Por Susana Fuentes *

O meu gato. Foi por seu olhar que aprendi a fotografar. A câmera Minolta foi nossa aliada.

Ele me olhava e… clique! Eu disparava. As pupilas dilatadas do gato fixavam-se na lente. E o obturador abria-se à passagem da luz. Eu aguardava para um único disparo, esperando o momento certo. A cada nova intenção de seu olhar, que variava em espírito e intensidade.

Que fotos impressas irão percorrer as mãos, e quantas vidas ainda falarão das nossas? Nos negativos continua gravada a sua luz.

Numa conversa, contei sobre como comecei a fotografar o gato Charcot.

Você vê o que está em você. Talvez, respondi. Mas foi ele quem olhou primeiro.

Posso vê-lo na sua caminhada. Transfere o peso das patas, rebolando o quadril como onça ou tigre. Abaixa a cabeça, mas o olhar, ele mantém no alto. Vira o pescoço para observar a novidade, coloca-se na direção da coisa olhada e pergunta-se, indignado, o que é este sapato no meio do caminho.

Há um ano ele se foi. Segue em outro tempo. Sem um ruído. E nesta manhã, a orquídea amanheceu aberta.

Pensávamos em plantar uma orquídea na árvore onde prestamos nossas últimas homenagens, no alto de uma colina. Mas um fato inusitado trouxe, antes disso, a montanha até nós.

A delicada planta estava sobre o armário de madeira, na sala. E eis que no início de agosto vi os botões aparecerem. Alcancei o vaso e o transportei até a janela sobre a banheira antiga, na prateleira onde havia maior luminosidade. Fiz uma aposta íntima. Tive a certeza de que o primeiro botão iria abrir no exato dia cinco. Completado um ano da partida de nossa pequena estrela. E foi o que aconteceu.

Os amigos, sabendo da boa nova, trouxeram novas orquídeas. Mais uma e outra a lhe fazer companhia.

“A essa altura já é um jardim.”

Como se o próprio Borges aparecesse a me indicar um poema, abri o livro. O gato… Sem um ruído. Dono de um espaço fechado como um sonho. E virei a página. Nenhum ruído da folha. Aqui as águas se bifurcam e o vapor se dissipa, e meu pensamento volta à montanha onde agora descansa o meu pequeno astro.

Atravessando o jardim com Borges, num outro tempo encontro a árvore de meu gato, ali onde ele está e onde eu queria plantar a flor. No dia derradeiro de sua despedida, antes de deixarmos a árvore (e uma borboleta amarela) um galho prendeu-se em meu vestido. Deixe que eu tiro!, e o rapaz que nos ajudava na colina o fez com êxito, sem puxar, apenas um leve balanço. No entanto, em seguida, outro graveto impediu-me de seguir em frente. Dessa vez, o moço foi certeiro: esta planta é… arranha-gato. E proferiu, com ânimo súbito: ah, ele não quer que você vá embora. Só aí me lembrei das fitas que trouxera com um determinado propósito: fios dourados que faltavam prender no tronco para que soubéssemos, sempre, qual árvore entre tantas. Fizemos isso. Não sem alguma dificuldade, num galho bem rente ao tronco, próximo à raiz. Logo descemos todos juntos e a planta não mais se agarrou ao vestido.

Atravesso os tempos de um jardim ao outro, os caminhos enfim celebram o que não poderia de outro modo estar aqui. A criação, uma mistura de esquecimento e lembrança do que lemos.

“Para vermos uma coisa temos que compreendê-la.”

Borges estava ali para conversar, não havia dúvida. Naquela manhã de agosto, das dobras das páginas suas palavras irromperam no meu tempo presente. Falava comigo de um modo tranquilo. Aguardei para ver se, de súbito, não apareceria Beppo, o seu próprio gato.  “A essa altura já é um jardim.” Foi o que ouvi. “É verdade que se parece um labirinto.” E havia em sua voz um tom autêntico.

Meu gato e eu nos falávamos pelos olhos (de sua parte também algumas mordidas). Éramos o puro tempo do jogo, e agora não sei como agir… sem ele estar presente. Num ímpeto falo o seu nome. Charcot.

Me escuta?

E penso em compor uma cantata. Para que seu nome chegue até ele.

Charcot. Chhh..

Receba o afago no chiado dessa primeira sílaba.

Vi no caderninho uma nota de alguns meses atrás: “um dia, com coragem e ânimo, poderemos levar uma orquídea para a árvore que é sua agora e as flores poderão render-lhe homenagem a cada ano.” Não tinha ideia do que, de fato, iria acontecer.

A orquídea abriu. É onde estávamos.

A orquídea de Charcot.

Amanheceu aberta.

Quando o primeiro botão despertou, reparei com surpresa o narizinho, nesse formato de quando a criança desenha um gato. Foi, no entanto, quando a flor a cada dia espreguiçando-se virou a primeira pétala para trás… que vi.

As orelhas de Charcot.

Já bem abertas contra o fundo claro, notei as ramificações, veios cor de rosa… da própria orelha! Visíveis quando ele dormia de tarde em cima da geladeira à contraluz.

“Vê-se mesmo, o gato!” Borges disse ainda, e apontou a vida de uma pétala, ali onde pequenas veias navegavam infinitas.

A luz, a intensidade, a claridade fosca, o jardim reapareceu uma última vez em iluminada transparência. As pétalas invadidas pela tarde luminosa.

A nascente de um vermelho tênue na pétala entre rosa e lilás, a lembrança da orelha do gato, na pétala sua orelha com o delicado desenho. Agora recebia o afago dessa mão.

E meu dedo pela primeira vez tocou o botão – não da planta, mas da máquina. Sim, de novo tomei a câmera. E olhando o meu gato, não nos olhos, mas numa carícia na orelha de quando fechava os olhos, sussurrei-lhe o primeiro clique no ouvido.

Você escreve, você se arrisca. Depois, é só perder as páginas.

*

 

Susana Fuentes é escritora

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