* Por Antonio Carlos Secchin *

Em junho de 1942, quando foi lançada a primeira reunião de sua obra, singelamente intitulada Poesias, Carlos Drummond de Andrade agregou uma coletânea inédita e pouco extensa, José, de apenas doze poemas, aos livros anteriormente publicados. Esse pequeno conjunto tornou-se, portanto, o sucessor de Sentimento do mundo (1940) e o predecessor de A rosa do povo, vinda a lume em dezembro de 1945.

Situado entre duas publicações com títulos de nítida ressonância coletiva, José enfatiza o indivíduo, ainda que representante de numerosos e solitários josés. Também de solidão falam os dois primeiros poemas da obra: “A bruxa” e “O boi”. O balanço das perdas e danos familiares, que, em menor ou maior intensidade, vinca toda a produção de Drummond, faz-se presente em “Os rostos imóveis” e “Viagem na família”. A indagação metalinguística comparece em “O lutador”. A prática explícita ou tangencial das formas fixas, por meio de versos regulares ou polimétricos, constitui-se em outra característica de José.

Penetremos agora, nem tão surdamente assim, no reino d’A rosa.

Várias das grandes linhas de força da poesia drummondiana aí encontram abrigo. O componente público que sobressai no título não ostenta foros de exclusividade. Convém não acreditar depressa demais na convocação cívica do poeta, sob pena de pressupor o traço monolítico num espaço em que irão prosperar diferenças e sinuosidades.

Os embates já acontecem nos textos iniciais do volume, “Consideração do poema” e “Procura da poesia”, que exibem aparente conflito, pelo fato de o primeiro promover o endosso de um “canto geral”, de uma poesia pública fronteiriça à dissolução da instância autoral (“Furto a Vinicius / sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo. / […] / Estes poemas são meus”); já no segundo, a prática do poema demanda o afastamento do espaço coletivo e o mergulho na introspecção (“Penetra surdamente no reino das palavras. // Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário / Convive com teus poemas, antes de escrevê-los”).

Criação compartilhada (“Ser explosivo, sem fronteiras”) versus criação urdida (“O canto não é a natureza / nem os homens em sociedade”). Como conciliar o poeta “do finito e da matéria”, para quem, tal “uma lâmina”, deve o povo atravessar o poema, com o outro, cultor das secretas rosas do texto, e para quem caberia ao criador abster-se dos “acontecimentos”, “do corpo”, “da cidade”?

A rigor, o que os primeiros textos estampam não implica contradição, e sim um tenso regime de contradicções, em que duas vozes poéticas se alternam, prefigurando desdobramentos de complexa interseção. O jogo entre o apelo ao convívio e o apego à retração pauta, de certo modo, a obra inteira – aliás, a mais alentada de todas até então publicadas por Drummond, qualquer que seja o critério aferidor: a quantidade de poemas (55), o tamanho dos textos, a extensão dos versos. Esse dizer copioso (se cotejado, por exemplo, à fatura mais contida de Alguma poesia) será aqui e ali contrabalançado por dúzia de textos curtos.

Correlatos e simétricos aos tópicos da comunhão e da reclusão, vigoram os conceitos de poesia evocada como verdade ou como enigma. Quando a voz lírica dirige-se ao povo, atribui-se um poder de verdade, respaldado pelo desejo de promover o bem e a justiça; quando, sozinha, opta por cultivar a rosa sem necessariamente remetê-la ao povo, mergulha em universo avesso a formulações categóricas.

Daí a dificuldade em vincular pacificamente os dois substantivos que nomeiam o livro: a rosa, o povo.

Numa ambígua configuração, ora a rosa expõe-se como símbolo de conexão com os outros, ora é resguardada como emblema daquilo que de mais recôndito o poeta preservasse. Nesse segundo sentido, o poema seria pura dádiva, sinalização gratuita e a esmo, indiferente ao fato de angariar ou não receptores. Gesto autossuficiente de beleza, que, em “Áporo”, a partir do subsolo escuro de um minério, pode fazer eclodir uma orquídea.

Percebe-se que não é fácil expor, sem riscos, uma rosa ao povo quando, já no terceiro poema do livro, “A flor e a náusea”, ela irrompe num contexto em que o ser humano exerce o papel de hostil contraponto: “Sua cor não se percebe. / Suas pétalas não se abrem. / Seu nome não está nos livros. // É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.

