* Por Alexandre Staut *

Me estupraram quando eu tinha 6 anos. Me internaram num hospital psiquiátrico. Já fui viciado em drogas e alcoólatra. Tentei me suicidar cinco vezes. Perdi a custódia de meu filho. Mas eu não vou falar disso. Vou falar de música. Porque Bach salvou a minha vida. E eu amo a vida.”

“Fui estuprado quando era criança. Ao longo de cinco anos, tive sexo com um homem três vezes maior do que eu e trinta ou quarenta anos mais velho, contra a minha vontade, de maneira dolorosa, secreta, perversa, dezenas e dezenas de vezes […] Mas o fato incontestável é que a música salvou literalmente a minha vida e, acredito, a vida de muitas outras pessoas. Ela provê companhia quando não se tem ninguém, compreensão quando se está confuso, consolo onde há aflição e uma energia pura e não contaminada onde há um vazio de devastação e fadiga.”

As frases acima são do pianista e escritor James Rhodes, londrino de 42 anos, que desde cedo demonstrou talento para o piano. Na sua autobiografia (ou autoficção) Instrumental, memórias de música, medicação e loucura – lançada no Brasil pela editora Rádio Londres -, ele conta sem qualquer puder sua vida desde as primeiras memórias escolares, em que descreve de forma minuciosa os estupros que sofreu desde que tinha seis anos de idade pelo seu professor de boxe, fato que moldou toda a sua vida, fazendo inclusive com que, na adolescência, muitos anos depois dos abusos, ele se viciasse em ser sodomizado por velhos e bêbados. O fato, claro, causaria diversos problemas emocionais e psicológicos, que acabaram sendo superados (em parte) por meio da música clássica.

Parece roteiro de autoajuda, mas o livro é muito mais do que isso. Rhodes é trágico, como a sua primeira infância, mas é também engraçado e culto. Tem senso de si e sinceridade de sobra, chega a ser ingênuo nas suas conclusões, é desbocado, ri de si quando percebe que está descambando para o autocomplacência. Exemplo: a sucessão de noites com homens mais velhos fez com que passasse a adolescência em um continuo piriri. Rhodes descia correndo do metrô e se refugiava em banheiros de mármore de hotéis de luxo da capital londrina (ele diz que um dia ainda vai fazer um guia dos melhores banheiros da cidade para se fazer cocô).

Foi assombrado com a sinceridade do autor que percorri as páginas de Instrumental. Mesmo quando a vida se mostra mais leve, os assombros dos seus primeiros anos de idade estão presentes. Ele caiu nas drogas e no álcool. Aos 18, o personagem recebeu uma bolsa para estudar na Guildhall School of Music and Drama, escolhendo cursar a Universidade de Edimburgo. Em seguida, parou de tocar piano e saiu da universidade. Passou doze meses trabalhando em um Burger King, em Paris, e voltou à Inglaterra, começando a frequentar uma faculdade de psicologia. Tudo isso poderia ser explicado pela doença da adicção, da qual se viu vítima um dia.

Mais tarde, trabalhou por cinco anos na City, centro financeiro londrino. Uma crise pessoal fez com que voltasse a tocar piano. Hoje, é um aclamado concertista e apresentador de TV. Schubert, Rachmaninoff e os Adagios de Bach, descobertos na adolescência e quando estava internado num hospital psiquiátrico, foram auxílio fundamental na luta contra suas obsessões e compulsões (entre as quais, acredita ter 13 personalidades diferentes que formam o Rhodes de hoje). Ao começo de cada capítulo, que o autor nomeia de “faixas”, vem um fato, quase sempre trágico, da vida de compositores de que gosta. Ler seu livro ao som de faixas citadas na trama, a exemplo de Schubert (veja abaixo), é uma experiência enriquecedora.

Trecho do livro:

FAIXA TRÊS

Schubert, Trio para Piano No 2 em Mi Bemol Maior, Segundo Movimento

Trio Ashkenazy, Zukerman, Harrell

Poucos meses antes de sua morte, em 1828, aos trinta e um anos, Schubert concluiu um trio para piano, violino e violoncelo com cinquenta minutos de duração. Havia levado uma vida curta, infeliz, sofrida, na qual a música oferecia o único contraponto à sua infelicidade. Schubert vivia em constante penúria financeira, dependendo de amigos para comida, moradia e dinheiro. Foi invariavelmente infeliz no amor, com os obstáculos adicionais de ser baixinho, feio e muito sensível a afrontas, tanto reais quanto imaginárias. E, mesmo assim, apesar de ser uma espécie de desastre ambulante e falante, era extremamente prolífico — escreveu mais de vinte mil compassos de música apenas no seu décimo oitavo ano de vida, compôs nove sinfonias (Beethoven só tinha uma aos trinta e um anos), mais de seiscentas canções, vinte e uma sonatas para piano e muita música de câmara.

