Por Paulo Ribeiro *

Literatura de Invenção. Tem alguma que não é? Sinto desapontar, mas a redundância é apenas aparente. Há algo mais aí. Donaldo Schuler, na Introdução do Volume I do quase ilegível Finnegans Wake, de James Joyce (o mais radical mergulho na expressão jamais tentado), escreveu: “Nem sobre enredo nem sobre processos verbais se profira sentença de experimentalismo gratuito. Joyce avança com expressividade reinventada. Invenções só falam a receptores inventivos”.

Eis a chave da leitura. É mais ou menos isso: (re)invenção, inventar em cima da invenção. Além da originalidade do enredo, da força da imaginação, as formas e os suportes devem estar à mão do sujeito. E seja que diabos seja, cinema, teatro, música, dança, fotografia ou ilustração, tudo isto bem conjugado com a palavra dá uma cria melhor.

Reinvenção com receptores inventivos. E há sobre este, digamos, “gênero”, uma trajetória de autores bastante consistentes (alguns também mestres na linearidade). Na Literatura Brasileira, por exemplo, Machado de Assis botou um morto a narrar sua vida e isto é uma senhora (re)invenção de narrador, e que fica à altura de sua excelência narrativa.

Lá fora, além do Finnegans Wake (o livro que persegue narrar um sonho inteiro. O doido do Joyce foi tão fundo na pesquisa com a palavra que inventou até a voz do trovão. Um rronnnkonnbronntonnerronntuon de preencher duas linhas ou mais), Ulisses refaz (ainda sob um enredo comum: 24 horas de um sujeito em Dublin) a forma narrativa de nosso tempo com a introdução do monólogo interior e a criação de palavras (palavras compostas jamais escritas) que trazem uma terceira dimensão ao que se lê.

Joyce paira como um fantasma sobre a literatura moderna desde que escreveu Ulisses em 1922. Mas, fantasmas por fantasmas, a novela mais esquisita que li foi Pedro Páramo, de Juan Rulfo, que faz de uma cidadezinha o maior labirinto literário que topei. Rubem Fonseca, em Lúcia McCartney, tem uma segunda novela embutida na primeira, a segunda novela inteira nos rodapés.

O tema da reinvenção é mesmo instigante, porque a literatura que dá conta deste “segmento”, além de ser uma forma de combater a angústia dos escritores mais inquietos, é também uma forma de libertação da literatura. Isto é, uma maneira de livrar a literatura da camisa de força dos enredos começo-meio-e-fim.

Nos anos 60, um movimento de escritores investiu com tudo nisso. Chamava-se Oulipo (algo como Oficina de Literatura Potencial). Surgiu na França, mas acolheu figuras como Ítalo Calvino, talvez o nome mais conhecido.

Georges Perec, daquela turma, é sem dúvida o mais criativo. Entre seus tantos textos de experimentação, escreve um romance sem utilizar o “e” (a vogal mais usada no francês), o que equivaleria a escrever no Brasil desprezando o “a”. O seu livro de maior alcance é A vida modo de usar. Nele, relata a história de um pintor que passa o serrote em todas as suas telas e espalha os pedaços pelo mundo. E depois gasta o resto de sua vida a recriar os quadros. Uma reconstrução à moda dos jogos de puzzles, estes quebra-cabeças que, além de crianças, seduzem também adultos.

Coletivamente, a “oficina” foi a produção mais importante na área da Literatura de Invenção. Entre nós, a Poesia Concreta (com Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos à frente) talvez possa se equivaler como manifestação artística.

Contemporâneo da Poesia Concreta, outro texto (e definitivo) também se vincula à Literatura de Invenção. Guimarães Rosa, o mais inventivo entre nós, no seu Grande sertão: veredas faz a reflexão sobre o mal e o bem, o diabo e deus, vida e a morte, a partir de um romance nunca resolvido entre Riobaldo e Diadorim, porque Diadorim até o final do livro veste e age como jagunço. A grande poesia em prosa em Língua Portuguesa é este Grande sertão.

Na virada dos 70, num de seus últimos livros, Erico Verissimo também reinventa. Incidente em Antares é o livro de Erico que mais gosto, porque bota uma procissão de mortos a tomar a cidade com discursos contundentes relacionados à moral, à ética, ao sexo, ao escambau!

A Literatura de Invenção, como se percebe, acolhe autores e gêneros muito diferentes, e isto também é uma boa razão para ser descoberta. E prova disto está nestes versos.

Vejam:

 No pão de açúcar/ de cada dia/ dai-nos senhor/ a poesia de cada dia.