Observe-se que tal flor inclassificável, portanto na esfera do enigma, surge contra o espaço urbano. A agregadora rosa do povo cede passo à frágil flor indefinida, em descompasso defensivo frente ao fluxo da população: “Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego”.

A flor imprevista e inominada, que o poeta vinculará ao campo da criação, reaparece em “Carrego comigo”, quarto poema da coletânea: “Carrego comigo / há dezenas de anos / há centenas de anos / o pequeno embrulho. / Serão duas cartas? / será uma flor? // Sou um homem livre / mas levo uma coisa. / Não sei o que seja. / […] / Não estou vazio, / não estou sozinho, / pois anda comigo / algo indescritível”.

Em “A flor e a náusea”, homens “menos livres” levavam jornais (informação pública e cotidiana); agora, “livre”, o poeta se faz portador e porta-voz daquilo que ignora, de um signo (uma “coisa”) que resiste à unívoca decodificação.

Podemos, desse modo, n’A rosa do povo, demarcar dois territórios (com eventuais imbricações), regidos ora pela noção de poesia como mistério, tal qual ocorre em “Carrego comigo”, ora pela afirmação da poesia como verdade.

À segunda vertente se filiam, em especial, os poemas diretamente vinculados à posição política do autor, infenso aos valores capitalistas (cf. “Nosso tempo”) e entusiasta dos feitos soviéticos durante a Segunda Guerra. Nesse conjunto, o poeta não se inibe em assumir a condição de profeta: “território de homens livres / que será nosso país / e será pátria de todos. / Irmãos, cantai esse mundo / que não verei, mas virá / um dia, dentro em mil anos” (“Cidade prevista”); “Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres, / a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem” (“Carta a Stalingrado”); “sentir o negro, dormir a teu lado, / irmão chinês, mexicano ou báltico. // […] mas a um grito no escuro, respondia / outro grito, outro homem, outra certeza. // E ganhará enfim todos os portos, / avião sem bombas entre Natal e China” (“Mas viveremos”); “Meus olhos são pequenos para ver / as mãos que se hão de erguer, // ó povo!” (“Visão 1944”); “Olha a esperança à frente dos exércitos, olha a certeza / […] / Uma cidade atroz, ventre metálico // trabalhadores do mundo, reuni-vos / para esmagá-la” (“Com o russo em Berlim”).

O discurso da certeza vaza-se no modo imperativo, categórico. Dissolve a noção de indivíduo em prol do bem-estar coletivo, e veicula a crença numa fraternidade ecumênica em que se minimizam ou se elidem as marcas particulares da Geografia e da História, esmaecidas pela utopia do mundo que virá. Mais do que promessa, o futuro constitui-se numa imposição, corolário das bem-intencionadas convicções da voz zelosa em prescrever a compulsória “cidade prevista”.

Na contracorrente de valores tão absolutos, captam-se em “América” as modulações do discurso da incerteza: “Sou apenas um homem. / Um homem pequenino à beira de um rio. / Vejo as águas que passam e não as compreendo. / Sei apenas que é noite porque me chamam de casa”.

A vivência dilemática da decadência e o defrontamento da morte são marcas de uma vertente que passa ao largo da assertividade dos poemas engajados. Nestes, um tempo homogêneo e apaziguador das diferenças. Agora, o império das fraturas: “No quarto de hotel / a mala se abre: o tempo / dá-se em fragmentos. // Aqui habitei / mas traças conspiram”. É relevante, pela quantidade e pela qualidade, o contingente de textos que operam a contrapelo do triunfalismo profético.

No que tange ao encadeamento das peças, o livro comporta pares (ou trios, quartetos) de poemas que se vão entrelaçando, a partir de traços comuns ou aproximados.

Assim, “Anoitecer” encerra-se com o verso “desta hora, sim, tenho medo”; em diálogo, o poema seguinte intitula-se “O medo”.

Um fio temporal costura outra sequência: “Passagem da noite” sucede “Passagem do tempo”, sendo sucedido por “Uma hora e mais outra”, a que se segue “Nos áureos tempos”.