A maior parte de sua produção só foi executada após sua morte, o que não ocorreu com este trio. A música de câmara era mais fácil de ser apresentada em residências particulares do que a música de orquestra, e algumas casas em Viena abrigavam regularmente as Schubertíades — noitadas informais com sua música, e também leituras de poesia e dança. Em 1828, o trio teve sua primeira audição em uma dessas noitadas (para celebrar o noivado de um amigo). O movimento lento capta perfeitamente o sentimento de uma vida de duração muito curta — funéreo e sombrio, com toques de esperança e um vislumbre do infinito potencial de um gênio.

Escrito por um dos únicos compositores, desde Mozart, capazes de conceber e compor uma obra inteira na cabeça antes de anotá-la no papel, constitui a trilha de um homem deprimido que começou seus dias de estudante com a ideia de se tornar advogado.

Esse é um lembrete devastador de quanto perdemos com sua morte prematura, aos trinta e um anos.

Culpa da estúpida sífilis.

O que é mais interessante (para mim) do que expor como foi que aprendi a engolir e a tomar no cu é o impacto que o estupro tem em uma pessoa. É como uma mancha sempre presente. Há milhares de lembretes disso todo dia. Toda vez que eu cago. Assisto tevê. Vejo uma criança. Choro. Dou uma olhada num jornal. Ouço notícias. Assisto a um filme. Alguém toca em mim. Faço sexo. Bato uma punheta. Bebo algo inesperadamente quente ou tomo um gole grande demais. Tusso ou engasgo.

A hipervigilância é um dos sintomas mais estranhos do distúrbio de estresse pós-traumático. Toda vez que ouço um barulho alto, espirro, pancada, rangido, grito, buzina de carro, ou qualquer gesto repentino, como alguém batendo de leve no meu ombro ou uma notificação do meu celular, dou um pulo. É involuntário, incontrolável, não intencional, engraçado e demente ao mesmo tempo. E é especialmente ruim com música clássica, pois o tempo todo há variações repentinas de dinâmica (se você vir um cara meio desalinhado no metrô com fone de ouvido, pulando do assento a toda hora, chegue mais e dê um alô).

Há também os tiques. As pequenas e não tão pequenas contrações que me têm acompanhado desde que o abuso começou. Os olhos piscam, as cordas vocais têm espasmos, e grunhidos e guinchos aparecem sem ser convidados e têm de ser repetidos até passarem por completo. E, continuando pelo espectro do TOC/síndrome de Tourette, há coisas que precisam ser tocadas de determinada maneira, ritmos batucados impecavelmente em mesas ou paredes ou nas pernas, interruptores de luz apertados o número correto de vezes, e assim por diante.

Quando toco piano num palco é que fica perigoso; se uma parte da minha mão esquerda resvala nas teclas do piano de um jeito, preciso replicar exatamente o mesmo toque com a mão direita. Eu preciso. E tem que ser logo, também. E não é uma coisa que eu queira ficar lembrando e tentando organizar quando estou empenhado em lembrar as trinta mil notas de uma sonata de Beethoven. Também vou precisar cheirar uma das minhas mãos certos momentos durante a execução (um grande desafio). E tentar (e não conseguir) fazer com que tudo isso passe como algo “artístico”, para que as pessoas não notem. E esperar até que esteja tocando um trecho de volume bem alto, porque, então, vou poder guinchar sem que a plateia perceba. No meio da execução vou precisar mudar o dedilhado, que eu passei centenas de horas memorizando, para poder virar minha mão para dentro e raspar a beirada das teclas e, assim, satisfazer esse tique bizarro. E Deus queira que eu não veja nenhum fio de cabelo em cima das teclas. Caso contrário, vou ter que encontrar um tempinho para tirá-lo de lá, no meio da performance, para deixar tudo limpo. É muita coisa pra pensar, parece totalmente fora do controle, e não há uma explicação satisfatória para dar aos críticos quando isso interfere na minha execução ao piano.

