Q uando a casa nasceu em nós, já éramos o fim.

A casa principiou sua herança nas profundezas. Veio da vontade abismada dos pais da Avó, a minha, habitante cansada de um livramento abençoado: ou casa e marido, ou a vida vai se desgastar até a ruína do sonho possível para uma mulher como a filha, a mãe, a minha. E os avós da Avó fundaram alicerces profundos e generosos capazes de sustentar o futuro das filhas da mulher. Não havia lugar para a morada, era apenas desejo e caos.

O Avô, o meu, casou-se com a Avó, a minha, e começou a casa pelo teto. Primeiro veio o pavor de o céu desabar e entrar, pela cabeça, no espaço das filhas que viriam a nascer. Ele imaginou primeiro um buraco, depois um ninho, um açude, uma barragem, chuva, muita chuva, e uma vastidão descampada ressecada pela fome quase finda dos bois e suas vacas. Passou-lhe pela cabeça um riacho e o cheiro de peixe catando ar na superfície e encontrando nado de grito de menino escapando de casa. O Avô procurou depois o mar nas terras verdes da lembrança, e os sonhos gritavam-lhe de longe que aquilo era mentira. Imaginou buraco, ninho, açude, barragem, riacho, chuva, mar, mas era casa, um lugar imaginado para se defender do céu. Depois aconteceram as paredes, ripas, taipas magrelas, areia a espumar água e barro, e um pouco de cimento emprestado.

Ele não sabia quantos filhos nasceriam do corpo amuado da esposa. Não era mãe ainda, ela. Carregava raiz das vontades das mães antes de si, os ecos dos pedidos das mulheres arranhando as unhas nas paredes escuras de suas profundezas de anseios, prestes a ser habitada por sabia-se lá quantas moradoras. Então ele aumentou a largura e o comprimento das paredes, abriu mais cômodos no espaço, no corpo da esposa. O primeiro quarto da primeira filha também receberia a segunda e a terceira. Mais trabalho para o Avô, o meu, aquele marido, esticar os corredores, costurar recintos estreitos de quarto, sala, cozinha e quintal, tudo único, o espaço final que abraçaria a única rua da cidade.

As portas sem chave, pernas abertas da esposa declarando o tamanho de todos os cômodos. Depois o Avô, quando o gemido e o grito e o esperneio faminto das filhas arrebentou o silêncio dos espaços, resolveu pelo chão da casa. A terra fervida de todos os dias teve a bocarra calada com camadas de barro molhado e pisado. Era só respingar qualquer gota, e a terra suspirava aliviada, assim como os pés das filhas, os joelhos imundos da filha mais velha arrastando-se pelo chão moído da casa. Quando os pés das filhas do pai, o Avô, o meu, enraizaram na terra quase impenetrável do pisar da casa, já existia teto na cabeça dos seus sonhos. Até ali era sol catando cada tracinho da penumbra solta da pele das filhas, e chuva difícil que caía breve e esquecida, lavando o corpo castanho das meninas, impregnadas de cascas de barro, prestes a darem broto na umidade das entranhas, cicatrizes no corpo da mãe, abertas anteriores ao lugar inventado que o homem cuidava de erguer.

E assim o teto pôs-se a proteger as mulheres da casa da valentia do céu. O Avô, em seu primeiro ato de descanso, lavou a casa toda com um choro alagado, secou a dureza da casa que mal havia começado abrigo e nunca pareceu estiagem. A terra fechada sob nossos pés sugou o choro do homem, o Avô. Naquele último dia, a Avó, a esposa, a sua, pariu um menino, o único homem, irmão da Mãe e Tias, as minhas. Doze horas e três mulheres depois de nascido, o filho morreu, o Tio, o único homem. Foi ali que a primeira falta ocupou a fundação do lar, a fratura inicial, o vazamento discreto ininterrupto que amoleceu até certo tempo o piso, as paredes, o teto.

Os tijolos queimados marcavam a defesa da casa, os gritos das filhas dobravam os corredores em labirintos, e o cimento quebrava depois de seco; o choro da mãe, a Avó, vazando pelas brechas da fundação, e as telhas faltantes permitiam que o sol importunasse a crueldade da tristeza, os pratos limpos de tempo avesso, nem tão vazios, e chovia, e os raios armados em sorrisos macabros faziam tremer a sua tristeza latejada, que se arrastava pela terra pisada e mordia a tranquilidade apavorada da casa com seu pesar, e enchia as brechas da morada com a falta do filho, o morto, o único; e as filhas, as suas, Mãe e Tias trancadas no quarto sem chaves, escondidas na escuridão alucinada dos buracos da mãe.

