N ão havia nada a fazer em casa.

Em frente ao espelho do pequeno banheiro no corredor deixei a minha boina preta. Já do lado de fora da casa, parei durante alguns instantes e olhei para baixo. Bastava correr os olhos para ver o vilarejo inteiro e todo mundo que morava nele. Não havia muito onde se esconder. Quando fui até a estrada, que na parte mais alta era de cascalho, e na mais baixa de asfalto, eu me senti transparente.

Um grupo de garotos por volta dos quinze anos estava reunido em frente à lanchonete. A conversa foi interrompida assim que cheguei. Passei sem olhar para eles, subi a escada que levava à plataforma que fazia as vezes de terraço e me aproximei do guichê, que reluzia com um intenso brilho amarelo na claridade noturna do fim de verão. A janela estava quase grudada de tanta gordura. Um garoto na mesma faixa etária dos outros apareceu e abriu o guichê. Dois ou três fios pretos cresciam no queixo dele. Os olhos eram castanhos, os cabelos eram pretos.

— Um hambúrguer com fritas e uma Coca-Cola — pedi. Ouvi com atenção para ver se os cochichos mais atrás diziam respeito a mim. Mas não. Acendi um cigarro e andei de um lado para o outro na plataforma enquanto esperava. O garoto baixou o instrumento em formato de rede cheio de palitos de batata para dentro do óleo fervente. Largou um hambúrguer na chapa. A não ser pelos sussurros das vozes cheias de entusiasmo às minhas costas, tudo estava em silêncio. As luzes estavam acesas nas casas da ilha para além do fiorde. As nuvens estavam baixas acima da ilha, porém mais altas acima do mar, fechadas e meio cinzentas, mas não chegavam a ser nuvens escuras.

O silêncio não era opressor, era aberto.

Mas não aberto para nós, pensei por um motivo qualquer. O silêncio sempre tinha sido daquela forma naquele lugar, muito antes de existirem as pessoas, e continuaria a ser o mesmo depois que todos houvessem desaparecido. Um silêncio que repousa naquele berço de montanhas em frente ao mar.

Onde será que acabava? Nos Estados Unidos? É, devia ser. Em Newfoundland.

— Aqui está — disse o garoto enquanto colocava uma bandeja de isopor com um hambúrguer, algumas tiras de alface, um quarto de tomate e um montinho de batatas fritas na prateleira do lado de fora do guichê. Paguei, peguei a bandeja e me virei para ir embora.

— É você o novo professor? — perguntou um dos garotos, debruçado por cima do guidom da bicicleta.

— Sou — respondi.

— Nós vamos ser seus alunos — ele disse, e então cuspiu e afastou o boné dos olhos.

— Estamos no nono ano. E ele está no oitavo.

— É mesmo? — eu disse.

— É — ele respondeu. — Você é do sul?

— Sou — eu disse. — De Sørlandet.

— Muito bem — ele disse, acenando a cabeça como se eu estivesse numa entrevista e aquele fosse o sinal de que eu estava dispensado.

— Como vocês se chamam? — perguntei.

— Logo você vai saber — ele respondeu.

Todos riram. Sorri como se aquilo não fosse nada, porém me senti estúpido quando os deixei para trás. Aquele garoto tinha me vencido.

— Como você se chama? — ele gritou às minhas costas. Eu virei o rosto sem interromper minha caminhada.

— Mickey — eu disse. — Mickey Mouse.

— Vejam só, o novo professor também é comediante! — ele gritou.

 

Depois de comer o hambúrguer, tirei a roupa e me deitei. Não eram mais do que nove horas, o quarto brilhava como no meio de um dia encoberto e o silêncio que pairava sobre tudo amplificava os ruídos de cada movimento, então mesmo que eu estivesse cansado levei horas para adormecer.

Despertei no meio da noite com ruídos de passos e de uma porta. Pouco depois os passos foram para o andar de cima. Ainda meio dormindo, tive a impressão de estar deitado no escritório do meu pai, na casa em Tybakken, e de que era ele quem caminhava no andar de cima. Como eu tinha acabado naquela situação?, pensei antes que meus pensamentos desaparecessem mais uma vez em meio ao escuro. Quando acordei outra vez eu estava em pânico.

Que lugar era aquele?

A casa em Tybakken? A casa em Tveit? O estúdio de Yngve? O albergue da juventude em Tromsø?

Me sentei na cama.

