E ra alta e magra, fausse maigre, dizia meu pai. Não assisti a seu aprendizado com as panelas. Era do tempo em que a maioria das moças fazia curso normal e, no máximo, farmácia. Fico imaginando que teria arrebentado a banca em qualquer profissão, inteligente, criativa e atirada. Provavelmente uma Montessori ou mais provável madame Helena Antipoff, seu ídolo.

Acabou tendo como tarefa principal casa, marido e filhos. Lidava razoavelmente bem com empregadas, mas tinha coisas de muito segredo como as empadinhas e o camarão com chuchu. Detestava camarão, quase não aguentava o cheiro, mas o que não faria para agradar ao marido? Sabia exatamente o minuto em que camarão e chuchu se amalgamavam num gosto só, ainda durinhos, mas não muito.

As coisas mineiras provavelmente aprendera com empregadas antigas da casa da avó onde fora criada e nas férias, na cidadezinha de interior de uma rua só, no fogão a lenha, com a mãe que era uma cozinheira perfeita e meio impaciente. Ela, por sua vez, lançava-se na cozinha com tudo — sem se importar com convenções, modas, estilos ou bom gosto. Aliás, o bom gosto e a economia nasceram com ela, uma inglesa para arrumar a mesa do almoço ou do chá, tirando partido do simples e sem afetação, mas de quando em quando uma frescura vitoriana, num canapé de rodela de tomate feita com boca de frasquinho de remédio e uma salsa como folha de uma flor vermelha.

Especializou-se em empadinhas, que apareciam no domingo com um frango assado na perfeição. Era boa aquela coisa de pouca novidade, uma repetição esperada e gostosa (para nós, da família, pelo menos). Até hoje não descobrimos o segredo das empadas, suspeito que fosse banha.

Aliás, até o fim da vida foi o terror dos galinheiros, não podia ver um frango que achava uso, torcia-lhe o pescoço sem dó nem piedade e o transformava, não sem antes emocionar a filha com a moela cheia de pedrinhas preciosas ou as ovas amarelas e moles, a surpresa, o encanto, aquele cheiro que posso sentir agora, de um frango lavado em água corrente, esfregado com fubá e limão, brilhante de limpeza.

Não conseguia entender almoço ou jantar sem verduras e legumes, sempre só passados na frigideira, sempre al dente, a couve, a abobrinha, tudo em crocâncias verdes, uma expert, e a farofa quente e amanteigada.

Copiava. Competitiva, bastava alguém da família gostar de alguma coisa e lá ia ela e nhoc, roubava as glórias da comida alheia. Nas férias na Bahia, os moleques vieram vender pastel de banana. Mas aquilo não passou de dois dias. No terceiro, ela os esperou com pastéis maiores e polvilhados de açúcar na casa de Itapoã.

Nos anos 50, não resistiu ao chamado de sereia do tênder com pêssegos e cerejas enfeitado com pinhas douradas de spray, mas ninguém é perfeito.

Não me lembro de muitas carnes, de bifes (a não ser os terríveis de fígado, obrigatórios), era mais das carnes picadinhas, dos molhos, dos croquetes, rainha dos bolinhos de arroz, de mandioca, do que fosse. Em coisas de de repente, era mestra. Alguém chegava e apareciam coxinhas, ou camarões sete-barbas fritos, no improviso, aos montões, pé de moleque, bolinho de chuva, cajuzinho, jamais um bolo, não sei por quê…

Comidas simples, mas do Rosamaria aprendera umas finuras de grapefruit com cerejas, encantava o genro com a bacalhoada (aliás, tudo o que aprendeu fora de casa foi no Rosamaria), os netos com pastéis e panquecas, mas, mãe, estou precisando de seu frango ensopadinho com quiabo e angu que só aprendi  a comer já bem velhusca, mas estou precisando muito, senhora mãe, coberta de ouro e prata.

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Nina Horta é escritora

A crônica acima integra o livro O frango ensopado da minha mãe, e foi gentilmente cedido pela editora Companhia das Letras

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