Ler para crianças

Por Ana Lima Cecilio *

Eu leio para o meu filho desde antes dele nascer. Grávida, lia em voz alta porque alguém me disse que era bom ele ouvir minha voz. Lia Machado, com quem eu trabalha na época, e lia Bandeira, porque é musical. Mas li a crueldade do Raduan – chorei lendo “Ventre seco” – e ensinei a ironia do Nelson Rodrigues. Li Anna Kariênina quando o livro era mais pesado que ele. E li, amamentando, Barthes, Turguêniev, Carlos Emilio Gada, Cyro dos Anjos (ele correu o risco de chamar Cyro. Ou Belmiro), Joyce. Lembro de um sentimentozinho de inadequação, mas tava esperando um filho e eram essas coisas que eu tinha vontade de ler pra ele.

ler em voz alta

Quando ele deixou de ser bebê, tinha que ler os livros feitos para ele, claro. Mostrava os livros de figura, criava as narrativas, perguntava os nomes das coisas. Lembro um dia que apontei um desenho de uma ursa gorda, vestida com roupa de lã e ele disse “ma-mã”. Tinha a ver com calor, quero crer. Depois, vieram os livros com histórias – os maravilhosos da Brinque Book, a coleção toda da Ruth Rocha, os do Marcelo Cipis – são livros lógicos, uma maravilha –, Onde nascem os monstros, o Chapeuzinho amarelo, Jumanji, Ziraldo (que tem um texto incrível!) com Flicts e Menino maluquinho (lagriminha toda vez que ele cresce).

Agora, há um ano (ele tem seis, e está loucamente se alfabetizando), começaram os livros gordos. Começamos com Reinações de Narizinho, claro, porque é do que mais me lembro da minha mãe lendo. Lobato é um monstro, um gênio, uma força da natureza. Meu filho não é da geração do Sítio do Picapau Amarelo, na TV, então é uma cabecinha em branco, que tem lá o Visconde dele, a Emília dele, e achou muito ridículo quando mostrei um vídeo no youtube em que os dois tinham o tamanho de gente. Os doze trabalhos de Hércules, em casa, foi um acontecimento: aprendi mais sobre mitologia grega do que em cinco anos da Faculdade de Filosofia da USP. Um dia, acordando, eu falei “Bom dia, Chico!”, e ele respondeu “Eu não sou o Chico, eu sou o oráculo de Delfos e estou vendo que hoje ninguém vai trabalhar!”. Depois veio a Alice, espetacular, que ensinou pra ele que “menina também pode ser super herói”, e agora estamos nas últimas dez páginas de Peter Pan (essa edição LINDA da Zahar, sem nenhuminha ilustraçãozinha – que não têm feito falta nenhuma). Pela frente, Caçadas de Pedrinho e TODOS do Lobato, As vinte mil léguas submarinas, que eu não li ainda, o indefectível Pequeno Príncipe. Vou aproveitar nossos anos antes dele engrenar nos tais YA, que ele vai ter que ler sozinho… Bom de gostar de ler é que não acaba nunca.

dona benta

Terminar um livro gordo não é nada banal. A gente tem um ritual. Se durante o livro a gente lê no ônibus, enquanto ele come ou sentado no quintal, ainda sujo da escola, esperando a fome chegar, pra terminar um livro gordo a gente toma banho, senta na cama, e depois que acaba ninguém pode falar mais nada, pras palavras “ficarem direito na cabeça” – e nunca vou conseguir falar do evento que foi a última página de Os doze trabalhos de Hércules, quando a turma se despede do herói. Pra piorar o enfarto afetivo, minha mãe estava em casa, ali do lado, e eu só lembrava de quando ela lia pra mim. Tem hora que essa coisa de literatura é bonito demais.

Sempre li pra ele, porque minha mãe sempre leu pra mim. A voz dela no escuro construindo aqueles mundos tem muito a ver com uma imagem abstrata e linda, acolhedora, religiosa, que a literatura tem. É aquele mundo – nem sempre lindo, mas aventuresco, cruel, nervoso, humano – que ela ia criando pra mim e meu irmão, toda noite, que eu reconheço na minha paixão pelo Huxley, pela Elena Ferrante, pelo Machado, mas, de modo geral, na leitura de texto bom, qualquer texto bom, como quando a gente lê a Nina Horta, Freud, Paulo Mendes Campos, Montaigne, Voltaire.

A literatura humaniza, e vejo meu filho, um moleque tão tímido, meio emburrado, dividindo o mundo com esses personagens heroicos, meninos que caçam onças, que voam, que exploram o fundo do mar. Ele tá virando um menino concentrado, curioso, que gosta de histórias. As histórias que a gente lê permeiam nossas conversas, nossas caminhadas, nossas negociações. E sem babaquice, sem Discovery Kids, sem chatura, sem bom mocismo. Gosto quando os personagens morrem. É a vida. Gosto quando os livros dão tristeza. Gostamos das boas ideias e gostamos sobretudo quando uma coisa lida muda o jeito da gente ver o dia. E, sobretudo, é um prazer compartilhado, cúmplice, dividido. Livro ensina, livro acalma, livro amplia, livro educa, livro explica. A ele e a mim. Mas não é só isso. Dia desses perguntei pra ele: “o que você mais gosta nos livros, Chico?”. E ele: “Das pessoas que tem neles, ué”. Missão cumprida.

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Ana Lima Cecilio é editora do selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, para o qual editou Balzac, Proust, Beckett, Adolfo Bioy Casares, Hilda Hilst, Monteiro Lobato, entre outros.  É parte do conselho editorial da São Paulo Review

* Na foto principal, a escritora Ruth Rocha, sua filha Mariana, e primas. Arquivo pessoal da autora

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