Os tiques mentais são muito mais insidiosos. Os pensamentos não podem literalmente ser detidos; caso contrário, vão acontecer coisas verdadeiramente pavorosas. Portanto, quando estou em determinado estado, pensando em algo ruim, como, por exemplo, na minha namorada jogando charme para algum outro cara, ou então como seria se eu me machucasse (o que é uma variação do mesmo tema), isso deve ser levado adiante até eu ficar satisfeito. Por isso, quando uma psiquiatra bem-intencionada me diz para desviar a atenção e interromper o pensamento, eu simplesmente acho graça e penso: “Isso não vai acontecer e, na realidade, você deveria me agradecer, porque, se eu seguisse seu conselho, você acabaria pagando o preço e tendo um acidente terrível, iria perder sua carreira e seu marido, acabar na miséria, incapacitada e precisando de um psiquiatra, que você não teria condições de pagar. Então, acabaria morrendo sozinha e na obscuridade, infeliz e com medo. Não há de quê”.

E aí vêm as coisas realmente vergonhosas. Como ter uma ereção sempre que eu choro. De algum modo, o corpo lembra de tudo e associa as lágrimas à excitação sexual. Eu chorava enquanto ele me chupava. Mas fisiologia é fisiologia, e meu pau fazia o trabalho dele e ficava duro. Portanto, agora, quando eu choro, meu pau pensa: “Ah, lembro disso! Então, vamos levantar”.

O sexo também é um tópico excelente. A vergonha monumental do orgasmo é de fazer você perder o chão. As imagens que passam quando você está de olho fechado trepando, que forçam você a sacudir a cabeça pra tentar fazê-las desaparecer. As constantes lembranças de ter sido tocado ali, ali e ali, e o que isso significava na época e o que deve significar agora. O incessante horror de acreditar no nível mais profundo que sua namorada, mulher ou noiva está de algum modo manchada, estragada, que é repulsiva e má porque fez sexo quando adolescente. Apesar de saber quanto isso soa ridículo, estúpido e ilógico. Eu fiz sexo quando era jovem. Eu era mau. Sou mau. Você fez sexo quando jovem, portanto é má. E, portanto, não podemos ficar juntos, pois não consigo respeitá-la. Você é totalmente repulsiva. Case comigo. Eu te amo. Sua puta vagabunda. Tem uma loja de cartões Hallmark perto daqui.

Havia fantasias sexuais infantis de ser o único sobrevivente de um holocausto nuclear e vagar pelas ruas arrancando mulheres de dentro dos carros e fazendo coisas inenarráveis com elas, sentir tesão ao imaginar ser detido e ter que implorar pela própria vida, e uma série de outras perversões bizarras e maravilhosas envolvendo tortura, controle, dor e sabe Deus mais o quê. Tudo isso antes de completar nove anos.

E aqueles surtos de raiva. Uma raiva corrosiva, devastadora, de tudo o que existe no mundo inteiro. Raiva de famílias felizes, de famílias desfeitas, de famílias, de sexo, de sucesso, fracasso, doença, crianças, mulheres grávidas, polícia, médicos, advogados, professores, escolas, hospitais, psiquiatras, fechaduras de portas, colchonetes de educação física, autoridade, drogas, abstinência, amigos, inimigos, de fumar, de não fumar, de tudo e de todos, sempre.

Acima de tudo, raiva porque, na verdade, eu sei bem que nunca vou conseguir fazer desaparecer completamente o que aconteceu. É uma daquelas horrendas manchas de sangue no rosto que assustam as crianças e fazem os adultos desviarem o olhar. Simplesmente fica lá o tempo todo, e nada do que eu faça pode ou poderá algum dia apagar. E eu posso tentar quanto quiser fazer disso a “minha coisa”, a razão de eu ser especial, uma permissão para ter deslizes e me comportar do que jeito que quiser e me sentir a pessoa que eu quiser ser, um Holden Caulfield espasmódico, apesar dos meus trinta e oito anos, mas eu sei o tempo todo, todos os dias, que não há nenhum lugar onde eu possa colocar isso, nenhum jeito de enquadrar ou reenquadrar isso, nada que eu possa fazer que o torne suportável ou aceitável.

Há um mecanismo embutido em nossa psique que ajuda, que é a dissociação. É o mais grave e o mais persistente dos sintomas de abuso. É algo realmente brilhante. Começou no ginásio de esportes naqueles anos.