As paredes abriam-se em pele, cobrindo as dores cortadas nos crescimentos dos ossos. Os estalos assobiados confundidos com alegrias e gritos abraçados ao passado, vozes afiadas e ecos feridos de todas as mães antes das nossas. O piso de terra batida, rachando tristeza a cada passo apressado e infeliz; o ir e vir do tempo rastejando na sola grossa e encardida dos pés. As unhas engolindo o pó da terra que nos enche, os dedos robustos presos a tantas dores repetidas que chegam cansadas à porta, sem fechaduras; não há chave, qualquer pessoa e tempo invadem o lar e cantam partida antes de dizer que é preciso amar e comer.

E o teto abraçava-se ao nosso medo e pedia perdão ao céu que anunciava queda e catástrofe, denso e vibrante, aqui e acolá, mas muito longe nos dias corridos do ano, tudo fosse deus, estrela, nervura do universo todo, caía, como grito da chuva, escorrido, e lavava as feridas do teto, paredes e chão, onde nascia o fundo do rio do menino que era filho e neto, a sobrevivência e o sacrifício, o corpo cavado das faltas de todas as mães nascidas nas entranhas da casa, alagado num tempo e deserto no outro. Foi onde o menino aprendeu a afundar e crescer.

Se você deixar eu meter em você, te dou um beijo de língua funda. E beijou com boca oca, imensa, engolindo a vastidão das minhas confusões. As mãos dele dotadas de trinta anos, todos os meus segredos acumulados estancados envelhecendo, cansados, guardados no esconderijo dos meus onze anos. A noite chiava brisa e latido de cachorro. No quintal da casa dos Avós, os meus, tudo quieto.

Ao entrar, o menino mais velho resolveu arrombar a porta, jogando a chave fora, e expôs o escuro dos cômodos bagunçados, tudo fora de ordem. Ele não pediu licença para entrar. Ficou lá, dentro, remexendo tudo, gemidos agonizados de um bicho que quer escapar e tem alguma fome, que quer ser livre e tem medo, que quer morrer e só sabe matar. O medo nascido nele apropriava-se da escuridão dos meus cômodos destruídos. E se eu quiser morar aqui? foi o que ele disse com os dedos rijos fustigando as minhas fechaduras. E se ele não quiser mais ir embora?

Ele morando e pronto para escapar, inteiro dentro. As mãos dele eram as minhas; eu enxergava pelos seus olhos. Duas camadas de pele grossa, suadas pelo calor abafado da noite. O menino mais velho que não conheço muito bem veio morar aqui dentro, bravo e cheio de si. Lambia os móveis capengas que inventei, cuspia no assoalho das dores. Talvez ele tivesse acabado de chegar, há duas horas, mas doía tanto um ano. Quanto tempo tem uma vida que termina? Meu corpo marcava onze anos e um menino mais velho de trinta anos tinha resolvido morar dentro de mim. E outro menino mais velho de vinte anos. E um menino mais velho de dezesseis. Tantos anos mais velhos que minha infância ensinou meu corpo a amadurecer a dor e gritar sem dizer chega para não quero.

Eles tinham nojo quando se encostavam às paredes da minha fundação. É apertadinho, eles gemiam. E riam. E enfiavam a mão na minha boca, e o pé na porta, e a entrada da minha consciência escancarada para quem quisesse ver. Ninguém via.

Não chorei. Fiquei quieto em mim, encontrei um cantinho sacrificado, pó e infância, outra infância, uma mais limpa, onde as lembranças da Mãe mantinham-se cuidadas, onde os Avós eram café e passeio em horas largas sem fim. Ali, no canto, restou um pedaço de mim que jamais seria ocupado. Se os meninos mais velhos resolvessem morar dentro de mim, eu seria outro homem?

Eles avançavam sobre o que eu guardava, comida, bondade, certeza e confiança, arrastando os pés pesados, ciscando a sujeira acumulada nas beiradas do meu corpo.

Ao terminar a visita, eles cuspiram e jogaram minha carcaça esvaziada no chão, limparam os pés no pano de chão imundo, corpo e esperança, e saíram. Antes de seguir, sem olhar para trás, um deles atirou algumas palavras afiadas na escuridão que começava a impregnar os vazios abertos da casa de paredes fendidas, portas abertas, teto capenga: Se você contar pra alguém, já sabe o que acontece, bicha. É assim que se ama: sangue, cuspe, uma casa vazia, aberta em vazamentos?

Demorei a erguer as magrezas do cansaço. O corpo, um saco de lixo, um espaço que não era mais casa, e se fosse, absurda e devastada, esperava a noite sussurrar algum conselho. Um cheiro doce de caju e o zunido de uma abelha noturna alcançaram as palavras choradas. Enchi a boca de terra, engoli a seco, acho que chorei. Eu estava me transformando numa voz cheia de chão e sangue, escancarada, vazamento.