Isso que parece música popular (e é) pertence ao velho Oswald de Andrade, o ponta-de-lança da Literatura Brasileira Moderna (e um dos pilares do chamado Modernismo Brasileiro, que o Luís Augusto Fischer classifica mais como um “golpe” de letras tramado pelos paulistas). Então, pulei este cara e também pulei o Mario de Andrade e o seu herói sem nenhum caráter, Macunaíma. Claro, ambos estão inseridos na Literatura de Invenção.

Oswald, aliás, é muito bem acolhido pela turma da Poesia Concreta que, ao fazer literatura em prosa, como Haroldo, avança a batida do autor de Serafim Ponte Grande. É o caso de Galáxias. Nestas “tábuas de prosa” que se prestam à leitura como páginas independentes, Haroldo de Campos faz soar as palavras, dá o tom numa espécie de prosa-porosa em sequência ainda poética. Circuladô de Fulô é o texto mais conhecido depois que Caetano Veloso o musicou.

Por afinidade com os concretistas, o poeta Paulo Leminski foi talvez quem melhor assimilou aquela corrente de experimentação (com a gênese vinculada a James Joyce) ao adicionar um tempero brasileiro a este tipo de texto. No romance Catatau, Leminski põe o filósofo René Descartes em plena Holanda Pernambucana, e insere a reinvenção do discurso (malandro, debochado) entre os holandeses então aqui.

Mas, contemporâneo ao livro de Leminski, quero ainda marcar um caso singular da nossa literatura feita à margem. Em 1977, Glauber Rocha saturado das cobranças (mais políticas que estéticas) sobre a sua trajetória, resolve sentar para escrever além de roteiros. O resultado é Riverão Sussuarana, um romance que traz como protagonista Guimarães Rosa apaixonado por Linda, a filha de Riobaldo com Diadorim, os personagens centrais do Grande sertão: veredas.

Glauber, ao mesmo tempo em que escolhe como pano de fundo a marcha da Coluna Prestes (da qual seu pai foi um dos integrantes), quer acima de tudo expressar a verdadeira fala do matuto do sertão. Glauber dizia que a literatura brasileira tinha esta dívida: dar voz autêntica ao sertanejo (que Rosa teria aprisionado ainda mais a “língua” do sertanejo no seu romance). O resultado é um cipoal de vozes que mistura o erudito com a fala autêntica dos nordestinos e não alcança um resultado, digamos, da lucidez revolucionária dos seus filmes. O livro vale pela coragem de Glauber em buscar ainda a inventividade em terreno minado por Guimarães Rosa.

De invenção em invenção, quero encerrar este breve ensaio com um tributo ao crítico Paulo Bentancur.  Devo ao Bentancur, lá no final dos anos 80, a descoberta de dois autores que também se filiam à literatura de investida mais ousada. Campos de Carvalho e Valêncio Xavier.

O primeiro, anos 40 no Brasil, é um caso singular por sua capacidade inventiva. O romance de Campos de Carvalho é “estranho” a começar pelo título, O Púcaro Búlgaro. Nele, promove uma subversão total do enredo, com um surrealismo engana-bobo a fazer literatura suprarrealista. O vazio humano posto em equivalência a descobrir se há, afinal, Bulgária. E, havendo Bulgária, existiria um púcaro búlgaro (esta espécie de pequeno copo que usamos para tirar água das jarras)? Sátira e um humor corrosivo tocado por uma escrita fluente.

O segundo autor (e este o Bentancur recomendou com maior entusiasmo) é o curitibano Valêncio Xavier (ao centro, na foto) e o seu Mez da gripe (é assim mesmo que se escreve, e foi publicado em 1981). É uma obra com flagrantes do cotidiano, feita de colagens (como a montagem cinematográfica, dizia Valêncio), imagens, recortes de jornais. O livro é o que se chama em circuitos das Letras de “romance-híbrido”.

Por fim, quero falar de Trapo, do curitibano (nasceu em Lages, vá lá!) Cristovão Tezza (ganhou o Jabuti de 2008 com O filho eterno). Reza a lenda que Trapo é sobre o Paulo Leminski. A novela traz a trajetória pós-mortem de um poeta cheio de recursos e pouco domínio sobre a língua, que deixa dois calhamaços de escritos, que são entregues a um professor de Português aposentado. A leitura dos textos transtornam a pacata vida do cara, que passa a (re)circular por uma Curitiba que atualiza a de Dalton Trevisan.

Mais recentes, os narradores de Fátima fez os pés para mostrar na choperia, de Marcelo Mirisola, e de Estorvo, Chico Buarque, os colocam entre os autores que desafiam as convenções.

Eis aí, num breve panorama, o solo fértil da Literatura de Invenção.

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Paulo Ribeiro é professor universitário e escritor. Lançará em junho seu novo livro, Bagorra

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