medo

 

que tenhamos medo

é o que querem !

o medo-soco,

levemente granulado,

o medo que paralisa em pleno almoço dominical.

o insidioso angioma adentrando as coxas,

a mancha escura do medo

que se faz náusea.

que tenhamos medo

é o que querem !

que tudo esqueçamos

quando, sem fôlego, engasgarmos

quando, sufocados, respirarmos

o medo, simplesmente.

eu tenho medo do escuro

os mendigos do meu bairro têm medo da fome

minha mãe tem medo de perder seus filhos.

minha mãe cujas mãos já não tranquilizam o medo

inscrito sob os pelos do seu cão.

o cachorro de minha mãe tem medo de outros cachorros

ele tem medo de fogos de artíficio

dos barulho dos carros à noite.

os sacos de lixo que se espalham pelas calçadas

o amedrontam desde o seu abandono

num saco de lixo.

eu tenho medo do ódio

do gesto em riste de ódio

do gesto gratuito

que, dia após dia,

arbitrário,

num ângulo de noventa graus

me afronta

me confronta ao ódio

em minha fronte.

temo o ódio-palavra

que me reduz

condena

classifica

ao medo.

tenho medo do gesto-ódio

que recorta o mundo

em categorias  que me desapropriam

do que sou

para me impor

o que não quero ser.

somos legião a ter medo

escritores vagabundos

negros sujos

mulheres vadias

bichas doentes

tementes de um deus eclipsado.

tememos o ódio esfregado

na cara de chico mendes.

que tenhamos medo

é o que querem !

o medo que assassinou marielle

que torturou herzog

o medo que enforcou frei tito

que apagou o livre traço

de wollinski

na bala

no pau-de-arara

na cadeira do dragão

no balé de pedregulho

na caldeira da verdade

que nenhuma verdade

há de calar.

mas se pelo medo podem matar uma,

duas,

três rosas,

jamais hão de deter a chegada da  primavera,

de sua verdade de primavera

que já não tememos.

 

porque eras tu

risco um corpo.

 

risco teu corpo na espessura das mãos

que minhas retinas arranham.

 

teus pés risco,

devoro-os no traçado do voo.

 

risco tuas coxas.

por entre elas arrisco meus dedos

na desrota de meus lábios.

nos descaminhos de teus pelos

aro todas as manhãs

as entranhas de teu corpo,

quando erro o meu.

 

se pelo menos meus dedos sufocassem o risco

que repito sob os poros de tua pele !

 

ainda me lembro bem do ruído,

do ruído do teu corpo

do teu corpo nu.

me lembro bem do ruído

quando juntos sucumbimos

ao devorá-lo,

o vento.

 

não fui responsável pelas ondas

ao recolher o sal de tuas coxas.

penteava a chuva de cílios

ao me render às dobras de tua íris

e dela renascer,

pedra alada.

 

foi tudo o que do sonho restou.

 

porque era eu,

porque eras tu.

*

Leonardo Tonus é professor Livre Docente em literatura brasileira na Sorbonne Université (França). Em 2014 foi condecorado pelo Ministério de Educação francês Chevalier das Palmas Acadêmicas e, em 2015, Chevalier das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura francês. Curador do Salon du Livre de Paris de 2015 e da exposição « Oswald de Andrade: passeur anthropophage » no Centre Georges Pompidou (França, 2016) » é o idealizador e organizador do festival  Printemps Littéraire Brésilien. Publicou diversos artigos acadêmicos sobre autores brasileiros contemporâneos e coordenou (e co-ordenou), entre outros, a publicação, entre outros, de Samuel Rawet: ensaios reunidos (José Olimpio, 2008) e das antologias La littérature brésilienne contemporaine — spécial Salon du Livre de Paris 2015 (Revista Pessoa, 2015), Olhar Paris (Editora Nós, 2016), Escrever Berlim (Editora Nós, 2017) e Min al mahjar ila al watan – Da Terra de Migração Para a Terra Natal (Revista Pessoa/ Abu Dhabi Departement of Culture and Tourism/Kalima, 2019). Vários de seus poemas foram publicados em antologias e revistas nacionais e internacionais. É autor de duas coletâneas de poesia :  Agora Vai Ser Assim (Editora Nós, 2018) e Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019). Os poemas acima são desta obra. 

*

Foto: André Argolo

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