A porta da cozinha que alcançava o quintal estava entreaberta. Tropecei na sombra abraçando a luz da única vela acesa no oratório da Avó. Luz lambendo as panelas florindo o forno de barro. Eu deixava um rastro de amargura, uma pista secreta do que havia me tornado. Parava quando as mãos da dor sufocavam o que restou do corpo. Eu já cresci, virei homem, isso aqui é o avesso de quê?

A cozinha calma, o cuidado avoengo para que o lugar da comida pudesse ser abrigo para toda a cidade. Demorou até que eu chegasse ao banheiro. Eu sabia que a noite ainda era alta, pelo frio e pelos olhos das sombras acusando minha lentidão.

Antes de chegar ao banheiro, fui interceptado pela voz noturna da Mãe. O que é isso, menino? Ela viu os frangalhos do corpo que minha sombra arrastava, a boca sem palavra, cheia de terra, a bermuda rasgada em gritos de tecido esgotado, a porta daqueles frangalhos escancarada e fluindo o que eu não conseguiria resolver. Se eu disser que um homem resolveu morar em mim, mas resolveu ir embora, e voltará sem pedir licença, porque deixou a porta aberta e jogou minha alma fora, a senhora, Mãe, vai fazer alguma coisa? Eu não disse.

Os seus olhos estatelados sobre mim, o jeito de olhar, um acidente. Vai tomar banho, ela sussurrou saturada. Nítida e lúgubre em sua dispersão de mãe de vigas carcomidas e teto vindo abaixo aos trancos e barrancos.

Eu ouvia a Mãe chorar no quarto, soluçando. Ela sabia acordar o dia, e o sol despontou lambendo as cascas que cobriam o que restou de mim. O banheiro ficava no jardim da Avó, a minha, perto do quarto e da sala de estar.

Acho que dormi ali mesmo, com o chuveiro ligado, escorrendo, vazando até que o fim inundasse aquela casa desmoronada.

Não chorei. Tive medo apenas. A Mãe só sabia afundar.

 

Vocês querem brincar hoje?

Não, os meninos mais velhos diziam, os resmungos empurravam meu corpo para longe. A gente nem te conhece, mulherzinha. Diziam isso muitas vezes. Golpeavam-me com gargalhadas, nas paredes da garganta o suor dos homens da casa, que partirão para assumir distância, dinheiro e vazio na vida dos filhos que irão deixar para trás. Os meninos mais velhos só me conheciam, à noite, no quintal da casa do Avô, o meu, quando assumiam uma intimidade magoada, disposição faminta, corpo cravado no corpo, suor engolido pelos meus olhos ardidos de sombras. Eu não via nada, nossas noites não se faziam trégua. Os meninos mais velhos diziam meu nome com lambidas afiadas, gemidos e palavras retorcidas e duras, cortantes, impronunciáveis nos nossos termos aprendidos na infância. Babando agonias, tremendo os dentes de fome que não morre apenas com pedaço de carne marcando os dentes podres, mergulhados em mim, os fôlegos todos aos pedaços, voltando à superfície para cuspir e ver o céu seco, que não perdoa ninguém e despenca.

Eles deixavam esquecidos no meu corpo lápis e borracha, cadernos velhos, palavras que nunca escreveram, bitucas de cigarro e um tipo lustroso de raiva mofada e obediente a pai e mãe, ódio estúpido riscado de sete e meio na escola, do tipo que diz Bom dia para a mulher mais velha da cidade e Vai se foder, sua bicha maldita para a criança mais nova mastigada por eles, quase todas as noites.

Eu guardava o que eles esqueciam no buraco que comecei a cavar, naquele quintal; o buraco que chegava ao nascimento da casa e não a destruía. Guardava tudo o que os meninos mais velhos esqueciam, noite dentro de noite.

Nos dias que seguiam aos mergulhos, mordidas, cuspe, tapas famintos, empurrões apedrejados, riso cortado de raiva bem educada por mãe, eles voltavam a não saber quem eu era. Sai daqui, a gente nem te conhece. bicha. bicha. Pedra. Ponta pé, faca riscada de fome no chão; chute, empurrão. bicha. Unha imunda varando a terra tenra que nascia na pele, pedaço de carne tremida. Bicha, abre as pernas. Cuspe. Dedo valente procurando meu nome. Cala a boca. Se tu contar pra alguém, a gente acaba contigo. bicha. E chute, mordida, cuspe. Pedra arremessada.

Tudo o que eles precisavam esquecer permanecia escondido, fincado. Eu afundava um buraco no quintal da casa para esconder o que carregava.

Eu não sabia se os meninos mais velhos esqueceriam algo nos dias seguintes, dentro, fundo.

O nascimento da casa foi esconderijo.

*

Nasci sem um caminho de volta, de Raimundo Neto (editora Moinhos, 208 págs.)

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