Corri o olhar pelo quarto sem me ater a nada, porque nada do que eu via fazia sentido. Era como se todo o meu ser tivesse escorregado por uma parede lisa.

De repente me ocorreu. Håfjord, eu estava em Håfjord.

Na minha própria casa em Håfjord.

Me deitei mais uma vez e refiz a viagem nos meus pensamentos. Então imaginei o vilarejo que se estendia do outro lado da janela, todas as pessoas em todas as casas que eu não conhecia e que não me conheciam. Um sentimento que podia ser expectativa, mas também medo ou insegurança, surgiu dentro de mim. Me levantei e fui até o minúsculo banheiro, tomei uma chuveirada e vesti minha camisa verde que parecia de seda, as calças de algodão largas e pretas, me postei em frente à janela e passei um tempo olhando para a loja, onde eu ainda tinha que comprar comida para o café da manhã, mas não naquele exato momento.

Umas quantas vagas do estacionamento estavam ocupadas. Havia um pequeno grupo de pessoas reunidas entre os carros. De vez em quando alguém saía com sacolas de compras nas mãos.

Talvez não fosse má ideia aproveitar o momento.

Fui até o corredor e vesti o sobretudo, coloquei a boina e calcei os tênis de basquete, me olhei depressa no espelho, ajeitei a boina, acendi um cigarro e saí.

O céu estava suave e cinzento como no dia anterior. Do outro lado a encosta das montanhas despencava rumo ao fiorde. Havia um elemento brutal naquele cenário, percebi com um simples relance de olhos, as montanhas não tinham a menor consideração, qualquer coisa podia estar ao redor delas e mesmo assim não significaria nada, era como se elas estivessem em outro lugar ao mesmo tempo que estavam lá.

Cinco pessoas estavam no estacionamento. Duas eram mais velhas, tinham pelo menos cinquenta anos, e as outras três pareciam ser um pouco mais velhas do que eu.

Com certeza me viram de longe, eu tinha certeza, não havia como evitar, afinal não devia ser comum que uma figura estranha de sobretudo preto aparecesse descendo a encosta.

Levei o cigarro à boca e dei uma tragada funda a ponto de aquecer o filtro.

Havia duas bandeiras de plástico branco com o logotipo do Verdens Gang nas laterais da porta. A vitrine estava cheia de placas de papelão verde e laranja com diversas ofertas escritas à mão.

Eu estava a quinze metros daquelas pessoas.

Será que eu devia cumprimentá-las? Dar um “Olá” decente e bem-educado?

Será que eu devia parar e puxar assunto?

Dizer que eu era o novo professor, fazer um pouco de graça? Um dos vultos olhou para mim. Fiz um discreto aceno de cabeça. O vulto não respondeu.

Será que não tinha percebido? Será que o meu aceno tinha sido tão discreto a ponto de parecer um simples ajuste de posição da cabeça, ou um pequeno espasmo?

A presença daquelas pessoas era para mim como uma série de punhaladas. A um metro da porta eu joguei meu cigarro no chão, parei e o amassei com o pé.

Será que eu podia deixá-lo ali mesmo? Será que pegaria mal? Ou será que eu devia juntá-lo?

Não, assim eu daria uma impressão meio pedante, não?

Puta que pariu, no fim eu simplesmente deixei o cigarro no chão, aquele era um vilarejo de pescadores que com certeza jogavam a merda do cigarro no chão quando terminavam de fumar!

Coloquei a mão na porta e a empurrei, peguei uma das cestinhas vermelhas e comecei a caminhar pelo corredor em meio aos diferentes produtos. Uma mulher rechonchuda de uns trinta e cinco anos com um pacote de salsichas na mão disse qualquer coisa a uma menina que provavelmente era filha dela. Magra e longilínea, a menina tinha uma expressão contrariada e azeda no rosto. Do outro lado da mulher estava um menino de talvez dez anos que remexia os itens em cima do balcão. Coloquei na minha cesta um pão integral, um pacote de café Ali e uma caixa de chá Earl Grey. A mulher me encarou, pôs o pacote de salsichas na cesta e depois caminhou até a outra ponta do corredor com a menina e o menino atrás. Levei um bom tempo andando de um lado para o outro e examinando as coisas vendidas naquele lugar, peguei da prateleira refrigerada um pacote de queijo marrom, uma lata de patê de fígado e uma bisnaga de maionese.

*

Uma temporada no escuro, de Karl Ove Knausgård (Companhia das Letras, 496 págs.). O autor participa de mesa na Flip este começo de noite

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