“Rola mundo” contém os versos “E vi minha vida toda / contrair-se num inseto”; logo depois, “Áporo” inicia-se por “Um inseto cava / cava sem alarme / perfurando a terra / sem achar escape”.

De “Uma hora e mais outra” a “Assalto”, montante de 14 poemas, o traço unificador é de natureza formal: a quase totalidade das peças de A rosa do povo vazadas em metro curto (até o hexassílabo) concentra-se nesse bloco.

A impregnação dos vestígios, explorada em numerosas direções no poema “Resíduo” (“De tudo ficou um pouco”), reaparece, condensada numa só peça de vestuário, em “Caso do vestido”, texto seguinte. O caráter narrativo aí presente também será a tônica dos dois próximos poemas: “O elefante” e “Morte do leiteiro”.

Após o intermezzo dramático de “Noite da repartição”, outra história de finitude: “Morte no avião”. À morte “concreta” detalhada em desastre aéreo sucede a simulada, em “Desfile”: “Vinte anos ou pouco mais / tudo estará terminado. / O tempo fluiu sem dor. / O rosto no travesseiro, / fecho os olhos, para ensaio”.

Segue-se um bloco de poemas que retrata a passagem do tempo sob a égide das memórias ancestrais, desde “Retrato de família” (“O jardim tornou-se fantástico. / As flores são placas cinzentas. / E a areia, sob pés extintos, / é um oceano de névoa”) até “No país dos Andrades”. Nesse conjunto, sobreleva a figura paterna, que, anos mais tarde, seria celebrada em “A mesa”, de Claro enigma (1951). Mas, já aqui, pulsa a demanda (frustrada) de interlocução com o pai extinto: “Guardavas talvez o amor / em tripla cerca de espinhos. // Já não precisas guardá-lo. / No escuro em que fazes anos, / no escuro/ é permitido sorrir” (“Como um presente”); “A chuva pingando / desenterrou meu pai. // desejar amá-lo / sem qualquer disfarce” (“Rua da madrugada”).

Encadeiam-se, então, os oito poemas de temática social explícita, todos, à exceção de “América”, no âmbito do discurso da certeza.

Após três textos, os primeiros, “Indicações” e “Onde há pouco falávamos”, dolorosamente retrospectivos, e o outro, “Os últimos dias”, desencantadamente prospectivo (“Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas, / meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro, // adeus, / vida aos outros legada”), fecham o volume dois extensos poemas-homenagem: “Mário de Andrade desce aos infernos” e “Canto ao homem do povo Charles Chaplin”.

A expressão “rosa do povo” por duas vezes aflora em “Mário de Andrade desce aos infernos”, penúltimo poema da coletânea. Nele, “uma rosa se abre, um segredo comunica-se” – e fecha-se, talvez, um ciclo, de crença no poder aglutinador da arte, que Mário, tão prodigamente, professava: “vai colhendo amigos de Minas e Rio Grande do Sul, / gente de Pernambuco e Pará, todos os apertos de mão / todas as confidências a casa recolhe”. Em Mário, a flor é divisível, ou melhor, multiplicável – rosa aberta aos seres e às regiões de todo o país.

No derradeiro, “Canto ao homem do povo Charles Chaplin”, Drummond descrê da redenção da humanidade, que em outros poemas celebrara. Se Chaplin é “homem do povo”, não o é de todo o povo: alinha-se entre os transgressores e os excluídos, no dissídio a regras e protocolos.

O poeta identifica no personagem chapliniano os “vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem / nos filmes, nas ruas tortas” (tortas como o anjo do “Poema de sete faces”). Distante da utopia do mundo perfeito e algo asséptico dos poemas engajados, neste transparece a sedução do desafio e do desvio: “e vamos contigo arrebentar vidraças. / […] e vamos jogar o guarda no chão”.

À maneira inesperada do poeta, que consegue fecundar de aurora um encontro de leite e sangue (em “Morte do leiteiro”), Carlito concilia “chocolate e nuvens” nas dobras do casaco. Drummond ressalta a semelhança entre as ações do personagem e a criação artística. Sob o signo da fragmentação, revela-se inviável a rosa intacta, restando, tanto ao vate quanto ao vagabundo, o defrontamento com a precária flor urbana, reduzida a resto de paisagem: “falam as flores que tanto amas quando pisadas”. Refugos de flor e refugos humanos convergem no poema: nele habitam “os párias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os recalcados […] os loucos e os patéticos”.

