa assassina. Jane Birkin era o máximo. Vânia era o máximo. Alimentei meu ódio para matar Vânia. Para matá-la. A assassina de Vània nunca me fez mal, mas me ofendia com sua beleza. Muitas vezes perdi o sono torturada por esta beleza incômoda.  Talvez tenha guardado no coração a tal mulher feia. Meu sangue precisava deste crime. Me alimentou, me alimentei. Me alimentava do ódio para ser uma assassina de verdade. Com Antonioni e com o meu ódio. Com o amor que tenho pelo meu ódio. Sempre amei meu ódio loucamente.

É claro que tive muitas chances de matá-la, mas evitei. Vânia não podia ser vítima de assassinato qualquer. Merecia um ódio requintado. Je t’aime. Naquela mesma noite em que testemunhei seu sono, podia ter praticado o crime, mas achei que não tinha graça. Um crime sem grandeza é melhor evitar. Ela estava exposta aos meus instintos. Preferi o instinto do amor. Mesmo assim me perguntava todo o tempo: é melhor amar ou matar? Desconfiei, também, que ela fingia dormir. Quando mexia com a mão no seio, no ventre, na coxa, no sexo, estava na verdade me provocando. Atraía-me para a furna escura e conduzia-me à morte. Levava pela mão até chegar na noite escura da alma. Gotejando de sangue. Fera com os dentes afiados no abismo. Rejeitei todas as tentações e esperei o dia clarear.

Se eu disser que Vânia parecia com Jane Birkin, a estrela do filme, estarei mentindo, com certeza. Era muito, muito mais bonita, e erótica, mais erótica, muito mais erótica, sensual, muito mais sensual. Até porque a mulher era maior do que o filme lento e severo de Antonioni. Desprovido do sangue que pulsa no seio da personagem e do seu desejo de morrer estrangulada. Naquela noite em que estivemos juntas no quarto do Colégio quase que a ouvi cantar Je t’aime, com aquela sensualidade na voz que mudou jeito de fazer sexo no mundo. O sangue escorrendo no corpo e se derramando no sexo. Morrer, morrer, gozar é como morrer e, ainda no último instante, alcançar a vida. Um gozo voraz, forte, feito de facadas e de morte. O mundo nunca mais foi o mesmo, todos os amantes passaram a gemer Je t’aime nos ouvidos, estivessem onde estivessem, em casa, no ônibus, no automóvel, no estádio de futebol, no divã e aquele calor humano escorrendo nas veias. Em seguida um grito e o orgasmo. Sozinho ou acompanhado, na solidão do banheiro. Je t’aime, Vânia, Je t’aime.

Mal saí do cinema comprei papel e caneta, reli as anotações, numa loja de discos comprei também o compacto com a música, fiz planos e comecei a escrever esta história, que já reúne cinco blocos. Vou até o fim. Às vezes cantando a nossa música. Ela demorou muito a saber disso, mas já conversamos e ela se sentiu lisonjeada. Até mesmo me explicou como se deu seu ingresso no nosso colégio.

Depois daquele café com champangne , ou melhor, pão com champangne recolheu-se ao quarto, tomou banho, um banho muito demorado de sabonetes, sais, shampoo, a ponto de despertar a preocupação de nossa mãe, minha filha, isso aqui não é hotel, saia logo do chuveiro, vai, esperta. Vânia saiu vestindo apenas uma calcinha amarela, usou óleos, desodorante e perfume. Secou os cabelos louros, cristalinos, sentou-se na cama, perto do espaldar, entre dois travesseiros azuis e foi fazer as unhas dos pés. Criou-se um contraste entre o róseo da colcha da cama, o amarelo da calcinha dela e a morenice da sua pele, alva e levemente escura, lisinha e brilhante, banhada pelos óleos após a água. Contive-me nas minhas tentações porque podia, perfeitamente, aproveitar a manhã doce e tranquila depois daquela agitação da sua chegada e, mais ainda, o café com champanhe. Um luxo para a pobreza de miséria em que vivíamos. As mulheres foram acordando e, de acordo com o humor, cantando. Os ruídos da rua chegavam misturados a buzinas, freadas, cantigas de camelôs, sirenes, assovios.

