* Por Itamar Vieira Junior *

O noticiário diário do Brasil e do mundo é, há algum tempo, um tsunami de más notícias: a emergência climática ignorada pelos líderes dos EUA e Brasil, a lama que devastou Brumadinho e fez centenas de vítimas, os incêndios e recordes dos índices de desmatamento da Amazônia e o vazamento de petróleo que atingiu uma inacreditável extensão do litoral do Nordeste e dizimou vidas, são as mais recentes. Tragédias que poderiam ter saído de romances distópicos de Cormac McCarthy e Margaret Atwood.

Recentemente estive em São Paulo para o Festival Mário de Andrade. Uma das mesas de que participei foi com o escritor e líder indígena Ailton Krenak, e tinha como tema “O Brasil profundo”. Aproveitei para ler no voo seu último livro – Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2019). Um “livrinho”, como o próprio autor gosta de chamá-lo, mas de uma grandeza que só os verdadeiros mestres conseguem compartilhar. Uma das experiências de leitura mais marcantes que tive nos últimos tempos.

A obra está dividida em três partes, que correspondem às conferências de Krenak em eventos no Brasil e Portugal. Nela, o autor nos apresenta um pouco da cosmologia dos povos indígenas e sua relação com a natureza, bastante diversa da que foi estabelecida por nossa sociedade ocidental. Em suma, os indígenas, respeitando-se a diversidade cultural de cada sociedade, compreendem suas vidas como uma extensão da natureza. Se a sociedade ocidental, alicerçada em bases capitalistas, acredita ser o rio um recurso, para as sociedades indígenas o rio pode ser seu antepassado. Se para você uma pedra é uma pedra, para os povos originários a pedra pode ser um parente com quem conversamos, como na bela passagem em que relata a surpresa de um repórter americano diante da explicação de um intérprete para a demora de uma mulher hopi em lhe conceder uma entrevista. Em sua visão, os males do nosso tempo – a nova era, o Antropoceno, que se consolida de maneira avassaladora – se devem à despersonificação da natureza, que se torna destituída de vida e reduzida a um mero recurso a serviço do homem e do capital.

Esse esvaziamento de sentido e existência encontra paralelo no processo de desumanização tão presente na história humana. Sociedades, povos e agrupamentos diversos, antes da perda da sua governança e autocontrole, até o seu extermínio, passam por um processo equivalente de perda da sua essência – a condição humana – quando as diferenças são exaltadas ao extremo, e se torna quase impossível reconhecer algo que nos una e comunique uma possível semelhança. Krenak, inclusive, critica o conceito de humanidade nascido na Europa e que exclui as diversas cosmovisões do que é ser humano; conceito este que desconsidera os valores originários, intrínsecos a cada agrupamento. Valores de uma sociedade fundada em bases colonizadoras, e que reduziu a visão de mundo do outro.

Essa despersonificação da natureza, onde o rio é apenas valor, nos afastou de tal maneira da Terra, que seguimos, em alta velocidade, para o colapso. O que o autor nos propõe ao compartilhar a cosmovisão de seu povo é que, para adiar o fim iminente, devemos voltar à natureza, restituindo-lhe a vida. Para nós, leitores e escritores, que animamos personagens – o verbo animar na sua origem etimológica, o latim, significa soprar, dar a vida –, não é difícil imaginar como seria devolver a vida ao que transformamos em coisas vazias de sentido.

Alegra-me ver o mar e compreender que não habito uma paisagem, mas a vida de todos os que passaram por ele, incluindo os meus ancestrais. O som do mar para mim não é ruidoso; é antes de mais nada um canto que se repete há milhões de anos. Habito a terra com outros seres sencientes, com quem compartilho o medo, a alegria e a dor. O mesmo vale para a montanha, os insetos ou o vento. A morte da natureza significa a nossa própria morte, e é urgente que compreendamos que não haverá vida apartada do todo. Para adiar o fim do mundo é preciso restituir às formas o fôlego original que lhes foi retirado. Quando os grandes pensadores nos chamaram de “humanidade” e todo o resto de “natureza”, privaram da existência viva tudo o que não era considerado humano. Quem conhece minimamente a cosmologia dos povos originários sabe que essa existência é muito mais equânime, e uma onça, sim, pode ser “humana”. Não há vida humana sem a natureza, assim como não haverá existência se dela nos apartamos. Não conseguiremos resistir se não houver um chão para pisar, sem o ar respirável ou a água potável. Por isso, de nada adianta proteger o homem e explorar todo o resto, porque a vida, nossa e das coisas despersonificadas, terá um fim.

As notícias propagam o medo, nos paralisam e nos impedem de agir para adiar o fim do mundo. Diante dos discursos do Presidente da República agredindo os povos originários, Krenak foi questionado sobre o que faria. Ele respondeu: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como vão fazer para escapar dessa.” Que seu alerta seja um convite para conhecer as ideias dos que resistem há séculos, e permita que consigamos adiar o nosso próprio fim.

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Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia. É autor dos livros de contos Dias (Caramurê, 2012) e A oração do carrasco (Mondrongo, 2017). É o ganhador do Prêmio Leya 2018 com o romance inédito Torto arado

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