Em amoroso gesto, Drummond coleta e recompõe os cacos do personagem, destruído pelas lâminas do trabalho alienado: “Colo teus pedaços. Unidade / estranha é a tua, em mundo assim pulverizado”.

Arma-se, assim, um claro jogo de correspondências. O poeta irmana-se a Carlito, na atitude comum de solapar a lógica do mundo, na invenção de “produtos de ar e lágrima, indumentos / que nos dão asa ou pétala, e trens / e navios sem aço”. Ambos vibram em sintonia, no ofício de ressignificar o verbo envilecido: “Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo / […] / árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores”.

Numa ampliação do raio de abrangência, Drummond passa da primeira pessoa do singular à primeira do plural (“ó Carlito, meu e nosso amigo”), para, logo após, dirigir-se diretamente ao personagem, através da segunda pessoa (“teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança”).

Carlito encarna a dupla voz da criação e da pólis (“há uma cidade em ti, que não sabemos”), o ansiado encontro da flor e dos homens, ambos ao desabrigo da lei e da ordem. A rosa, o povo – rara e instável confluência, pois tecida de matérias tão voláteis como o pó, a esperança, o sonho e a poesia.

Vista em conjunto, A rosa do povo representa a consolidação, em alto nível, do discurso pós-modernista de Carlos Drummond de Andrade. Se no livro são escassos ou ausentes o poema-minuto, o poema-piada, a paródia e outros recursos preconizados pelo arsenal vanguardista de 1922, deparamos, por outro lado, com uma personalíssima e complexa orquestração poética, vazada em formas e ritmos eventualmente contrapostos no interior de um mesmo texto. Verifica-se, a exemplo do que ocorre em “Caso do vestido”, a utilização de um léxico desierarquizado, poroso ao popular e ao erudito, desvinculando a fala cotidiana do espartilho folclórico a que a submeteram alguns vates de 22. Alarga-se o espectro temático, com a presença das miúdas tragédias do cotidiano, como na “Morte do leiteiro”. Pratica-se um fino e oblíquo veio metalinguístico, perceptível tanto em “O elefante”, com o bicho-poema, sem serventia, incansavelmente reconstruído pelo amor do poeta, quanto na “Nova canção do exílio”, em que o discurso romântico é retraduzido verso a verso, palavra a palavra, por uma sensibilidade lacônica e elipticamente moderna.

Drummond aprofunda também os impasses do indivíduo no Pós-guerra, prenunciando o vazio de valores que se seguiria à extirpação do horror nazifascista. N’A rosa do povo, a História da guerra pública irá conviver com a história das batalhas íntimas; estas, menos ruidosas, nem por isso provocam menor dano à consciência cindida entre a imantação do futuro e o peso atávico da herança mineira: “Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra”, dirá o poeta, em “América”.

O desejo centrífugo não apaga o ponto e o peso da origem. Se, às vezes, o cidadão do mundo soa excessivamente retórico, o “menino antigo” itabirano efetua o contradiscurso daquela voz universal e onipotente. O poeta exibe não os alicerces da “construção da nacionalidade”, conforme alguns pretenderam em 1922, tampouco as bases da “ordem universal” do Pós-guerra, mas o desmoronamento do sujeito, perplexo entre os escombros de sua própria e incompreensível história.

Essa vivência dolorosa e arraigadamente subjetiva do fluxo cronológico ganha densidade e tradução física nos versos lapidares de “Cemitério de bolso” (em Fazendeiro do ar, 1954): “Do lado esquerdo carrego meus mortos. / Por isso caminho um pouco de banda”.

Diversamente de seu amigo Carlito, Drummond caminha por uma estrada onde há muito pó, e quase nenhuma esperança.

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Texto publicado no recém-lançado Papéis de poesia – Drummond e mais, de Antonio Carlos Secchin (editora Martelo, 159 págs.)

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Antonio Carlos Secchin é escritor, membro da Academia Brasileria de Letras

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