No meio da manhã ela resolveu sair do quarto descalça, usava um baby-doll creme. Foi à sala e Zenóbia, com todo aquele jeito de serviçal, embora cozinheira, às vezes garçonete, calçou-a com um lindo tamanquinho alto com uma cara de gato. Uma colega veio dizer que aqui isso é humilhação, afinal ela nunca fez isso aqui pra ninguém, e é um privilégio. Pedi apenas que se acalmasse, isso não vai se repetir. Zenóbia não gostou, vai se repetir, sim, sempre que eu quiser vai se repetir, e não tolero reclamações. É assunto meu, só meu. A moça merece o tratamento porque está começando o serviço de puta. Qualquer um sabe o que é serviço de puta. Foder com homem sujo e depois lavar o pau. É ou não é? Modere os seus excessos comigo, moça. Já estou bastante grandinha e sei tomar meus cuidados.

Apesar de agradável foi impossível sustentar a lentidão agoniosa de espera e de expectativa da manhã. Nada. Nada a fazer, nada a resolver, mas havia expectativa. Talvez ver entrar sala adentro um Elvis Presley que mais tarde Vania trocou Elvis por Roberto Carlos qualquer da vida, enquanto as canções da radiola iam cortando o tempo. O sol abundante, quente e áspero do Recife entrava pelas janelas abertas e o vento nos acalentava com o cheiro de maresia. Logo entrou um grupo de comerciários da freguesia da casa, do tempo em que o bispo colocou a talha sob aplausos na porta de entrada: Colégio de Freiras, porque a cidade vivia cheia de normalistas que enchiam ruas e avenidas do Centro. Os homens se apaixonavam por elas, bebendo chopp, sobretudo na Torre de Londres, no Parque Treze de Maio, e cantando música de Nélson Gonçalves vestida e azul e branco, trazendo um sorriso franco, um sorriso encantador, minha linda normalista, facilmente conquista, meu coração sofredor. Era uma moda erótica, embora não houvesse uma relação direta. Em sentido radical, transformaram-se em taras na cabeça dos boêmios e não boêmios. Pareciam, ao mesmo tempo: românticas, sensuais e ardentes. Eram apenas normalistas, mas os homens taravam e inventavam paixões. Muitas foram até assassinadas por namorados inicialmente platônicos. Esquizofrênicos. Estes moços, pobres moços bebiam chopp e enfiavam fichas numa radiola gigante, que berrava, berrava, berrava. Às vezes eram obrigados a baixar o volume. Um deles começou a gritar minha linda normalista, minha linda normalista. Quem é a beldade, quem é? Carne nova no pedaço? Vânia retirou-se calada. Onde está a madre superiora?, perguntou. Quem é a madre superiora? Mamãe. E quem é mamãe? Dona Quermesse. Você é muito abusado, rapaz. De cabeça baixa. Resoluta. Onde ela está? O que é que você quer? Ainda bem que a senhora apareceu logo. Meu filho, tenho muita atenção por você, até porque é um dos fundadores desta casa desde quando era apenas o nosso Convento Drinks criado pelo bispo dom Arnold Children, este benemérito da sociedade brasileira, para atrair com discrição a cliente religiosa dessas redondezas cheias de Templos. Portanto, seminarista, se comporte.

Se aquilo era verdade, logo me lembrei do começo, quando o Colégio de Freiras não passava uma inocente casa de drinks para um happy hour de fim de tarde cujos fregueses seriam as pessoas que terminavam o expediente na repartição e as meninas saíam das escolas. Aproveitavam para um uisquinho amigo antes do jantar. Por isso que o nome Colégio de Freiras foi saudado com tanto entusiasmo. Às vezes apreciam poetas, pintores, jornalistas, estes animais que formam a fauna boêmia da cidade. Dona Quermesse, então, viu que podia ganhar mais dinheiro e decidiu alugar os dois quartos da casa para eventuais encontros de namorados. Ela e o bispo Arnold eram sócios desde muito tempo, nessas artes da boêmia e da putaria.

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O trecho do romance “Colégio de freiras”, de Raimundo Carrero, foi publicado pela editora Iluminuras (2019).

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Foto: cena do filme Blow up, de Michelangelo Antonioni

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