Está dentro de mim e dói. É um imenso choque em todos os níveis. E eu sei que não está certo. Não pode estar. Por isso saio do corpo, flutuo para fora dele e subo até o teto, onde me observo até isso se tornar insuportável, mesmo assistindo lá de cima, e então voo para fora do quarto, atravesso portas fechadas e caio fora para um local seguro. Era uma sensação inexplicavelmente magnífica. Qual é o menino que não quer ser capaz de voar? E a sensação é muito real. Eu estava, para todos os efeitos, literalmente voando. Sem peso, solto, livre. Isso acontecia a toda hora, e eu sequer questionava mais. Apenas me sentia grato pelo alívio, pela experiência, pela “viagem” gratuita.

E sempre, desde então, como um cãozinho pavloviano, na hora em que um sentimento ou uma situação se tornar insuportável, eu não estou mais lá. Existo fisicamente e funciono no piloto automático (suponho), mas não há ninguém conscientemente dentro da minha mente. “As luzes estão acesas, mas não tem ninguém em casa”, essa é a descrição perfeita. Quando criança, isso não era bom, porque eu não tinha o menor controle, acontecia o tempo todo e fazia com que eu fosse rotulado de avoado, difícil, idiota, acusado de nunca estar totalmente presente. Ficava vagando por sombras cinzentas e saía do ar um tempão. Às vezes minha mãe me mandava comprar alguma coisa, e eu só voltava depois de horas. E então ficava assustado com o pânico e a preocupação que havia gerado — o tempo simplesmente parecia desaparecer, e eu ficava zanzando com um estranho qualquer ou ia a um lugar totalmente diferente daquele que pretendia.

Ou, hoje em dia, eu posso ficar conversando com meu melhor amigo, discutindo planos detalhados para o Natal, e cinco minutos depois viro pra ele e pergunto: “E aí, quais são seus planos pro Natal?”. Não que bater papo com um amigo sobre bobagens cotidianas seja algo ameaçador em qualquer sentido real da palavra, mas é que isso ficou tão incorporado, faz tanto parte de mim, que com frequência vou embora, sem perceber, diante do mínimo indício de ameaça. Como me comprometer a ver alguém no Natal quando ainda estamos em novembro, sendo que até lá posso ter morrido, ou estar de férias, ou ocupado, ou querendo ficar sozinho e em paz.

Há momentos-chave da minha vida que se perderam por causa disso. Olho meu passaporte e sei que estive em certos lugares. Encontro pessoas que dizem que me conhecem, às vezes até que me conhecem bem. Vou a restaurantes e me surpreendo quando o dono diz “que bom que você voltou”, conto histórias às pessoas, e elas, educadamente, me lembram que já contei a mesma história antes ou que elas estavam comigo quando aconteceu, e nada… Não tenho a menor lembrança de nada disso.

Do ponto de vista positivo, significa que eu posso assistir ao mesmo filme ou programa de tevê várias vezes sem me dar conta de que já assisti; pelo lado negativo, dou a impressão de ser mal-educado, indelicado, um pouco estúpido. E é uma merda, é muito ruim não ser capaz de lembrar de quase nada, a ponto de ter que ficar vários minutos para lembrar o que eu comi no café da manhã, por que foi que saí de casa ou em que dia, mês e ano estamos.

É mais estranho ainda porque consigo lembrar de mais de cem mil notas num recital de piano. Mais espantoso ainda porque uma das poucas situações em que me sinto de fato com os pés no chão é quando estou sentado na frente de um piano.

Tenho sido assim desde que me conheço por gente. Na infância, a dissociação era a única maneira pela qual conseguia lidar um pouco com o mundo. Se você não lembra, não pode ser aterrorizado pelo passado. Nossas psiques são fodas — projetadas para lidar com qualquer tipo de situação, pelo menos até que fiquem sobrecarregadas e se partam em dois pedaços. Porém, mesmo nessas horas, muitas vezes há um jeito de voltar para algo parecido com uma condição de quase normalidade.

E meus amigos mais próximos sabem disso e não se sentem incomodados quando faço a mesma pergunta no intervalo de quarenta e cinco segundos ou não lembro de umas férias que passamos juntos há alguns anos ou meses. E é exatamente por isso que são meus amigos mais próximos e que posso contá-los nos dedos de uma mão. (tradução de Luis Reyes Gil)

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Instrumental, memórias de música, medicação e loucura, de James Rhodes (editora Rádio Londres, 266 págs.)

Avaliação: _avaliação_pena_avaliação_pena (muito bom)

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Alexandre Staut é escritor e editor da São Paulo Review. É autor de Paris-Brest, entre outros livros

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